A irreverência eterna de Rui Salvador e os ferros de parar corações |
António Brito Paes justificou no Campo Pequeno que merece vôos mais altos |
Manuel Telles Bastos em dois bons momentos da sua actuação ontem em Lisboa |
Duarte Pinto empolgou com a verdade e a ousadia do seu toureio temerário |
Miguel Alvarenga - Luis Miguel da Veiga, o Mestre, é e será sempre uma das nossas maiores referências no que ao toureio a cavalo diz respeito. Mas não só. No seu tempo os toureiros eram ídolos e ele foi um ídolo dos portugueses. Vê-lo ontem de novo de casaca e tricórnio, nas cortesias, agradecendo com aquela postura única - e tão distinta - os aplausos, as ovações, o carinho de um público que encheu o Campo Pequeno para lhe tributar especial homenagem no dia em que passava meio século sobre a data histórica da sua alternativa na praça antiga, foi como recuar no tempo e lembrar, ali, em tão breves momentos, toda uma vida, toda a glória de uma carreira que, só por si, foi também única, como ele.
Toiros não eram para meninos...
Não eram para meninos os sete magníficos toiros da ganadaria de David Ribeiro Telles, da linha antiga, não dos cómodos murubes, a primar pela apresentação, pelo trapio, pela seriedade e a emoção que impuseram em praça, em nada facilitando a vida aos cavaleiros e, muito menos, aos forcados. Toiros daqueles que continuam a fazer imensa falta para que isto entre de uma vez para todas nos eixos e fique quem tem que ficar, indo para casa quem nada aqui anda a fazer.
Não é, valha a verdade, o caso de nenhum dos sete cavaleiros que ontem se apresentaram na capital, todos eles tiveram e continuam a ter uma palavra a dizer, outros estão de chegada e a prometer deixar história, qualquer coisa que seja e que marque as suas carreiras, o seu querer, a sua vontade de ser um dia alguém com importância e valor num meio cada vez mais complicado e que os próprios agentes tanto complicam ainda mais…
Salgueiro renovado e Moura ainda e sempre na frente
Abriu ontem praça João Salgueiro da Costa, confirmando a recente alternativa (ninguém sabia que tal cerimónia ia ocorrer) e surpreendeu tudo e todos pela grandiosidade com que toureou, ele que tem tido uma trajectória pouco definida, com constantes altos e baixos. Ontem, quase se diria que nasceu, ou renasceu, o novo Salgueiro. Fez tudo bem feito, andou confiante, senhor de si, toureiro dos pés à cabeça. Muito bem, mesmo. Talvez a melhor actuação que lhe vimos nas últimas temporadas.
Bem, na verdade, enorme, monstruoso, à antiga, os anos não passam, a sabedoria é eterna e a raça não tem limites, andou João Moura, o Maestro. O toiro de Telles era bravo e não lhe deu contemplações. Esteve o “niño prodígio” (ainda e sempre!) superior a recebê-lo, aguentando a pedalada do toiro, encurtando distâncias, dominando, mandando, para depois lhe aproveitar a franca investida e fazer dele o que quis e muito bem lhe apeteceu. Continua a tratar os toiros por tu, a dizer que quem manda ainda é ele e que como ele não apareceu ainda outro e já lá vão quarenta anos. Toureou, bregou, templou, deu-nos relatos de maravilha de como se deve tourear - e triunfar. Coisa única, importante, relevante - e o resto são cantigas. Foram sempre.
A raça de Salvador, a classe de Brito Paes
Rui Salvador já não tem os cavalos craques de outras épocas, pode mesmo debater-se neste momento com uma preocupante crise de boas montadas, mas a verdade é que a raça, o valor, a ousadia, isso são atributos que os anos não lhe tiram - e o público continua a reconhecer-lhe como seus, muito seus. Começou mal, só não caiu por milagre, mas depressa se recompõs e se reencontrou, indo por aí fora com ferros daqueles em que põe tudo de si numa entrega que não tem fronteiras e de que resultam aqueles tais ferros imponentes a que alguém um dia chamou de impossíveis - e são mesmo.
Seguiu-se o também renovado António Maria Brito Paes, um cavaleiro com classe e que atravessa uma fase de justificada euforia pelo que de bom tem dado em cada tarde e em que corrida onde tem participado. Está em crescendo e ontem no Campo Pequeno demonstrou isso mesmo. No festival de Serpa, estava a época a dar os primeiros passos, já Brito Paes evidenciou que vem este ano disposto a marcar por qualquer diferença. A sua lide de ontem teve consistência, teve brilhantismo, bom gosto e voltou a deixar a nota de que 2016 será uma temporada diferente para este valoroso cavaleiro, confiante e seguro do bom momento que está a atravessar. Um triunfo assim em Lisboa deveria abrir mais portas a Brito Paes. Mas, infelizmente, nessa antiga lógica de que quem triunfa tem que se repetido, as coisas agora não se passam como dantes. Mesmo assim, insisto e façam os senhores empresários o favor de tomar nota: este cavaleiro merece mais. Porque tem muito para dar.
