segunda-feira, 18 de junho de 2018

"Não sei descrever o meu toureio... é indescritível!" - crónica de uma manhã com Morante de la Puebla na praça do Campo Pequeno

No Café Londres, mesmo em frente à praça do Campo Pequeno, dois aficionados
reconhecem Morante de la Puebla e querem fotografar-se com ele
O cenário para a produção fotográfica, foi o próprio
Morante quem o escolheu e idealizou. Santado à mesa
a beber um café, junto da porta grande do Campo Pequeno
Com Pedro Marques, observando a última placa descerrada no átrio principal
do Campo Pequeno, comemorativa dos 40 anos de alternativa do cavaleiro
João Moura
Miguel Alvarenga, Rui Bento, Morante, António Sousa
Duarte e Paulo Pereira
Pedro Marques, Rui Bento, Morante e Paulo Pereira à chegada à praça de toiros,
no átrio principal, a porta grande, do Campo Pequeno
No camarote presidencial, onde gostava que o Presidente
Marcelo assistisse à sua actuação a 5 de Julho,
forografado com António Sousa Duarte, Rui Bento,
Paulo Pereira, Pedro Marques e Miguel Alvarenga
Com Miguel Alvarenga e Rui Bento
Morante com a administradora do Campo Pequeno
A administradora do Campo Pequeno ofereceu a Morante o livro comamorativo
dos 125 anos da inauguração da praça, editado no ano passado
Morante durante a visita ao Museu com a Drª Paula Mattamouros Resende
e o Dr. Paulo Pereira
Olhando a foto de Diamantino Vizeu, o primeiro matador de toiros de Portugal
Com a administradora do Campo Pequeno, no Museu, junto ao traje de luces
azul e oiro que ofereceu há dois anos
No Museu do Campo Pequeno, Morante percorreu todos os cantos e deteve-se
largos minutos a apreciar os cartazes e as fotos antigas


Era para ter sido uma entrevista formal, pergunta e resposta. Mas foi mais que isso. Como ele próprio preferiu, "foi uma tertúlia de amigos". Falámos, falámos muito. E Morante de la Puebla riu, riu muito. Depois visitou demoradamente a praça de toiros do Campo Pequeno, percorreu todos os cantos do Museu, fixou o olhar na arena onde vai voltar a tourear no próximo dia 5 de Julho. "É uma praça única!", reconhece. E quando lhe perguntei como define o seu toureio, replicou assim: "Não sei responder... é indescritível!". Crónica de uma manhã no Campo Pequeno com um génio do toureio mundial. Simples, afável, único.

Miguel Alvarenga - É uma manhã de sol de sexta-feira e nós estamos sentados na esplanada do Café Londres, mesmo em frente à praça de toiros do Campo Pequeno. Se estivéssemos em Espanha, não teríamos sossego. Por aqui e à excepção de dois aficionados que de imediato o reconheceram e pediram para se fotografar com ele, as pessoas entram e saem indiferentes à presença, ali, daquele que é um dos maiores toureiros do mundo. José António Morante, o famoso Morante de la Puebla, tem um ar simples e não deu nas vistas, apesar da camisa florida, do penteado “despenteado”, dir-se-ia que é um homem igual aos outros que ali está na esplanada do café, mas não é. Tenho na minha frente um génio do toureio mundial, um homem que fala pausadamente com a mesma arte com que toureia, que sabe o que diz e que ri, ri muitas vezes com um sorriso cativante e às vezes quase infantil, deixa transparecer um sorriso de criança inocente, apesar de ter fama de ser “sisudo”.
Bebe dois garotos e delicia-se com um pastel de nata. “Adoro, às vezes levam-me embalagens aqui de Portugal”, diz-me. Está ali com Pedro Marques, o seu inseparável amigo português e na mesa senta-se também Luis Miguel Pombeiro, director do jornal “Olé!” e que também o vai entrevistar para a edição desta semana. Puxa de um gravador e liga-o. Ao longo da conversa, o gravador cai várias vezes para o lado e é Morante quem o endireita. Depois chega Rui Bento e pergunta como está a correr a entrevista.
“Não é bem uma entrevista, estamos apenas a conversas”, explico. “Estamos numa agradável tertúlia de amigos”, acrescenta Morante. E continua a falar. Naquele momento estávamos a falar dos anti-taurinos em Espanha e ele explicava:
“Em Espanha não são propriamente animalistas, eles são mais anti-espanhóis. Associam as corridas de toiros ao tempo de Franco… quando elas começaram muitos anos antes, ainda Franco nem estava no pensamento…”.

