segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Grande entrevista: Paulo Caetano - por ele próprio


Faz parte das regras antigas do jornalismo não tratar o entrevistado por tu, mas aqui abre-se uma excepção e espero que ninguém a leve a mal, em nome de uma amizade com mais de quatro décadas e de um respeito mútuo a nível profissional que não teve nunca barreiras nem muros de Berlim ou outros. Paulo Caetano vai comemorar no próximo dia 10 de Outubro em Monforte, rodeado de amigos e filhos de amigos com quem viveu histórias e triunfos antigos, os seus 40 anos de alternativa. E esta entrevista impunha-se. Não é curta, nem podia sê-lo, mas vale a pena lerem-na até ao fim. O Paulo fala como ainda hoje toureia: com classe, com arte e com temple. Viaja pelo tempo, recorda os seus princípios, lembra que veio do nada e de uma zona do país que “era árida”, diz ele, a quem queria ser cavaleiro tauromáquico. Fez-se figura do toureio pelos seus méritos, chegou onde chegou pelo seu valor. Foi em sua casa, em Lisboa, no sábado, que falámos. O que aqui fica hoje é a história de um vencedor - contada por ele próprio

Entrevista e fotos de Miguel Alvarenga


- Estudaste, tiraste um curso de Gestão, alguma vez pensaste seguir outra profissão que não o toureio?


- Fiz o meu percurso académico normal, estudei no Externato Frei Luis de Sousa (primário e secundário), tirei depois o curso de Gestão, depois estudei ainda algum tempo na Universidade Livre e ainda andei no Instituto Superior de Línguas e Administração, onde acabei por fazer também um curso de Línguas, mas foi tudo uma coisa sempre paralela à minha carreira, porque eu comecei a tourear muito cedo.


- E como é que isso nasceu, Paulo, essa aficion, esse gosto pelos toiros e pelos cavalos?


- É talvez das situações que eu acho mais engraçadas da minha vida e da minha carreira, porque eu nasci em Almada, numa família que não tinha tradições taurinas, a não ser o facto de serem aficionados à tauromaquia e aos cavalos. O meu pai era um empresário, naquela altura tinha uma dimensão bastante grande. E aquela era uma zona árida para alguém que quisesse ser cavaleiro tauromáquico, árida no sentido de estar longe de qualquer zona de ganadarias, de criação de cavalos e toiros, etc., apesar de em termos aficionados ser uma zona onde havia vários toureiros a pé, vários bandarilheiros, havia gente muito aficionada, havia o senhor Moreno, que era um indefectível do Luis Miguel da Veiga, havia o Vitor Ribeiro pai, cavaleiro tauromáquico que na altura tinha enorme sucesso, o Quim-Zé Correia chegou a viver no concelho, o Mestre Batista tinha também passado por lá. Havia um ambiente muito taurino. Havia um café em Almada que era o “Condestável”, onde parava o Albino Fernandes, o Belchior, o senhor Moreno, que era alentejano, de que já falei, o senhor António Paio, que foi depois sogro do Rui Rosado e também do Cachapim, era um homem que apesar de viver em Lisboa frequentava aquela zona e era um grande aficionado ao cavalo, à equitação e ao toureio, enfim, havia um bom ambiente ligado ao mundo dos toiros e o café “Condestável” servia de tertúlia onde nos encontrávamos. Eu nessa altura era um miúdo, mas gostava de lá ir e de os ouvir, aprendia.


- E desde pequeno que montavas a cavalo, não era?


- Sim, desde muito pequeno que tive sempre o gosto pelos cavalos e nessa parte tive muita sorte porque apesar de nunca ter havido no nossa família ninguém que montasse a cavalo, os meus pais basearam sempre a relação com os filhos no amor e no respeito e em tudo aquilo que nós gostávamos de fazer e enveredar, fomos sempre apoiados, houve sempre um entusiasmo em casa em relação a tudo. O meu pai foi sempre um educador exigente, como foi sempre exigente com a sua vida, foi um homem que construiu toda a sua vida do nada, sabia que a determinação e o trabalho eram importantes, mas ao mesmo tempo temperou essa enorme exigência com uma dedicação e sobretudo com um espírito fortíssimo de competitividade. O meu pai foi um desportista, além da profissão dele como empresário, foi jogador de futebol profissional e portanto sabia o que era a competição e o que era preciso para chegar onde queríamos. Passou-me por isso valores importantes. A minha mãe foi sempre uma artista, tu conheces bem, escreveu sempre poesia, gostava de cantar o fado, foi sempre uma pessoa ligada às artes, muito romântica, muito emocional e isso também me ajudou porque me passou valores da importância das emoções, da importância da estética, que valeram muito para a minha vida. Àparte isso, tenho na família um tio que é o Fernando Metzner Serra, que era cavaleiro e esteve sempre muito ligado à equitação, o seu avô foi cavaleiro do rei D. Carlos em Belém. O meu tio, aliás, nasceu em Belém, na zona do Picadeiro Real. Foi o meu primeiro mestre. Eu tinha que fazer um esforço enorme, juntava o dinheiro da mesada que o meu pai me dava quando estava na primária, tinha, sete, oito anos, para depois pagar as aulas no picadeiro do Mestre Mota do senhor Ralão, que era ali ainda em Sete Rios, na Calçada de Palma, apanhava o cacilheiro ao sábado para Lisboa, o meu tio Serra ia-me buscar, eu ia com ele, montava a cavalo, enfim, era um ritual semanal. E no fundo não tinha mais nenhum apoio, não conhecia ninguém. Mas tive sempre muita capacidade de beber e aprender tudo o que me diziam, tudo o que via. Fui aprendendo e fui-me dedicando àquilo que eu gostava, àparte da escola. Fui sempre bom aluno, talvez até um bocadinho acima da média…