Clássico Bastos, empolgante Duarte Pinto
Manuel Ribeiro Telles Bastos é um clássico entre os jovens, um seguidor fiel da linha imposta por seu saudoso avô, Mestre David - e dá sempre gosto ver que há toureiros modernos, quero dizer, novos, que não embalam em modas e mantêm uma fidelidade marcante ao que os livros antigos ensinam. Essa é uma das maiores qualidades que o Manuel sempre evidenciou e trouxe para as praças de toiros, assim como quem diz e decreta: ainda se pode e deve tourear à maneira antiga. Ontem, teve um toiro estupendo da ganadaria da casa e nem sempre o abordou com a clareza com que o devia ter feito, resultando alguns dos ferros a cilhas passadas. Honrou, contudo, inequivocamente, o apelido que ostenta numa noite em que era o digno representante de Mestre David, que há meio século concedeu na antiga arena desta praça a alternativa a Luis Miguel da Veiga.
Duarte Pinto marcou a diferença. Outra vez. Pôs verdade no que fez, obrigou-se a suspirar, assustou quem viu aquelas entradas rectas ao piton contrário, a frontalidade com que se fez ao toiro, pisando terrenos de compromisso, ousando, arriscando, provando que anda aqui para ser um dos bons e um dos de cima. O público tributou-lhe enormes ovações, Duarte foi um dos jovens mais em evidência na corrida de ontem. Merece voltar e Lisboa - merece, sim.
Núncio em "alta voz" com banda em silêncio
Fechou praça o jovem António Núncio, que ontem se estreou de casa e tricórnio e também se apresentou pela primeira vez em Lisboa. Há muitos anos, Mestre João Núncio, seu bisavô, fez questão de que na corrida dos seus também 50 anos de alternativa, actuasse Luis Miguel da Veiga, rendendo desta feita homenagem ao seu eterno rival Simão da Veiga. Agora foi a vez de Luis Miguel, num gesto de grandeza, retribuir o que jamais esqueceu e também “exigir” à empresa do Campo Pequeno que na sua corrida estivesse um Núncio. Ainda há Senhores neste conturbado mundo dos toiros.
António Núncio não andou bem nos compridos, mas melhorou significativamente na ferragem curta, evidenciando boas maneiras, sentido de lide e alguma irreverência mesmo. Não se pode exigir a um jovem que está a iniciar-se, que se apresenta pela vez primeira de casaca na capital e numa corrida com o peso da de ontem, o mesmo que se tem que exigir a um cavaleiro com anos de alternativa. E foi aqui que o director de corrida Agostinho Borges pecou, não concedendo música a Núncio, mais a mais quando o público a pedia em uníssono. Falhou Agostinho - mas os homens também falham. Mesmo com a banda em silêncio, António Núncio toureou em "alta voz" e pôs o público em alvoroço - e a cantar bem alto a bonita lide com que se quis impor.
Triunfou o Grupo de Montemor
Já aqui referi, anteriormente, a noite triunfal dos Forcados Amadores de Montemor, em que se destacaram João Romão Tavares (que merecia ter ontem saído em ombros) e Francisco Borges, mas também o cabo António Vacas de Carvalho e Manuel Dentinho. Menos brilhante foi a noite para os Amadores de Évora, apenas se evidenciando João Pedro Oliveira. O cabo António Alfacinha sofreu violenta colhida, caiu muito mal na arena e ficou inanimado, recuperando depois os sentidos na enfermaria. Foi dobrado por Gonçalo Pires. A sexta pega da noite acabou consumada “à unha” pelo valente Manuel Rovisco, depois de várias vezes a ter tentado, já sem as minimas condições físicas para o fazer, o que denotou uma total inconsciência e irresponsabilidade por parte de “quem manda”, o pequeno-grande João Madeira. Coisas que não se devem repetir e que em nada engrandecem, antes pelo contrário, a nobre e tão portuguesíssima arte de pegar toiros, tão bem defendida sempre pelo Grupo de Évora e ontem tão desrespeitada e maltratada, vá lá entender-se por quê. Uma vergonha - repito.
Resta acrescentar que ao intervalo da corrida se descerrou no átrio de entrada da praça uma placa evocativa dos 50 anos de alternativa de Luis Miguel da Veiga e dizer ainda que ao início das cortesias se guardou um minuto de silêncio em memória do pintor e serigrafista António Inverno, grande aficionado e defensor da arte tauromáquica, do rejoneador e ganadeiro espanhol Fermín Bohórquez Escribano, do decano dos fotógrafos taurinos mundiais, Francisco Cano e ainda do ganadeiro português Pedro Infante da Câmara.
Agostinho Borges dirigiu esta corrida com acerto e aficion, só falhando mesmo na história de não conceder música ao jovem Núncio - ele merecia-o, a Festa precisa de incentivar o futuro e Borges ontem não entendeu nada disso. Lamento muito.
Ao final da lide do segundo toiro da noite, um bravíssimo exemplar da triunfadora ganadaria Ribeiro Telles - a quem se fica a dever o grande sucesso da corrida de ontem - os ganadeiros João e Manuel Ribeiro Telles deram aplaudida e merecida volta com João Moura e o forcado João Pedro Oliveira. A meu ver, deviam ter dado muitas mais, noutros toiros, noutras lides. Afinal de contas, nem todos os dias se vê uma corrida assim. Parabéns aos Telles.
Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com