A verdade, a classe, a arte e a imponência do toureio de Paulo Caetano aqui bem expressa num grande ferro na sua última actuação no Campo Pequeno em Agosto de 2012 |
Segunda parte da grande entrevista ao
Maestro Paulo Caetano, nas vésperas do seu regresso às arenas, ainda que por um
só dia (próximo sábado em Portalegre) para comemorar 35 anos de alternativa -
uma trajectória marcante de um Toureiro que fez história e entrou, por seus
próprios méritos, para a História. Competiu com os maiores, pisou os principais
palcos do toureio mundial, deixou escola e destacou-se pelo aprumo, pela
classe, pela arte e o temple, pela verdade com que esteve ao longo de vinte
anos no topo da escadaria das Figuras. Sobre a corrida de sábado em Portalegre,
onde lidará um toiro da ganadaria de sua sogra, Maria Guiomar Moura, diz-nos:
"Estou consciente de que já não tenho 20 anos e que a falta de rodagem é,
evidentemente, uma limitação. Mas também sei do respeito e do carinho que este
público me merece e conto com a minha experiência e com a minha vontade para
poder dar o melhor de mim".
Entrevista de Miguel Alvarenga
- Para além da corrida do próximo sábado
em Portalegre, que outro tipo de comemorações vão assinalar o 35º aniversário
da tua alternativa?
- Quem me conhece sabe que não sou muito
dado a excesso de homenagens.
Estou muito grato por tanta gente se
lembrar de mim. Tenho recebido inúmeros convites de Tertúlias, organizações
tauromáquicas, web sites e também de iniciativas de carácter pessoal, para
celebrações respeitantes a esta efeméride. Todas estas iniciativas são prova de
uma grande amizade e de uma enorme generosidade que muito prezo e agradeço.
Infelizmente, a minha vida profissional obriga-me a viajar muito para fora do
país e não poderei estar presente em todos os acontecimentos. O Município de
Monforte vai promover alguns actos oficiais, que por se tratar da terra onde
vivo têm um significado muito especial para mim e para a minha família.
- Recorda-me o melhor e o pior momento
de 35 anos de carreira...
- De entre tantos bons e maus momentos
não posso afirmar qual foi exactamente o melhor ou o pior. No que diz respeito
a realização profissional, e curiosamente de entre muitas corridas que me
correram bem, por esse mundo taurino fora, lembro- me de uma faena em Lisboa a
um toiro do José Infante da Câmara montando o "Vila Franca". Havia
algumas temporadas que eu vinha toureando toiros deste ganadeiro, de quem sou
amigo e muito prezo e admiro, sem conseguir triunfar. Era uma "pedra que
tinha no sapato" desde que um bravíssimo touro deste ferro, me fez dar
duas voltaretas de "campana" em Santarém, colhendo-me violentamente
num ferro comprido. De cada vez que toureava este encaste , falava com os meus
botões: quando tiver de novo uma "máquina" a sério debaixo das pernas
hei-de pedir um toiro Infante e triunfar com ele. Aconteceu quando, depois de
estrear o "Vila Franca" (de ferro Torres Vaz Freire), surgiu um
contrato no Campo Pequeno para uma corrida muito importante. Levei a melhor, o
"Vila Franca" esteve enorme perante um toiro encastado e a pedir
contas, e ganhei o prémio para a melhor lide em Lisboa nessa temporada. Teve um
sabor muito especial.
Os momentos mais amargos foram os que se
relacionaram com o desaparecimento de pessoas que me acompanharam e às quais
devo a minha carreira, e que eram amigos verdadeiros, insubstituíveis, e de
quem tenho uma imensa saudade. Àparte dessas tão tristes perdas,
incomparavelmente dolorosas, os acontecimentos que mais me custaram foram os
relacionados com lesões e afastamento de cavalos chave da quadra. Recordo a
lesão do "Tupi Lupi" em Reguengos depois de um enorme êxito, a
fractura do "Altivo" em Vila Franca, da "Condessa" em
Almeirim, do "Sol" em Alcácer. Enfim, são generosos companheiros que
nos dão tudo, com quem vivemos dia após dia, que sentem e conhecem as nossas
reacções, os nossos receios e alegrias. Os cavalos são a mola que impulsiona os
nossos sonhos de faenas perfeitas, que nos motivam no nosso trabalho, que fazem
nascer novas expectativas. Sinto paixão e um imenso respeito por eles.