"Vim do nada, nasci e cresci em Almada, que
era uma 'zona árida' para quem queria ser
cavaleiro tauromáquico, mas onde havia
um ambiente muito aficionado"


- E lembras-te quando foi a primeira vez que toureaste?


- Lembro-me perfeitamente. Mas voltando um pouco atrás, eu acho que a coisa mais importante que tive na minha vida foi essa bandeira de liberdade, que talvez tenha sido a coisa que suscitou mais invejas e mais ataques ao longo da minha vida. Foi exactamente o poder que tem essa minha bandeira e essa minha liberdade. Liberdade da pessoa nascer do nada e construir uma carreira como a que construí. Não fui eu que escolhi, foi a minha vida que me escolheu a mim. Eu lembro-me de ter sete, oito anos, passar à frente do Campo Pequeno e ficar impressionado com aquele edifício, com a importância do toureio, sonhava um dia alcançar aquilo, mas era para mim um sonho quase inalcançável, uma coisa onde era absolutamente difícil chegar, mas eu sonhava. Depois há aquele episódio muito engraçado do António Badajoz, que está contado nos meus livros. O António Badajoz, que eu conhecia de ver nas praças quando ia aos toiros com os meus avós maternos, foi um dia a Almada tratar de umas coisas ao tribunal e eu vi-o na rua, vinha da escola de bicicleta. O António Badajoz era uma figura dentro de uma arena. Dirigi-me a ele, apresentei-me, disse-lhe que queria ser toureiro, que tinha uma égua e que gostava que ele um dia me visse a montar, nunca pensei que me ligasse, imaginei que me ia mandar à fava, mas ele achou muita graça e disse-me para esperar um bocado, foi ao tribunal tratar dos seus assuntos e estive ali cerca de meia hora à espera dele. Quando voltou disse-me: “Então vamos lá ver essa tua égua”. Fomos à quinta, montei a égua, ele achou muita graça e disse-me: “Eu é que te vou pôr na primeira corrida”. E assim foi. Eu tinha 14 anos, foi em Campelos, Torres Vedras, numa praça desmontável, toureei com um rapaz que também estava a começar na altura, era o Nascimento Duarte. Lá fui com a minha égua e com mais um cavalo…


- Estávamos em que ano?


- 1972, 1973, por aí. Foi quando toureei pela primeira vez.


- E depois a prova de cavaleiro praticante foi na Malveira?


- Não. Foi em Almeirim. Mas, continuando o que estava a dizer, depois o António Badajoz nunca mais me deixou. Entrou na minha carreira desde amador e esteve sempre a meu lado, ora como apoderado, como bandarilheiro, como conselheiro, como grande amigo. Até à sua retirada das arenas, esteve sempre comigo. As pessoas que se cruzaram comigo na minha vida foram todas muito importantes. O meu pai não me dava dinheiro para a minha carreira, sempre deu muito valor ao dinheiro, apoiava-me muito, mas não me apoiava monetariamente e portanto o meu orçamento era baixo. O Emídio Pinto, daí a nossa grande amizade ainda hoje, vendeu-me na altura um cavalo, ele e o pai, que era um Senhor. Venderam-me o cavalo barato, dentro do meu orçamento, era um cavalo a que eu chamei Peregrino, que no fundo foi um cavalo professor para mim e foi nele que me estreei. Na altura, com o António Badajoz, frequentava também muito a casa do José João Zoio, em Colares. Mas voltando à prova de praticante, foi em Almeirim, pela mão do António Badajoz. Tinha na altura um bom cavalo que era o Amendoim, que depois acabou por ser campeão nacional de raides com o Manuel Sobral da Costa, que era um grande amigo da casa e mais tarde foi meu padrinho de casamento.


