sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Campo Pequeno: a cátedra de Manuel Telles Bastos defendeu e impôs o legado que os antigos nos deixaram

 

O toureio clássico, à antiga, verdadeiro, sem espalhafato para a bancada, a reviver o legado que nos deixaram os antigos, tem hoje em Manuel Ribeiro Telles Bastos o seu maior intérprete entre as figuras da nova vaga

Miguel Alvarenga - E foi ele, o Manuel, ontem, o toureiro importante da noite. De uma noite de emoções proporcionada pela glória da ganadaria Murteira Grave, seis toiros de Madrid de que só destoou o primeiro, a raiar a mansidão, cheio de sentido, sério, mas parado, parado no meio da arena à espera que Ana Batista lá fosse, e ela foi, com a garra, a entrega, o risco e o valor que a consagraram em vinte anos de alternativa a mais importante das mulheres que por cá arriscaram e ousaram entrar num mundo que antes era só dos homens. Teve valor a primeira lide da Ana. Não teve brilhantismo porque o toiro o retirou todo e não deu à valente toureira a mínima das opções para alcançar o triunfo sonhado.

No quarto da ordem, um toiro nobre e com mais mobilidade que o primeiro, Ana Batista (que brindou a sua lide a António Ribeiro Telles) pôde finalmente deixar um ar da sua imensa graça toureira, cravando ferros emotivos e destacando-se na forma como bregou e lidou, sem tempos mortos, com alegria, com arte e com a classe que foi sempre o apanágio maior da sua valorosa trajectória.

Manuel Ribeiro Telles Bastos é, foi sempre, um toureiro clássico que se veio impondo num mundo de novas modas. Nunca toureou para a bancada, preferiu sempre tourear para os aficionados e ontem galvanizou por fim todos e não houve ninguém que o não aplaudisse nas duas lides brilhantes, harmoniosas, daquelas que fazem "parar o trânsito" em qualquer arena do mundo.

O segundo Grave da noite foi um toiro cumpridor, que se entregou e cresceu ao castigo. E Manuel lidou-o como os livros ensinam. Fiel seguidor da linha clássica imposta por seu avô, o sempre presente Mestre David e de que o tio António é há muitos anos o grande espelho, ele desenhou na arena do Campo Pequeno uma lide completa, perfeita do princípio ao fim, com ferros dos que levantam o público das bancadas.

No quinto, o Marismero, um toiro de bandeira, um verdadeiro hino à bravura e à raça, Manuel Telles Bastos protagonizou a mais importante actuação da sua carreira. Os compridos, três, de praça a praça, sem martingalas, a entrar pelo toiro dentro, deixando-o arrancar primeiro, esperando, vencendo o piton contrário, cravando de alto a baixo, ao estribo, como dá gosto ver, foram o mote para o que viria depois a ser uma lide de verdadeira apoteose.

Manuel consagrou-se ontem, se dúvidas ainda alguém tivesse, como o grande "toureiro antigo" dos toureiros novos. Assim se toureia! E assim se faz cátedra! Duas lições para a História. Com uma importante particularidade: ao contrário das outras quadrilhas, os bandarilheiros de Telles Bastos praticamente não se viram na arena durante as suas duas actuações. Olé, Toureiro bom!

Numa outra linha, mais exuberante, de maior contágio com as bancadas, mas nem por isso menos importante, o furacão Luis Rouxinol Júnior reafirmou ontem o seu valor e justificou os porquês de ter sido, nos últimos tempos, a nova figura que mais depressa chegou ao topo, em apenas três anos de alternativa.

É, como o pai, um toureiro de luta e de afirmação constante. Um toureiro com raça e com alma, de uma entrega e um profissionalismo acima da média, um toureiro de atitudes, como as que ontem teve, duas portas gaiolas, viesse de lá o que viesse e não vinha certamente coisa fácil, e ele sabia, e mesmo assim ali ficou parado no centro da arena, sereno, tranquilo, valentão, à espera que abrissem as portas dos sustos e de lá saíssem os Murteira Grave que lhe tocaram e que não são toiros para esperar daquela forma - mas o jovem Luis gosta de marcar a diferença e não anda cá com facilidades. Nem falsidades. É toureiro dos de verdade.

Foram duas actuações de muito mérito e sobrado valor, a confirmar a ascensão de um toureiro que desde a primeira hora se entendeu que vinha para fazer História e não ser apenas mais um ou apenas "o filho do campeão Rouxinol".

Das pegas, duras e históricas, dos Amadores de Montemor e Vila Franca, já aqui falei ontem em pormenor. Foram também eles os reis de uma noite que foi de apoteose.

Excelente a direcção de João Cantinho, pautada pela aficion, pelo bom senso, pela vontade de, em tempos de uma ainda estranha "nova normalidade", continuar a fazer da Festa uma festa séria e solene. Como sempre o foi.

Ao início da corrida, Ana Batista atravessou a arena acompanhada pelo seu apoderado José Luis Gomes e foi presenteada com um troféu entregue pelo empresário Luis Miguel Pombeiro, que desta forma assinalou a celebração dos seus vinte anos de alternativa. O público tributou-lhe o carinho e o reconhecimento por tão valorosa trajectória com uma enorme salva de palmas, depois de Maurício do Vale, seu antigo apoderado, ter recordado em breves palavras essa caminhada de glória.

Mais uma vitória do empresário Luis Miguel Pombeiro, que ali esteve na trincheira, quase sempre só, sem buscar protagonismos fáceis, ele que é o herói maior de uma temporada que todos pensavam nunca ser possível e ele tornou brilhante, garantindo a continuidade das corridas na Catedral, proporcionando que mesmo em tempos difíceis voltasse a haver em torno e dentro da praça o ambiente e o glamour que ali se viveu sempre em mais de cem anos de História.

Fotos M. Alvarenga