- O que podem os aficionados esperar de
Paulo Caetano na noite do próximo sábado, 4 de Julho, em Portalegre?
- A minha relação com a praça de
Portalegre e o público desta terra é muito afectuosa e especial. Vivi ali
grandes tardes. Estava a tourear na Feira das Cebolas nesta praça quando nasceu
o meu filho João, foi uma festa. Gostaria que o público estivesse caloroso e se
vivesse um ambiente alegre e taurino, que ajudasse todos os toureiros e
forcados a triunfar nesta corrida. Espero também que os toiros ajudem os
toureiros e que Deus reparta sorte e nos proteja. Quanto a mim, estou
consciente de que já não tenho 20 anos e que a falta de rodagem é,
evidentemente, uma limitação. Mas também sei do respeito e do carinho que este
público me merece e conto com a minha experiência e com a minha vontade para
poder dar o melhor de mim.
- Ser toureiro é...
- Na minha opinião o toureio assenta em
três pilares fundamentais:
O primeiro, a sua estrutura ancestral:
uma luta entre um homem e um toiro. Os "ancestros do toureio"
transportam-nos para um jogo onde o perigo nos encara de olhos nos olhos e onde
existe mais do que uma vontade de levar a melhor, existe a necessidade de
vencer sob pena de perecer. É um
combate vital onde o homem só poderá levar a melhor se superar, pela sua
inteligência e vontade, a sua inerente desvantagem fisica. Este pilar, que
nunca poderá ser desvalorizado, é onde tudo começa e também onde tudo acaba
quando se cumpre o ciclo completo dos três pilares.
O segundo pilar é o da técnica. É na
cabeça que se constrói o toureio. É a inteligência a base da conjugação de
meios que permite comandar a investida brava do toiro. É a inteligência que
permite, perante a permanência do perigo, tomar decisões em milésimos de
segundo e no mesmo curto espaço de tempo, aplicar os recursos técnicos
acertados. É a cabeça que permite ler a velocidade e a impetuosidade da investida
do toiro e manter a serenidade para controlar as suas trajectórias. É a
inteligência que estabelece os objectivos e a respectiva motivação,
determinação e espírito de sacrifício para os alcançar. É ainda a cabeça que
programa a preparação necessária e faz cumprir a programação de treino. Sem
cabeça não há toureio.
O terceiro pilar é o da arte. Para o
artista a arte não conta. Sai-lhe pelas pontas dos dedos. Faz parte de si, é
genuína. Este é o pilar do sentimento, que quando é alcançado, transfere o toureio
da cabeça para o coração e esvazia o resto do corpo. Uma vez assumidos os dois
primeiros pilares, é este que permite que a luta ancestral se transforme num
"pas de deux", num ballet de plasticidade e harmonia únicas. É a arte
que faz com que a técnica que controla a investida, consiga fazê-lo de forma
cadenciada, ritmada, ligada, emotiva. Este é o domínio do iemple e da
profundidade. Nas raras ocasiões em que o ciclo se cumpre, há como que um
regresso ao valor ancestral do primeiro pilar e este aparece na sua forma mais
nítida. O toureiro, como que abandonado, expõe a sua fragilidade sem
reticências, o tempo fica mais lento e tudo parece fácil e intenso, apesar do
risco ser mais elevado.
Não há dúvida que estamos perante uma
arte sublime e que quem a escolhe terá de assumir uma enorme humildade, um
forte espírito de sacrifício e uma determinação inabalável. É muito bonito ser
toureiro, mas é muito difícil. Quando se diz que os toureiros são feitos de uma
massa especial, está-se a referir o estofo e a entrega que são necessários para
seguir esta profissão.
- Voltarias atrás, se fosse possível e
farias tudo igual na tua carreira?
- Se pudesse voltar atrás, com o
conhecimento e a experiência que tenho hoje, seguramente, mudaria muita coisa e
procuraria fazer mais e melhor. Mas isso é impossível. A vida vai-se
apresentando e a "escada" vai sendo subida degrau a degrau, por vezes
com um tropeção ou outro, mas sempre olhando em frente e fazendo o esforço
necessário para progredir. A fé, a vontade e a garra sempre me ajudaram a
encarar os problemas e a ultrapassá-los. Espero que Deus me continue a dar essa
capacidade, que aceite a minha gratidão por tudo o que me tem concedido e me
conserve a força e o entusiasmo para encarar o futuro.
Fotos Emílio de Jesus e D.R.