- E é ainda como cavaleiro praticante que decides ir tourear para Espanha…


- Sim. Entretanto surge outra pessoa importantíssima na minha vida que é o Jacinto Alcón. Na altura havia uma carreira emblemática, que era a carreira do João Moura, tinha acabado de fazer um enorme sucesso em Espanha e eu achei que era importante trilhar um caminho semelhante. E emigrei para Espanha, sózinho, com os meus cavalos. Sem grandes ajudas, recebido por uma pessoa extraordinária que é o Gregório Moreno Pidal e foi ele que me apresentou o Jacinto Alcón, que na altura apoderava os cavaleiros mais importantes de Espanha. Nessa altura tive duas ou três temporadas de muito sucesso em Espanha, ainda como praticante. Houve duas temporadas em que praticamente só toureei em Espanha, em 1977 e 1978. E no princípio de 1979 volto outra vez a tourear em Portugal. Já com o rótulo de figura. Na altura, o meu cachet seria o segundo ou terceiro melhor do país. E ainda não tinha tomado a alternativa. Vou tourear ao concurso de ganadarias em Évora e tenho um êxito muito grande. Depois venho ao Campo Pequeno, ainda como praticante…


- A primeira vez, depois de em miúdo lá passares e pensares que era um sonho impossível…


- Exactamente. Era uma corrida de oportunidade aos novos e eu estreei-me no Campo Pequeno no mesmo dia em que se estreou o Vitor Mendes. Mas não podia ter corrido pior… Toureei um toiro de Pinto Barreiros, pequeno, mas muito bravo e complicadíssimo e que me pôs um bocado fora do sítio… Andei com um cavalo que tinha na altura que era o Gallito, mas não foi uma estreia nada auspiciosa no Campo Pequeno. Apesar do Campo Pequeno se tornar depois numa praça emblemática para a minha carreira. Mas depois em 1979 venho a Évora e tenho um êxito enorme no concurso de ganadarias, como disse atrás, mas como o meu cachet era alto, a estratégia era aquela que era seguida pelo João Moura, que era o maior exemplo, ou seja, tourear mais em Espanha e menos aqui, isto tudo antes da alternativa. E é quando aparece na minha vida outra pessoa importantíssima, o Raul Nascimento. Vem-me contratar para a Corrida da Imprensa em Lisboa, que ele organizava todos os anos com o José Sampaio e era talvez a mais importante da temporada. Toureei eu e o Luis Miguel da Veiga e a pé era o “Niño de la Capea” e outra grande figura de Espanha…


- Talvez o Ruiz Miguel…


- Talvez, mas não me lembro. Eram duas figuras muito importantes de Espanha. Toureio essa corrida e tenho um êxito enorme no Campo Pequeno. Naquela altura havia um prémio para a melhor lide no Campo Pequeno e eu ganhei esse prémio, dado por várias instituições. O Raul Nascimento ficou a meu lado como apoderado e grande amigo até ao final da sua vida.


"Na altura havia a carreira emblemática do
João Moura, que tinha acabado de fazer 
um sucesso enorme em Espanha e eu
achei que era importante trilhar
um caminho semelhante"



- Eram outros tempos, Paulo…


- Completamente diferentes. Havia aquela elite que gravitava à volta da empresa do Campo Pequeno, formada por pessoas de um gabarito intelectual muito grande, os jornalistas José Sampaio e João Garin, o José Cardal, o Américo Pena, o Alfredo Ovelha, o José Agostinho dos Santos, o Dr. Paulo Rodrigues. Eram pessoas “com mundo”, com uma visão muito interessante do toureio. E o Raul Nascimento, que era jornalista, fotógrafo e em tempos tinha sido toureiro cómico, estava também muito ligado ao meio, movia-se muito bem nessa elite. E tudo isso marca a minha vida, já profissional, embora ainda antes da alternativa.


- E lembras-te exactamente do dia da tua alternativa (15 de Junho de 1980) na Monumental de Santarém?


- Lembro-me perfeitamente. Foi um dia que teve episódios extraordinários. Para já, era uma corrida da televisão, da RTP, absolutamente esgotada um dia ou dois antes, quando a Feira do Ribatejo era ainda em redor da praça, tive que ir para a praça com batedores da Polícia à frente do carro, era um ambiente de alta categoria. O meu padrinho de alternativa era um cavaleiro que eu admirava imenso, foi talvez o cavaleiro mais decidido e mais valente que eu conheci, o José João Zoio. Além disso, era um grande amigo, uma grande pessoa, um homem de muito bom coração. E a testemunha era o Manuel Jorge de Oliveira, que era um figurão, estava no seu auge, tinha uma força absolutamente inacreditável. E a pegar, nada mais, nada menos que os forcados de Santarém e Montemor. E a ganadaria era Palha Blanco. Não podia haver melhor. E houve um episódio muito curioso…


