Da História já D. Francisco de Mascarenhas faz parte há muitos anos. Mas de hoje a uma semana, no Campo Pequeno, volta a entrar nela pela porta de todas as glórias, ao ser o primeiro toureiro no mundo a celebrar em vida 75 anos de alternativa. A empresa do Campo Pequeno vai render significativa homenagem ao cavaleiro-fidalgo, que foi nos anos 40 o primeiro "niño prodígio" do mundo da tauromaquia. Aos 93 anos, com uma lucidez e uma memória que fazem inveja a qualquer um, D. Francisco recordou ao "Farpas" a noite da sua alternativa no Campo Pequeno, a 29 de Agosto de 1945, apadrinhado por Mestre João Branco Núncio e a tarde da sua estreia em Espanha, com 10 anos de idade, em El Puerto de Santa Maria, onde toureou ao lado do célebre "Manolete", que nesse dia fazia a sua despedida como novilheiro
Entrevista de Miguel Alvarenga
- D. Francisco, fale-me do que significa para si, de hoje a oito dias, ser homenageado no Campo Pequeno pelos seus 75 anos de alternativa.
- É bonito, muito bonito, chegar aos 93 anos de idade e ser lembrado pelos meus 75 anos de alternativa. Ainda há dias me telefonou o meu querido amigo Álvarito Domecq e me disse que era, de facto, caso único no mundo. Andou a pesquisar e disse-me que não existe nenhum toureiro, bandarilheiro ou mesmo picador que tenha comemorado em vida 75 anos de alternativa. Estou muito feliz por isso e pelo facto de a empresa do Campo Pequeno se ter lembrado de mim. Não conhecia bem o empresário Luis Miguel Pombeiro, mas tem sido uma pessoa impecável. Vai ser um momento único e vai ser de certeza um momento muito bonito. Não posso estar mais feliz, Miguel.
- Lembra-se da noite da sua alternativa no Campo Pequeno?
- Graças a Deus, tenho uma memória privilegiada e lembro-me como se tivesse sido ontem. Quem era para me dar a alternativa era o Simão da Veiga, mas uma vez estivemos no Palácio do Marquês de Fronteira a tourear umas vacas, eu e o João Núncio e ele virou-se para o meu pai, que era ao tempo cavaleiro amador e disse-lhe: 'Ó Alexandre, quem vai dar a alternativa ao teu rapaz sou eu!'. E assim foi. Eram empresários do Campo Pequeno, ao tempo, o José Ricardo e o Bernardo Mesquitella e lá organizaram a corrida para eu tomar a alternativa, tinha eu 18 anos. Os toiros eram do senhor Joaquim Núncio, pai do João Núncio e sairam muito bem. Foi uma corrida mista e tourearam a pé, salvo erro, um matador espanhol e um mexicano, mas desses é que já não me lembro dos nomes... A cavalo, era eu e o João Núncio, que me deu a alternativa. Éramos muito amigos, as nossas famílias eram amigas. E volto a dizer que é bonito comemorar essa efeméride. Desse tempo, dos toureiros todos com quem toureei, dos amigos todos que tinha, já nenhum é vivo, só eu...
- E lembra-se das palavras que lhe disse Mestre Núncio no momento em que lhe concedeu a alternativa?
- Perfeitamente, como se fosse hoje. Deu-me o ferro e disse-me: 'Chiquinho, o prometido é devido e por isso cá estou eu a dar-te a alternativa, com muito apreço por tudo o que tens feito em Espanha e desejando-te as maiores felicidades, toma lá um abraço'. E deu-me um beijo. A praça estava cheia, não por mim, mas pelo João Núncio, que na altura enchia todas as praças onde toureava. As coisas correram-me bem e no final, na trincheira, veio ter comigo e disse-me: 'Ó rapaz, vocemecê hoje esteve melhor que eu, parabéns!'. E eu respondi: 'Isso é impossível, correu-me bem, mas melhor que o senhor não estive, nem podia estar'. Depois fomos todos jantar juntos. Nesse tempo, convivíamos, éramos amigos, hoje nada disso acontece, é tudo muito diferente...
