A actuação do Maestro António Telles ao quarto toiro da noite foi um compêndio de bem lidar e bem tourear. Devia passar a servir de lição para os mais novos |
Dois momentos da fantástica presença de Vitor Ribeiro ontem no Campo Pequeno. A reafirmar que vai uma vez marcar a temporada |
Miguel Alvarenga - Dizia o velho e
saudoso "Solilóquio", João Cristóvão Moreira de seu nome, Comandante
da Marinha e companheiro de meu Pai, mas sobretudo um dos homens que melhor
escreveu de toiros, que as Corridas TV são para se verem em casa, pacatamente,
no sofá, até porque na praça não há repetição das cenas ao ralenti e no pequeno
écrã se detectam muito melhor as falhas que ao vivo até parecem sucessos, mas
adiante. Ontem não cumpri essa tradição de muitos anos de assistir em casa à
Corrida da RTP, até porque era o cinquentenário de uma histórica organização
que nos primeiros tempos esteve a cargo, como não podia deixar de ser, desse
homem único, empreendedor empresário e que tinha disto uma visão que poucos
voltaram a ter, chamava-se Manuel dos Santos e teve a seu lado, no lançamento
das corridas televisionadas, outro homem de que felizmente ninguém se esqueceu
mais, o jornalista João Moreira de Almeida, cujo nome é dado ao prémio que
todos os anos enaltece a melhor pega da corrida e desta vez recaíu, e muito
bem, na pega enorme do grande João Romão Tavares, a terceira, dos Amadores de
Montemor.
Fazer a crónica, ou a reportagem, ou o
que lhe queiram chamar, da Corrida TV, é uma coisa que, a meu ver, quase não
faz sentido. A praça do Campo Pequeno estava bem emoldurada, quase três quartos das bancadas bem
preenchidos e o espectáculo foi visto em casa por milhões de telespectadores,
aficionados ou não, a favor ou contra as touradas, tanto faz. O que não faz
grande sentido é vir aqui contar o que todos viram. Mesmo assim e se tiveram
paciência para me ler, deixarei apenas alguns comentários a propósito de coisas
que me parece importante destacar.
Não venho aqui contar, repito, porque
todos viram, se o António Telles cravou ao estribo ou em sorte de
"violino" (artimanha pouco clássica e a que o Mestre não costuma
recorrer, precisamente porque é Mestre e os Mestres toureiam, não cravam "violinos"),
se o Vitor Ribeiro toureou assim ou assado, ou se o João Maria Branco estava
bem ou mal penteado. O que ontem aconteceu no Campo Pequeno já todos conhecem -
porque todos viram.
Venho apenas lembrar que com toiros como
os de ontem, se fossem sempre assim, já tinham ido para casa, para a reforma ou
para onde quer que seja, muitos dos nossos cavaleiros e grande parte dos grupos
de forcados. Os Graves de ontem não eram toiros para meninos, pediam toureiros
e forcados de barba rija - e eles estiveram lá.
Não houve propriamente, para o
prestigiado e tão sério ganadeiro, o êxito de corridas anteriores. Pelo menos em
termos de populismo. Os toiros foram mais parados que os de outras corridas da
mesma ganadaria, mas isso não significa mansidão ou pior qualidade dos animais,
antes quer dizer que foram toiros mais sérios, mais duros, por outras palavras,
mais toiros. Foram toiros de uma seriedade inquestionável, toiros daqueles que
põem tudo no seu lugar - e com os quais só se aguenta quem pode. E ontem, puderam
todos.
Foi importante para a Festa que os
Graves saissem como sairam, a pedir contas, a não deixar ninguém pensar muito
tempo, a dizer "estamos aqui e agora venha ter connosco quem puder".
Esta é a emoção e a verdade que têm andado esquecidas e arredadas das nossas arenas
há algum tempo - e que ontem esteve ali. Ontem no Campo Pequeno, houve suspiros
de ansiedade, corações sobressaltados, viveu-se o dramatismo e a violência
(porque de violência se trata) que outrora eram símbolos maiores de um
espectáculo que se foi degradando e perdendo a sua verdade - sobretudo e é
importante que se diga, e se escreva, com a criação dos "toiros de
corda", dos toiros fáceis e bonzinhos, que foram aos poucos adulterando o
que era a verdadeira essência da corrida de toiros.
Os Graves de ontem marcaram. A corrida
foi uma corrida para aficionados. Talvez não tivesse sido uma corrida
"para telespectadores", talvez os toiros não tenham proporcionado um
espectáculo televisivo com o ritmo e a "arte" que muitos preferiam,
mas foi uma grande (enorme!) corrida de toiros para quem gosta verdadeiramente
de toiros, de toureiros e de forcados.