- Conta…


- O António Badajoz cuidava da minha carreira e também da do Zoio. E ali era a minha alternativa. Ele tinha ido ao campo escolher os toiros. E à hora do almoço chega o moço de espadas e diz-me: “Há um problema, não há corrida”. E fiquei aflito. E o que tinha acontecido? Chegados ao sorteio, o António Badajoz verificou que não tinham vindo dois dos toiros que ele escolhera e disse que sendo assim não havia corrida. Obrigou a que fossem ao campo buscar os tais dois toiros e só quando eles chegaram é que a corrida foi para diante. Era a força e a determinação do António Badajoz. Era um homem que punha as coisas no sítio! Era de uma rectidão, de um carácter, de uma seriedade, tinha uma visão do que era a Festa, e tinha uma garra e um autoritarismo que também fazia parte da sua personalidade, mas que era um autoritarismo generoso e sábio.


- Foi uma corrida de grande êxito…


- Nem foi uma das minhas corridas mais emblemáticas. É como um casamento… o dia da alternativa, depois nem nos lembramos bem das coisas. Era tanta gente, tanto movimento, tantas emoções… Toda a preparação da alternativa, depois a corrida e depois o pós-alternativa, o jantar, tudo aquilo foi grandioso…


- Até o então primeiro-ministro Sá Carneiro foi à arena…


- Exactamente, ao intervalo foi à arena dar-me um abraço e cumprimentar todos os artistas. Tudo aquilo foi muito grande e portanto se me perguntares exactamente o que se passou naquele dia, há coisas de que nem me consigo lembrar, foram muitas emoções, demais.


- Depois estiveste muitos anos na primeira fila. E quem foram os teus maiores rivais, Paulo, quem te “apertava” mais?


- Toureei com todas as grandes figuras de então. Ainda apanhei o Batista em grande forma. Toureei muito com o senhor David Ribeiro Telles, com o Mestre, que era realmente um deleite vê-lo a cavalo, sentir a forma como interpretava o toureio. Toureei com o senhor Manuel Conde. Toureei muitíssimo com o Luis Miguel da Veiga, com o Zoio. Isto muito no princípio dos anos 80. Mas repara, nenhum destes cavaleiros que referi os senti como rivais, senti-os sempre como mestres, como professores. Vi-os sempre como grandes figuras. Mesmo o Zoio, que estava mais próximo de mim pela idade e pela nossa amizade, até o Emídio Pinto, com quem toureei também muito, mas nunca os senti ou os vi como rivais, vi-os como mestres, com os quais eu aprendia todos os dias.


- Concerteza, mas depois vieram então os rivais…


- Depois, na continuação dos anos 80 e nos anos 90, até ao ano 2000, o grande rival foi sempre o João Moura, até por causa daquele período em que toureámos os dois em Espanha e chegámos a formar um quarteto com o Álvarito Domecq e o Manuel Vidrié, outras duas grandes figuras com quem toureei muito. Ficou uma grande amizade com o Álvarito, como vês é o primeiro nome da minha Comissão de Honra. E com o Vidrié, que foi dos maiores cavaleiros que vi pisar uma arena. Mas o Moura era um figurão e houve na realidade uma grande rivalidade entre nós, mas foi uma rivalidade formada pelo próprio público. Havia os partidários de um e os partidários de outro. Não foi uma rivalidade feita nem trabalhada, foi natural. No fundo, depois, foi bem aproveitada pelos empresários, porque nós enchíamos as praças.


- Mas houve mais rivais, quais?


- Depois havia um toureiro que era absolutamente arrasador, que era o Manuel Jorge de Oliveira, sobretudo no tempo dos cavalos Elmo e Bafejado e depois com outros cavalos também, mas sobretudo com esses dois ele era insuperável. Era o toureiro que eu mais sentia. Quando toureava com ele e estava lá fora a aquecer os cavalos, porque era mais novo e toureava a seguir a ele, estava a ouvir os aplausos e a euforia do público e pensava: mas o que é que eu vou fazer agora a seguir ao Manuel Jorge? Pensava para mim que o melhor era ir-me embora, o que é que eu ia fazer a seguir, não havia nada a fazer… Era um toureiro de uma força arrasadora. Foi dos toureiros que eu mais senti como insuperável. Houve também uma rivalidade grande entre nós, mas não era bem como a rivalidade dos mouristas e dos caetanistas, era diferente. Depois havia outro toureiro brutal, desde amador, que era o Rui Salvador. De uma raça e de uma valentia enormes. E teve cavalos extraordinários para a época e que ele aproveitou ao mais alto nível. E aparece também o João Ribeiro Telles…


- Que formou contigo e com o João Moura o primeiro Trio de Ouro, depois conhecido também como Trio da Apoteose, assim baptizado pelos empresários Rogério Amaro e “Nené”…


