Miguel Alvarenga - Graças, apenas e só, aos que gerem (superiormente) o Campo Pequeno, destacando-se óbvia e obrigatoriamente Rui Bento e a administradora Paula Mattamouros Resende, está finalmente a recuperar-se em Portugal o gosto e o interesse pelo toureio a pé, após um longo e excessivo período de absoluta reinação do toureio equestre. Ontem a praça encheu sobretudo para ver o grande Juan José Padilla (fotos), um caso raro, raríssimo, de superação de vida, uma espécie de quase extra-terrestre do toureio, um toureiro único e admirado em todo o mundo. Quinze dias antes, Lisboa quase encheu para assistir à noite mágica de Morante de la Puebla. Há um ano, “El Juli” deixou o Campo Pequeno em alvoroço. O público, farto da monotonia dos sempre-os-mesmos que reina hoje na lusa cavalaria, está sedento, nota-se que o está, de toureio a pé, mas de bom toureio a pé, não das amostras lusitanas que temos, que a verdade é para ser dita e desde Vitor Mendes que não houve um matador português igual. É pena que não tenhamos um novo Mendes, temos que nos contentar com os espanhóis, que antigamente já foi assim, quem não se lembra das noites de apoteose de “Paquirri” e Dámaso González, de “Currillo”, mais tarde de Paco Ruiz Miguel e “Niño de la Capea”?
Ontem parecia antigamente. Praça cheia (mais de três quartos das bancadas preenchidos) na que foi a tradicional corrida do jornal “Correio da Manhã”, iniciada precisamente com um respeitoso minuto de silêncio em memória do toureiro espanhol Victor Barrio, morto por cornada no sábado na arena de Teruel.
Juan José Padilla era - e foi - a vedeta da jornada e também o maior chamariz da noite. O próprio cartaz da corrida consagrava apenas a sua imagem, estilo “Padilla e outros mais”, mas a realidade é que era assim mesmo que tinha que ser, o marketing estava centrado na sua figura, no “Pirata”, no toureiro que superou todos os azares e regressou com a força redobrada, a demonstrar que querer é poder.
Os toiros de Varela Crujo, muito bem apresentados, com cara, seriedade e trapio, encastados, ajudaram ao sucesso dos toureiros, excepção feita ao último, manso, a que Juan del Álamo deu a volta com imensa entrega.
Lisboa rendida a Padilla
Padilla é um caso único de grande profissionalismo, de uma dedicação extrema, de um arrojo e uma ousadia que arrepiam - e tem a facilidade, rara e nem sempre fácil, de impactar com o público desde o primeiro momento.
Foi de joelhos em terra que recebeu o seu primeiro toiro, com uma “larga afarolada” de parar corações. Depois toureou à “verónica” e por “chicuelinas”, pôs o público de pé com as bandarilhas, até parecia fácil a forma como executou esse tércio e, com a muleta, desenhou uma faena variada, com aprumos de valentia e de arte, conquistando o conclave. Duas voltas à arena, praça de pé rendida do valente jerezano.
Com o sexto, um toiro de bandeira que investiu, voltou a investir e se fartou de investir, Padilla acabou com o quadro, deixou o Campo Pequeno num verdadeiro delírio, tudo eufórico, tudo em pé, todos com ele. Deu três voltas à arena e teria dado muitas mais. A aficion lisboeta não parou de o aclamar e no fim saíu aos ombros, ao colo dos jovens alunos da Academia de Toureio do Campo Pequeno, pela porta grande, rua fora até à carrinha, tudo aos gritos em seu redor, um ambiente que marca o retorno em força do toureio a pé e que vira uma página na história da tauromaquia lusa, que tão monótona e rotineira se arrastava há uns anos. Não há ídolos? Começam a aparecer. É pena é não serem portugueses. Mas servem na mesma - e servem de que maneira! Não foi o mexicano Gregório Garcia que nos anos 40 e 50 levantou o adormecido toureio a pé em Portugal? A história repete-se.
Padilla galvanizou Lisboa. É um verdadeiro “show man”. Mas é, acima de tudo, um grande profissional e um enorme toureiro.
A força de Juan del Álamo
Juan del Álamo é uma das figuras do futuro, um jovem com várias portas grandes na primeira praça do mundo, a de Madrid e um toureiro que já criou acarinhada apatia com o público do Campo Pequeno. Ontem não foi “de vazio”, nem se deixava ir assim, triunfou também, fez por isso e conseguiu, mas as suas duas brilhantes faenas, se bem que reconhecidas e merecidamente aplaudidas pelo público, acabaram ofuscadas pela magia do “Pirata”.