"Para se gostar da tauromaquia
sem se ser ibérico, é preciso ter
um elevado nível intelectual..."

E depois diz-me:
“Para se ser contra, tem que se conhecer a coisa a fundo. Esse holandês que anda a saltar para as praças e que ainda recentemente saltou aqui à arena do Campo Pequeno, não tem cultura nem conhecimentos para ser contra as corridas de toiros. É uma coisa que é muito nossa e que os outros não entendem. Bem sei que há uma morte, a morte do toiro, mas é preciso estar por dentro para entender que é esta a nossa tradição e a nossa cultura. Eu não me meto no sacrifício dos borregos pelos muçulmanos, porque é a cultura deles e não a entendo. Para entender a tauromaquia, não se sendo ibérico, é preciso ter um nível muito elevado de intelectualidade, como Orson Welles e Hemingway. E esses ditos anti-taurinos não o têm”.
Recordamos depois o dia em que cortou as orelhas em Sevilha e se tornou famoso. Um jornalista que o entrevistou quis saber o que mudara desde esse dia e Morante respondeu: “Andava sempre com o carro na reserva e agora ando com o depósito cheio”. Luis Miguel Pombeiro pergunta-lhe se se lembra dessa famosa resposta e Morante solta uma gargalhada:
“Claro que me lembro e disse isso porque era a verdade. Foi o que mudou…”.
E quando lhe pergunto como define e descreve o seu toureio, diz:
“Não sei responder a essa pergunta. O meu toureio é indescritível, passa pelos momentos que vivo na arena, pelo toiro que tenho pela frente, pela inspiração e pelo improviso”.

"Joselito 'El Gallo' e Belmonte
são as minhas grandes referências"

Na véspera, Morante passeara por Lisboa trajado de curto, com o seu charuto e com um chapéu como o que usava Joselito “El Gallo”. Emilio de Jesus fotografou-o em vários pontos carismáticos da capital, dos Jerónimos à Sé, a uma noite de fados em Alfama. As pessoas paravam para ver, admiradas com a figura que ali ia. Personagem excêntrica e extravagante, diferente, única mesmo.
“Lisboa encanta-me, cativa-me, é uma cidade preciosa”, confessa.
“Joselito ‘El Gallo’ e Juan Belmonte são as minhas grandes referências no toureio. Claro que nunca os vi tourear, mas vi filmes e li muito. Cativantes. Foram eles que trouxeram a arte e a graça para o toureio a pé. É neles que me inspiro todos os dias”, explica.
E depois, claro, falamos do seu regresso ao Campo Pequeno no próximo dia 5 de Julho, em que vai actuar mano-a-mano com Manzanares, completando o cartel o cavaleiro João Ribeiro Telles e os Forcados do Aposento da Chamusca. Na quinta-feira participara numa tenta na ganadaria de José Lupi, preparando-se para essa grande corrida, uma das mais aguardadas da temporada lisboeta:
“A praça do Campo Pequeno é das mais bonitas do mundo. O público entrega-se com paixão aos toureiros e é muito reconfortante para mim ter aqui triunfado há dois anos e regressar de novo. O cartel está muito bem montado e eu acredito que todos vamos desfrutar de uma grande noite. Assim espero”.

"Admiro o presidente Marcelo
e quero oferecer-lhe um traje de luces"

No meio da conversa, quando já estamos no camarote presidencial da praça do Campo Pequeno com a Drª Paula Resende, administradora da empresa, que lhe oferece o livro comemorativo dos 125 anos da inauguração, editado no ano passado, Morante de la Puebla confessa a sua admiração pelo presidente da República de Portugal, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa:
“É um presidente afável e gosto da forma como se relaciona com os portugueses”.
E supreende-nos:
“Gostava de vir para Lisboa na véspera da corrida e de oferecer um traje de luces ao presidente Marcelo”.
Nada que não seja possível e de imediato António Sousa Duarte, jornalista, director de uma agência de comunicação que trabalha com a empresa do Campo Pequeno e que entretanto se juntara a nós, faz um telefonema para um assessor do presidente e dá-lhe conta da intenção do matador espanhol. O assunto vai ser transmitido a Marcelo. Bem como um convite para que assista à corrida do Campo Pequeno. Outro foi feito também ao rei emérito de Espanha, D. Juan Carlos, que se a agenda o permitir, já manifestou a sua disponibilidade para nessa noite estar na Monumental de Lisboa. Vai ser um acontecimento único e Morante fica longos minutos “a mirar” a praça, para voltar a dizer: “É preciosa, é única! E tem hoje uma importância notável a nível mundial”.
Lamenta apenas que por cá não se piquem os toiros, não sejam permitidos os picadores:
“É mais complicado, os toiros chegam mais ásperos à muleta, mesmo que sejam bandarilhados, mas picar faz falta, daria outros tempos à lide, permitiria muito mais temple na faena”.