- Sim, formámos o primeiro Trio de Ouro e foram o Rogério e o “Nené” que assim o baptizaram. O Moura, eu e o João Telles. O João Telles era também um toureiro com um potencial artístico brutal e que também tinha vindo de Espanha com uma carreira e um percurso notável. Demos os três uma volta a várias praças do país sempre cheias. Depois apareceu aquele “vulcão” que foi uma coisa única, que era o Bastinhas e surge o novo Trio de Ouro comigo, com o Moura e com o Joaquim Manuel. E que foi também uma coisa brutal nesse tempo. Houve um ano em que no Campo Pequeno toureámos três quintas-feiras seguidas, só com uma alternada, toureámos duas seguidas, depois houve outra corrida e na quinta-feira seguinte toureámos outra vez e com a praça sempre cheia. Enchemos várias praças do país também com esse segundo Trio de Ouro idealizado outra vez pelo Rogério Amaro e pelo “Nené”. E havia outro empresário nesse tempo que organizava grandes corridas, o inesquecível José Lino, sobretudo na Moita. Foi também muito importante na minha carreira. E outros. Lembro-me da empresa da Nazaré, que foi sempre uma empresa muito caetanista. Mas voltando ao José Lino, ainda há dias estava a olhar para um cartaz da Feira da Moita de 1995, em que houve sete corridas, todas com figuras e eu fui o único cavaleiro que nesse ano toureou em duas, e logo as duas melhores da Feira. Os dois Domecq, o Moura e eu numa corrida e na outra a dos seis cavaleiros de quinta-feira.


- Falaste da Nazaré, outra praça onde tiveste sempre muito cartel…


- Sim. Há um cartaz que eu não consigo encontrar, precisamente da Feira da Nazaré, mas de que me lembro muito bem. A Feira de Nossa Senhora da Nazaré era sempre em Setembro e tinha três corridas seguidas. E num ano eu toureei as três, o que demonstra a força que tinha na altura. Mas interrompi-te, estávamos a falar dos toureiros do meu tempo. E depois aparecem o António Telles e o João Salgueiro. O Salgueiro foi dos toureiros que vi tourear melhor, de uma inspiração, de uma pureza, um toureiro único também. E o António ainda hoje é a grande figura que é. Àparte muitos outros que apareceram, estamos a falar apenas de alguns, mas vieram depois outros grandes toureiros também.


"Se nascesse agora e olhasse para 
o que é hoje o mundo do toureio, se
calhar não tinha querido ser toureiro..."


- Paulo, tudo mudou, os anos passaram, hoje nada é igual a esses tempos-outros, concordas?


- Absolutamente. Essa pergunta é muito interessante, porque eu acho que são dois universos completamente diferentes. Se eu nascesse agora ou nascesse há quatro ou cinco anos e olhasse para o que é hoje o mundo do toureio, se calhar não tinha querido ser toureiro.


- É na verdade muito diferente, tudo mudou…


- São duas coisas totalmente diferentes. Não só o mundo empresarial, como a aficion, como aquilo que era importante para se ser figura do toureio, ou seja, como as bases do toureio, como as bases de equitação, o que era importante para se pôr os cavalos, tudo isso mudou tudo. São dois universos absolutamente distintos. E aquilo que me levou a ser toureio não tem só a ver com a aficion. Eu acho que ninguém elege uma vida tão difícil e tão dura, ainda por cima quem teve um percurso como eu, que vim absolutamente do nada, sem ajudas de família, sem ajudas de nada, ninguém na minha família estava ligada aos toiros, ninguém elege uma vida assim se não houver, a par do amor àquela arte, um desejo de ser alguém na vida, de ter prestígio, de ser alguém na sociedade. E era isso que ser figura do toureio significava nessa altura. A relação do público com o toureiro era uma relação muito respeituosa, exigente, mas respeituosa. Era raríssimo alguém do público dirigir-se a um toureiro tu-cá-tu-lá, havia sempre um género de uma barreira de admiração. Tu és do tempo em que, falo dos anos 80, as figuras do toureio se cruzavam com as grandes figuras do mundo intelectual, do mundo artístico, do mundo político do país, dos media, da televisão, das revistas. O toureio era uma coisa muito importante, era uma coisa grandiosa. Ser toureiro tinha importância na sociedade, éramos vistos com respeito e com admiração.


- Os toureiros eram ídolos do país e do povo e hoje não são.