António Ribeiro Telles, que já estivera
bem com o primeiro da noite, deu uma verdadeira lição de como se toureia no
segundo, quarto da ordem. Era um toiro perigoso, reservado, que se arrancava
"para comer tudo e todos", que esperava. António entendeu-o na
perfeição, praticou um toureio emotivo de ataque, sem martingalas, com a
verdade dos antigos. Esta sua deslumbrante actuação devia ser filmada (e foi) e
guardada como relíquia para daqui para a frente ser exibida e apresentada aos
novos que querem ser toureiros, para que aprendam como se deve lidar e tourear
um toiro. Ganhou, porque tinha mesmo que ganhar, o prémio para a melhor lide.
Foi enorme, não foi apenas a melhor.
Vitor Ribeiro teve duas actuações de
muita entrega, expôs-se, lidou, bregou, toureou, empenhou-se no triunfo e
conseguiu-o nas duas ocasiões. É um toureiro de luta e um toureiro de
ganadarias duras. Foi importante a forma como ontem reafirmou tudo isso. Houve
ferros de parar corações, detalhes de arte e técnica, provas de maturidade e da
força de um toureiro que está num momento alto, muitíssimo bem montado,
moralizado e decidido a deitar cartas. Merece tudo e muito mais, porque é um
toureiro que vem lutando, às vezes contra ventos e marés, e que nunca desilude.
Tem um lugar de destaque no panorama actual, foi um dos triunfadores da
temporada passada e vai voltar a sê-lo, não tenho dúvidas, nesta.
João Maria Branco tem apenas um ano de
alternativa e é óbvio e lógico que deixe transparecer algumas limitações quando
em confronto com dois toureiros como estes de ontem, sobretudo tendo em conta
que são já muito batidos na lide de toiros duros como os da ganadaria Murteira
Grave. Mas esse facto, o facto de ter estado ali, na sua sexta corrida da
temporada, na sua segunda época como cavaleiro profissional, numa corrida
televisionada, com uma ganadaria de respeito, demonstra só por si uma clara
declarações de intenções por parte de João Maria.
Vindo de um triunfo notável em Évora,
talvez não tenha tido ontem os resultados, em temos de sucesso absoluto, que
desejava. Mas a verdade é que não saíu por baixo, antes pelo contrário. João
Maria Branco teve argumentos de sobra para mostrar o que vale - e vale muito.
Pôs a carne no assador, demonstrou decisão, querer e, acima de tudo, ambição. É
hoje uma certeza, um dado adquirido, que não vai ser "só mais um".
Na brega, nos detalhes, na forma como
lidou os seus dois complicados Graves, na ousadia com que lhes foi à cara e na
firmeza demonstrada com que cravou, com verdade e emoção, deixou patente que
estamos perante um jovem toureiro que vai dar muito que falar. E que, repito,
acautelem-se os que pensavam o contrário, não está aqui para ser "só mais
um". João Maria Branco já é, por seus méritos, um caso. E está a marcar
esta temporada.
Deixarei a análise aos forcados, os
grandes heróis da noite de ontem em Lisboa, para já a seguir. Por absoluta
justiça, não vou esquecer as actuações dos bandarilheiros - todos - que ontem
estiveram em praça, também eles toureiros de eleição frente a toiros que não
permitiram qualquer espécie de amadorismo. Os peões de brega que os enfrentaram
são profissionais "de cima abaixo", independentemente dos anos de
experiência que os separam em alguns casos. O meu olé para os veteranos Ernesto
Manuel e João Ribeiro "Curro" e para os eficientes António Telles
Bastos, Nuno Silva, João Mourão, Diogo Malafaia e Filipe Casqueiro.
A corrida iniciou-se com um minuto de
silêncio em memória do bandariheiro Domingos Paixão, que fora a sepultar à
tarde e houve brindes ao Dr. Alberto da Ponte, presidente da RTP e a Nuno
"Mata", que ontem comentou a corrida ao lado de José Cáceres e do Dr.
Vasco Lucas. Brindes da forcadagem a antigos elementos dos dois grupos que
pegaram na 1ª Corrida TV. E um brinde especial e emotivo de Vitor Ribeiro ao
seu antigo empresário António Manuel Barata Gomes e a Fernanda, sua Mulher.
Pedro Reinhardt regressou à cadeira do "inteligente", depois da
sobressaltada noite de Ventura, mas desta vez sem sobressaltos. Ainda bem.
Não perca, já a seguir: as pegas uma a uma, a análise ao sucesso dos forcados de Montemor e Lisboa, a fotoreportagem de Maria João Mil-Homens, a quem agradeço, reconhecido, a disponibilidade com que se prontificou a colaborar com o "Farpas", dada a ausência (em férias, nada de grave, está melhor e recomenda-se) do nosso querido Emílio.
Fotos M. Alvarenga