"Gostava de voltar 
a tourear em Barrancos!"

Fala de Barrancos, onde se matam os toiros. Lembra o dia em que lá toureou, ainda novilheiro, com António Ferrera. E volta a surpreender-nos:
“Gostava de voltar a tourear em Barrancos, era giro voltarmos, eu e o António Ferrera, que ali toureámos quando ainda éramos novilheiros. Mas também não se picam os toiros. Matam-se e não se picam, que coisa rara…”.
Pedro Marques diz-lhe que pode contactar a organização das corridas em Barrancos e transmitir-lhe esse seu desejo. “Seria uma coisa única, Morante e Ferrera em Barrancos!”, afirma Pedro.
“Fala com eles, diz-lhes que eu gostava de lá voltar a tourear”, repete Morante.
Quando nos encaminhávamos para a praça de toiros, passámos pelo cartaz que anuncia a sua presença esta temporada no Campo Pequeno. Mas, azar dos azares, por baixo do cartaz estava um caixote de lixo e ainda por cima amarelo. “Fotos aqui, não”, diz o toureiro. O amarelo é a cor de azar de quase todos eles e, pelos vistos, também de Morante.
“Vamos antes tirar umas fotos na porta principal”, diz.
E, ali chegados, é ele próprio quem idealiza o cenário. “Vamos pôr uma mesa e uma cadeira e pedir um café”, que nos disponibilizam no bar “Volapié”. “Agora eu sento-me e vocês fotografam-me enquadrado no canto direito da foto, a olhar para a porta grande”. Fazem-se as fotos. E depois entramos.
No átrio principal da praça, Morante contempla as várias placas que ali perpectuam tantas efemérides e tantos nomes grandes do mundo tauromáquico que por esta praça passaram. Detém-se alguns momentos diante da última que ali foi descerrada, no passado dia 7, em homenagem aos 40 anos de alternativa de João Moura. “Um Maestro do toureio a cavalo!”, diz.
Visitamos depois o Salão Nobre e o Museu do Campo Pequeno, onde está um traje de luces azul e ouro que ele mesmo ofereceu. Perde-se a apreciar os cartazes e as fotos antigas, percorre demoradamente todos os cantos do museu.

"Espero que dia 5 de Julho
aconteça no Campo Pequeno
uma grande noite de arte!"

E no camarote presidencial volta a fixar a praça, as bancadas, a arena: “Encanta-me esta praça, é linda”.
Pergunto-lhe pelo filho, se também vai ser toureiro:
“Fez agora 11 anos e acho que não vai ser toureiro, prefere o futebol, joga muito bem”.
Morante fixa pela última vez a praça de toiros do Campo Pequeno. Vai regressar a Espanha, com tempo ainda para uma paragem na Golegã, onde se delicia com o bife do Café Central na companhia do histórico toureiro Ricardo Chibanga. No dia seguinte, sábado, toureia em Plasencia, onde corta duas orelhas e sai em ombros com Ferrera e Roca Rey.
Outras corridas vão entretanto decorrer até que Morante chegue no próximo dia 5 de Julho ao Campo Pequeno para aquela que é uma das noites mais esperadas da temporada lisboeta. Ele e Manzanares, que regressa também a Lisboa depois de no ano passado ter saído em ombros pela porta grande.
“Espero que a praça encha, que os toiros de Paulo Caetano invistam e que possamos oferecer aos aficionados uma grande noite de arte”, diz, em jeito de remate.
E segue. Não foi a primeira vez que estive com Morante. Ainda no ano passado desfrutámos juntos numa animada noite no Hotel Rio pela Feira de Badajoz. Mas ele surpreende sempre. É um homem diferente. E um toureiro único.
Mítico. Lá está, como Joselito “El Gallo” e Juan Belmonte o foram. Houve, há toureiros, que marcam épocas e marcam a diferença. Este com quem passei a manhã de sexta-feira é um deles.

Fotos M. Alvarenga e Luis M. Pombeiro