- Sim, nós éramos ídolos, como o são os futebolistas, os actores. Ainda hoje, eu que gosto de ter uma vida discreta e recatada, quando vou a um restaurante ou a qualquer outro sítio, encontro aficionados que me reconhecem imediatamente e me vêm cumprimentar. E que parece que se transportam para esse outro tempo, tratam-me ainda com essa deferência com que se tratavam os toureiros. Havia uma maneira de lidar com as figuras do toureio que era totalmente diferente do que é hoje. Lembro-me de uma vez em que estava a aquecer um cavalo no pátio de quadrilhas do Campo Pequeno e a porta estava aberta e o porteiro viu passar na rua, a olhar lá para dentro, o senhor Manuel Conde. E imediatamente se lhe dirigiu com todo o respeito e lhe perguntou se queria entrar. Não havia nem senhas, nem essas coisas de hoje em dia. O porteiro simplesmente viu passar o senhor Manuel Conde e dirigiu-se-lhe a perguntar se queria entrar. Isso acontecia. Não me lembro de chegar à porta de uma praça de toiros e ficar à espera que me trouxessem uma senha… As figuras do toureio tinham um acesso aberto e depois também não acusavam disso, sabiam estar. Era diferente. Muito diferente. Os empresários eram diferentes, lembro-me da grandeza de um Rogério Amaro, de um José Lino, de um José Brás que levava a praça de Santarém, ainda me lembro muito bem, de um Celso dos Santos, de um Edgar Nunes, o Joaquim Nunes, o nosso amigo Francisco Morgado, que fazia parte desse núcleo em Santarém, pessoas muito aficionadas e muito distintas. Évora era a mesma coisa. Alcochete também, foi uma praça em que tive também muito sucesso, toureei uns vinte e tal concursos de ganadarias seguidos. O António José Penetra era uma pessoa incrível. A praça parece que estava pendente dele e de outros. Assim que o Penetra se levantava a aplaudir, levantavam-se todos atrás dele. Em Évora, acontecia o mesmo com o senhor José Barradas e o senhor António Torres, estavam normalmente por cima dos curros e se eles se levantavam, o público levantava-se também. As pessoas podiam estar a gostar, mas tinham que ter a certeza de ver que os mestres aplaudiam e depois aplaudiam também. O senhor Murteira também. Havia coisas muito interessantes. A forma da contratação, que era valiosa. Eu também vivi num período em que se podia viver do toureio, eu vivi do toureiro, as figuras do toureio viviam do toureio, era uma actividade profissional. E rentável. Era tudo outro universo.


- Paulo, que grandes corridas te marcaram?


- Lembro-me de várias, se fizer aqui um esforço lembro-me de muitas. Lembro-me dessa que te falei do Campo Pequeno, a Corrida da Imprensa. Lembro-me de uma noite em Cascais numa Corrida dos Comandos em que tive um êxito brutal e era também uma corrida muito importante na temporada, toureei nessa noite com o cavalo Tupilupi, que foi o meu melhor cavalo…


- Ia exactamente perguntar a seguir quais foram os melhores cavalos da tua vida…


- Houve vários, já lá vou, mas deixa-me lembrar outros triunfos que me marcaram. Lembro-me de um êxito muito grande em Saragoça com o cavalo Vila Franca, na Nazaré lembro-me de êxitos importantíssimos, lembro-me de ter saído duas vezes em ombros do Campo Pequeno, numa altura em que as saídas em ombros não tinham a ver com lenços nem com ordens do director de corrida. Saí em ombros com o Moura e o Álvarito Domecq na noite da sua despedida em Lisboa e saiu depois em ombros quando toureei mano-a-mano com o José Tomás. Eram saídas em ombros espontâneas e quase difíceis de fabricar, porque quem saísse em ombros sem o merecer arriscava-se a uma vaia e ninguém queria isso. E na Moita saí duas vezes em ombros, mas foi sair em ombros e ir parar só em casa do Pires da Costa, que como sabes nem fica muito perto da praça, ia pela avenida toda abaixo aos ombros. E saí também duas vezes em ombros de Vila Franca. E está tudo dito. Falo de praças em que não há saídas em ombros de qualquer maneira… Portanto, todas estas corridas de que falei foram corridas que me marcaram. Tive outras faenas tecnicamente mais perfeitas que se calhar algumas dessas, mas talvez não tenham tido o impacto tão grande que muitas destas de que falei tiveram. Tive também uma actuação brutal em Vila Franca, com o Vidrié e o Manuel Jorge de Oliveira, em que toureei o toiro só com um cavalo que era o Estoque.


"Não foi possível comemorar os 40 anos
no Campo Pequeno por vários factores, 
mas todos me puseram tudo à disposição,
desde o Rui Bento e a Paula Mattamouros
antes de saírem, ao próprio Álvaro Covões
antes de adjudicar a praça e agora o
Luis Miguel Pombeiro"


- Valeu a pena tudo, Paulo, olhas para trás e reconheces que valeu a pena?