- Quando tomou a alternativa, já tinha toureado muito em Espanha...
- Toureei pela primeira vez com 8 anos de idade em Almeirim e depois em Algés. Com 10 anos estreei-me em Espanha na praça de El Puerto de Santa Maria, toureava eu e o meu pai a cavalo e a pé o 'Manolete', que fazia nesse dia a sua despedida como novilheiro. Apresentei-me com 12 anos no Campo Pequeno e em Madrid. Em Espanha, ao tempo essas coisas não eram vulgares nessa época, um empresário fez uma exclusiva comigo e com o Luis Miguel Dominguín, toureava eu a cavalo e ele a pé, num ano fizemos 40 corridas juntos. Toureei em Espanha com todas as grandes figuras desse tempo. E com o 'Manolete' houve um coincidência engraçada...
- Conte.
- Ele ia fazer a apresentação como matador de toiros e confirmar a alternativa na Real Maestranza de Sevilha, mas dias antes numa outra praça sofreu uma grande cornada ao entrar a matar, tal como a cornada que anos mais tarde o matou em Linares e ficou parado um mês. E finalmente no dia em que se apresentou em Sevilha como matador de toiros, eu toureei também com ele. Por isso, toureei com o 'Manolete' na sua última novilhada e depois na sua primeira corrida como matador em Sevilha. Toureei muito em Espanha, mas quando tinha 17 anos morreu a minha mãe e então deixei de lá ir tourear. Sempre que eu actuava em Espanha era uma festa, ia a minha mãe, as minhas irmãs, depois tudo ficou diferente, já não era a mesma coisa e já não me apetecia ir lá tourear.
- Deixou de tourear em 1956, por problemas de visão, não foi?
- Sim, por miopia. Tive imensa pena, mas fui obrigado a deixar de tourear por problemas de visão. Só reapareci em 1958 para dar a alternativa na Moita ao José Mestre Batista. Tinham-no chumbado na alternativa no Campo Pequeno e eu achei aquilo uma injustiça e fui com ele para a Moita para lhe dar a alternativa.
- Mas continuou sempre ligado à Festa, ajudou e ensinou muitos cavaleiros e continua a ser, graças a Deus, uma presença muito assídua em todas as praças.
- Graças a Deus. Deixei de tourear, mas continuei a montar e foram muitos os cavaleiros que me procuraram, entre eles o José Lupi e tantos outros, para que os ajudasse e apoiasse e fi-lo sempre com o maior dos gostos. Às corridas continuei sempre a ir, a aficion nunca morre.
- Mas hoje é tudo tão diferente, não é?
- Pois é. Não tem nada a ver com aquele tempo, infelizmente. Mudou tudo. Hoje há muita fofoquice, muita trapalhada, nada é como era e nada tem a ver com o meu tempo. Tenho pena.
- Expectativas para a próxima quinta-feira?
- É um bom cartel, estou emocionadíssimo com a homenagem que me vão fazer e sobretudo com o facto de ter chegado a esta idade e poder comemorar os meus 75 anos de alternativa. É muito bonito, estou grato à empresa do Campo Pequeno e ao público.
Fotos Marques Valentim, Emílio de Jesus/Arquivo e D.R.
![]() |
Com Amália, sua grande amiga, num acto da Real Tertúlia Tauromáquica D. Miguel I, de que é Sócio de Honra |
![]() |
No Campo Pequeno, quando a anterior empresa o homenageou |
![]() |
D. Francisco há uns anos em Almeirim, com o jornal "Farpas" nas mãos, com Miguel Alvarenga e o seu grande amigo Maurício, já falecido |
![]() |
Primeiro "niño prodígio" da Tauromaquia mundial, D. Francisco começou a tourear em Espanha com apenas 10 anos de idade |