Juan del Álamo respondeu a Padilla com, também, uma “larga afarolada” de joelhos em terra, desenhou artística e variada faena, evidenciando temple, bom gosto e poderio, evidenciando sobretudo que está, continua, num grande momento. O Campo Pequeno não lhe regateou aplausos e homenagens, o público lisboeta está identificado com Álamo e gosta de o ver. E a empatia é mútua.
No último toiro e depois da apoteose de Padilla, Juan del Álamo não se incomodou com o facto de a parada estar tão alta. Brindou aos céus, à memória do seu amigo Victor Barrio e, diante de um toiro manso e complicado, perigoso e agressivo, demonstrou a grandeza do seu toureio e deu a volta por cima com elevado profissionalismo e apurada técnica. Um e outro contribuiram decisivamente para mais um passo em frente, decisivo e memorável, em prol do regresso em força do interesse e do gosto dos nossos aficionados pelo bom toureio a pé.
Lombalgia de Rouxinol ajuda a consagrar Júnior
No que aos cavaleiros disse ontem respeito, estava a lide a cargo dos Rouxinóis pai e filho, que pela primeira vez toureavam juntos, tipo “mano-a-mano”, em Lisboa. Luis Rouxinol a caminho dos 30 anos de alternativa, que cumpre na próxima temporada; Luis Rouxinol Júnior rumo à esperada e já bem justificada alternativa, que deverá ter lugar também na próxima época.
Tourearam a duo o primeiro toiro da corrida, em perfeita sintonia e em ritmo, quase alucinante, de triunfo. Depois, Luis Rouxinol sofreu um ataque de lombalgia e recolheu à enfermaria, não voltando a actuar. Sem ser, felizmente, um caso de maior gravidade, calhou que nem ginjas para que se destacasse o Júnior, que assim lidou na segunda parte, sózinho, os dois toiros destinados aos ginetes, aproveitando esta oportunidade única para se consagrar e nos convencer que é, na realidade, um dos maiores valores da nova geração de cavaleiros e um dos melhores dos filhos que estão agora a despontar, a maior parte deles com a dificuldade de provar que superam o valor dos pais. Luis Rouxinol Júnior, não se querendo equiparar ao pai (nem sequer bandarilha a duas mãos, o que à partida marca logo a diferença e realça a sua intenção de enveredar e vencer, por e com, um estilo próprio), tem tudo para ser grande. E vai ser.
A primeira lide não começou da melhor forma. Teve a intenção de receber o toiro com uma sorte de gaiola, mas o cavalo negou-se. Recuperou depois a forma, sem vir abaixo, o que denota a raça e a garra com que anda nas arenas. Lide variada e emotiva, compensada com aplaudida volta à arena.
No toiro seguinte, quinto da ordem, esteve melhor, voltou a evidenciar muita raça, a transmitir segurança e a demonstrar que está apto e mais que apto a dar o passo seguinte, a tomar a alternativa e a ter na Festa o lugar que merece, o lugar por que seu pai lutou, contra ventos e marés, alcançando-o à custa do seu tremendo valor, da sua persistência, do seu muito querer. Os tempos mudaram, Rouxinol Júnior terá hoje o caminho muito mais facilitado, mas não deixa de ser de muito valor ter já chegado onde chegou.
Boas pegas, como já aqui se referiu, dos Amadores do Aposento do Barrete Verde de Alcochete, por intermédio de Diogo Amaro (à segunda), do cabo Marcelo Lóia e de Rui Gomes (ambos à primeira), numa corrida muito bem dirigida por Tiago Tavares e que teve significativos brindes de Padilla aos forcados e dos forcados aos dois matadores. Uma noite memorável e marcada sobretudo pela força de Padilla - como dizia o meu irmão, já não se usa ver toureiros assim. Desta grandeza, deste profissionalismo, parecia que estávamos no antigamente. Mas ainda bem. O toureio a pé está a renascer em força e a partir do Campo Pequeno. A vinda de Roca Rey a Salvaterra, dia 29, vai ser outra pedrada no charco. Na segunda parte da temporada do Campo Pequeno anuncia-se mais uma grande corrida mista. E até deviam ser duas. Rui Bento e Paula Mattamouros que revejam os projectos que já tinham em mente. O público e sobretudo o público do Campo Pequeno, está sedento de ver tourear bem a pé. Já chega de tanta cavalgada! Ponto final.
Mais logo, não perca: todas as fotos de Emílio de Jesus, os Momentos de Glória da grande noite de ontem no Campo Pequeno.
Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com