- Valeu imenso a pena. Por graça costumo dizer que tive dois dias muito acertados na minha vida. O primeiro dia foi quando escolhi ser toureiro e lutei para fazer esse percurso. E esse dia não me lembro qual foi, foi um dia algures na minha infância, não me lembro exactamente em que dia foi. Pensei para mim: vou estudar até ao fim, como o meu pai queria, mas o que eu quero ser é cavaleiro tauromáquico. Essa decisão foi a mais importante da minha vida. Porque o toureio deu-me tudo. Tudo o que eu tenho hoje toda a minha vida empresarial, como treinador de Dressage, como cavaleiro, como criador de cavalos, como criador de toiros, toda a minha família no fundo, a minha Mulher conheci-a neste meio, provavelmente não a teria conhecido se não fosse toureiro.


- E a segunda decisão mais acertada, qual foi?


- Foi em Agosto de 2012 no Campo Pequeno quando me retirei. Sem dizer nada a ninguém, como tu sabes. Saquei de um lencinho branco e despedi-me nessa noite. Toureava com o meu filho João e com o Vitor Mendes. Achei que era a altura certa de me retirar, não só a nível pessoal, como a nível profissional.


- Mas no fundo nunca te retiraste definitivamente, ainda toureias sempre uma ou duas corridas por ano…


- Eu considerei essa noite como uma retirada, retirei-me da actividade normal, de tourear muitas corridas e de encarar o toureio como encarava até esse momento. Depois continuei a tourear uma, duas vezes por ano, mas um bocadinho mais, como dizem os espanhóis, como uma “gesta”, como um desafio a mim próprio. Se bem que a minha vida como cavaleiro seja muito activa, continuo a montar sempre, continuo dedicado aos cavalos, à Dressage, até pela carreira da minha filha Maria, mas não toureio e eu nunca fui um toureiro que gostasse de tourear no tentadero. Não gosto de tourear em casa, para mim não faz sentido o toureio sem o público. Só existe uma faena com público, é uma arte em que o público é parte integrante. Não sou um enorme aficionado a tourear no campo, a tourear em casa no tentadero. Por isso e como não estou toureado, é sempre um desafio enorme sempre que me deixo anunciar. Sinto que não tenho a prática e a rodagem de quem está toureado.


- Foi um azar o 40º aniversário da tua alternativa coincidir com este ano horrível da pandemia, certamente tinhas projectado várias comemorações que acabaram por não se realizar?


- Não estava à espera de muitas comemorações, como também nunca estive à espera de comemorações nos 30 anos. E foi uma corrida muito bonita no Campo Pequeno. Mas nunca imaginei umas grandes comemorações dos 40 anos. Quando comemoramos 40 anos de alternativa, isso significa que temos 60 e nunca sabemos bem o que se vai passar na semana seguinte (risos)… Não se pode fazer já grandes projectos e eu não faço grandes projectos. Não fiz grandes projectos para estes 40 anos. Não tive vontade de muito mais. Só havia dois sítios onde eu poderia tourear nos 40 anos, Lisboa, por ser Lisboa ou Monforte, pelo significado enorme que tem na minha vida, foi onde conheci a minha Mulher, foi onde foram criados os meus filhos, onde toda aquela gente me acolheu como um filho. Tive um entusiasmo enorme do presidente da Câmara, da Paróquia, de toda a gente. E é em Monforte que vou comemorar os 40 anos de alternativa no dia 10 de Outubro.


- Esteve para ser no Campo Pequeno e houve mesmo conversações com o empresário Luis Miguel Pombeiro, seria nesta última corrida do abono, a desta quinta-feira. O que falhou?


- Não foi possível por certos factores. Deixa-me dizer que tanto o Rui Bento como a Paula Mattamouros, antes de saírem, como o Luis Miguel Pombeiro, como o próprio Álvaro Covões, antes de adjudicar a praça ao Luis Miguel, todos eles me puseram tudo à disposição. Havia no entanto, agora nesta fase do Luis Miguel, compromissos que ele tinha assumido para a data que tínhamos destinado, que era exactamente esta de 1 de Outubro, antes chegou a falar-se que poderia ser no dia 2, nomeadamente no que diz respeito à ganadaria, compromissos esses que ele tinha, e muito bem, que cumprir, mas que não se coordenavam com a minha vontade, porque eu considerava que num dia como este os toiros tinham que ser da minha ganadaria, que é uma coisa que faz parte também da minha carreira e da minha história. Respeito imenso a ganadaria que ele tinha já contratada, a de Passanha e nem me passava pela cabeça pedir para que a substituísse, por isso preferi sair eu, retirar-me da ideia, porque não era bem isso que eu estava a pensar. E decidi então não tourear, até que surgiu a possibilidade de fazer a corrida em Monforte.


- É o cartel que idealizavas?


- Foi o cartel que idealizei. São os toiros da ganadaria da casa e estão representadas as principais figuras ou os seus filhos, que passaram esse período grande comigo. E que são amigos e que foram rivais. O João Moura era para mim indispensável figurar no cartel. É família, é primo direito da minha Mulher, hoje em dia convivemos muito diariamente e há para trás todo um historial da rivalidade e das grandes corridas que toureámos juntos. E o João Salgueiro, que embora retirado nem pestanejou e me disse logo que contasse com ele. Foi dos melhores toureiros que eu conheci e dos maiores que vi pisar uma praça. Depois o filho do Bastinhas, porque o pai não pode estar, infelizmente, senão estaria seguramente. O meu filho. E o filho do Emídio, um grande amigo, um grande colega e também um toureiro com quem toureei muito. E o grupo de forcados de Monforte, como não podia deixar de ser.


"Acho que no futuro vou ser lembrado
como uma pessoa que deu tudo de si,
fez o seu melhor, sempre com
profissionalismo e honradez"


- Paulo, atingiste todas as metas e todos os objectivos pretendidos ou ficaram coisas por fazer?


- Acho que ficaram muitas coisas por fazer, muitas mesmo. Ficam sempre. Um artista nunca se considera realizado. Houve coisas que foram metas importantes, a corrida dos seis toiros no Campo Pequeno em 1996 com os toiros da minha ganadaria, com a maioria dos cavalos do meu ferro, em Lisboa, julgo que aconteceu três ou quatro vezes, só o Moura antes de mim lá tinha toureado seis toiros, que me lembre. A corrida do mano-a-mano com o José Tomás, também em Lisboa, foi muito importante. Toureei com as máximas figuras do toureio a pé, o Ojeda, o “Capea”, o Manzanares, o Dámaso González, com todos os cavaleiros do meu tempo. Mas ficou muita coisa por fazer. Há pouco esqueci-me de Angra do Heroísmo e da Praia da Vitória, na Ilha Terceira, onde também tive triunfos muito importantes. Mas voltando à tua pergunta, houve muita coisa que ficou de facto por fazer. Isto de tourear a cavalo está sempre muito pendente dos cavalos, como sabes,  e muitas vezes houve cavalos importantes que estavam lesionados e limitavam as possibilidades do sucesso. Tive cavalos muito importantes na minha vida, mas o melhor foi o Tupilupi…


- Nunca percebi se esse cavalo se chamava assim porque tinha qualquer coisa a ver, seria dele, teria o ferro dele, com o Engº José Lupi…


- Não tinha nada a ver. Os andaluzes no flamenco, faz parte da cultura gitana, usam muito um termo que tem a ver com a água, com a oxigenação, que é precisamente a expressão “tupilupi”, eles dizem isso muito. Ninguém sabe bem o que é, é um termo gitano que tem a ver a oxigenação da arte, com a inspiração. Eu nessa altura estava muito em Espanha e mais concretamente em Jerez com o Álvarito e esse termo inspirou-me para dar esse nome ao cavalo, que foi de facto o melhor que eu tive. Depois o Bolero foi o cavalo mais constante, que raramente tinha uma actuação menos boa. Toureei várias épocas com ele entre 45 e 55 corridas. Foi com o Bolero que saí em ombros da Moita. Outro cavalos muito importante foi também o Vila Franca e finalmente o Distinto. Foram, digamos, os cavalos mais importantes. E agora, pela longevidade e pelo prazer que me tem dado às vezes tourear nele, e o João toureia sempre com ele, há o Xispa, que ainda hoje é um cavalo importante na nossa vida.


- E depois da corrida de Monforte, vamos continuar a ver-te tourear, nem que seja uma vez por ano?


- Não faço ideia! Eu não tenho vontade de tourear muito mais. Como te disse há pouco, não fiz planos para comemorar os 30 anos, nem os 40 anos. E não faço planos também para a frente. Se acontecer, aconteceu, mas não faço grandes planos.


- Para terminar, como é que no futuro, daqui a muitos anos, os aficionados se vão lembrar de Paulo Caetano?


- Eu acho que os aficionados se vão lembrar de mim como hoje se lembram. Uma das coisas que mais prazer me dá, talvez o maior retorno que eu tive sempre dos aficionados, foi, é, um retorno de respeito, de uma admiração serena e respeituosa. Como te disse no princípio, o privilégio de ter uma bandeira de liberdade, de ter construído uma carreira do nada, é um valor que fica e que pode ser bombardeado, mas é meu e daqueles que fizeram uma carreira como a minha, que foram vários, mas também houve vários que não fizeram. As pessoas acabam sempre por reconhecer esse esforço e esse trajecto. E é assim que eu acho que vou ser lembrado, com respeito, como uma pessoa que deu tudo de si, fez o melhor possível, sempre com profissionalismo e com honradez. E se for assim, fico muito contente, porque é isso tudo o que fica, tudo o resto é muito efémero.