António Pinto Basto lançou o primeiro disco em 1970, mas foi em 1988 que “A Canção da Rosa Branca” (letra de seu avô e música sua) lhe mudou a vida por completo. Acabou-se o engenheiro mecânico, ficou o fadista. Está a comemorar meio século de carreira neste ano horrível da pandemia e acaba de lançar o “Eléctrico 28” com 17 originais e três “brincadeiras”, como ele diz. Nesta entrevista, viajámos pela sua história. Bonita, intensa, portuguesíssima e cem por cento fadista. É o nosso António que aqui fica - por ele próprio. Desde o princípio e até hoje. Um fadista consagrado, admirado. 50 anos depois. E que promete continuar, como diz Maria da Fé, "até que a voz lhe doa"
Entrevista de Miguel Alvarenga
- 50 anos de carreira é uma vida, António. Que balanço fazes deste meio século de Fado?
- É, de facto, uma vida! E são, mesmo, 50 anos! Contra factos não há argumentos! Foi em 1970 que lancei o meu primeiro disco, em 1970 que cantei pela primeira vez num programa de televisão e foi em 1970 que dei as primeiras entrevistas em jornais, revistas e rádios. Em 1972 saiu um segundo disco e em 1973 um terceiro. Porém, há que dividir este espaço de 50 anos em dois períodos: um primeiro, de 18 anos, em que a carreira artística assumiu um papel mais secundário, como que uma espécie de hobby e um segundo, de 32 anos, em que a carreira passou a ser a tempo inteiro, exclusiva e a minha única profissão e actividade. O balanço que faço é positivo. Muito positivo! Assumir a carreira a 100% constituiu a minha realização pessoal e não há nada melhor que isso. Como alguém disse: "Faço o que gosto e ainda me pagam para o fazer!". Felizmente que não sou único e que isso pode acontecer em qualquer profissão. É, aliás, o que mais posso desejar para todas as pessoas.
- Gravaste o primeiro disco em 1970, mais dois em 1972 e 1973, no meio fadista todos te conheciam, mas em 1988 o país inteiro passou a conhecer-te muito melhor com a “Rosa Branca”, uma letra de teu avô materno João Vasconcellos e Sá. É ainda hoje o grande ex-libris da tua carreira?
- Em 1988 gravei o álbum (vinil; ainda não havia CD) "Rosa Branca" mas, francamente, gravei-o com a total convicção de que iria continuar a minha vida de engenheiro e o Fado continuaria a ser um complemento. Fi-lo, e já tenho usado essa imagem, como um pintor amador que, ao longo de anos, tivesse pintado uma série de quadros que apenas eram conhecidos pelos seus familiares e amigos mais íntimos, e decidisse fazer uma exposição para mostrar a todo o público, em geral, a sua obra. Assim fiz e esse álbum teve uma aceitação tão grande, tão inesperada para mim e tão arrebatadora, ao ponto de me levar, em menos de um ano a ter mais de 120 espectáculos, que isso provocou uma total impossibilidade de conjugar as duas profissões. Ganhou aquela que, afinal, mais me realizava! Obviamente que a razão mais forte do êxito desse álbum foi "A Canção da Rosa Branca" (que teve que ficar registada com este título porque já existia o título "Rosa Branca", ainda que os versos do meu avô fossem anteriores, mas não registados) com música minha e que, efectivamente, constitui o ex-libris da minha carreira.
- Tiraste o curso de Engenheiro Mecânico, alguma vez exerceste ou a tua “engenharia” foi sempre o Fado?
- Tirei o curso de Engenharia Mecânica (ramo de Produção e Construções Mecânicas) no Instituto Superior Técnico, curso pré-Bolonha (5 anos) com a classificação final de 13 (o Fado não me permitiu mais...). Como já dei a entender acima, trabalhei nessa carreira de engenheiro. E foram 10 anos de Sr. Engº... Depois... o Engº foi para a gaveta!
Com os quatro filhos no Campo Pequeno no Concerto das Famílias |
- A década de 60 foi a época dos melhores fadistas? Amália, Hermínia, Maria Teresa de Noronha, Teresa Tarouca, Marceneiro, Carlos Ramos, Ferreira-Rosa, Fernando Maurício, João Braga?
- Sim, também partilho dessa opinião de que os anos de oiro do Fado foram os anos 60. Além desses grandes nomes que salientas, ainda outros mais se poderiam acrescentar a essa lista e havia um culto pelo Fado genuíno e pelo ambiente fadista que, entretanto, já bastante se diluiu. É indiscutível que vivemos um tempo em que o Fado até está bastante na moda e que até existem muito bons intérpretes mas... qualquer coisa mudou! Creio que já só os mais velhos podem perceber o tipo de mudança. O Fado adquiriu outro estatuto de show-business e perdeu algum do encanto e genuinidade que o caracterizavam. Não estou a criticar, estou a constatar.
- Quem foram as tuas grandes referências no Fado?
- O primeiro Fado que aprendi foi "O Embuçado" de João Ferreira-Rosa. Obviamente, este fadista foi uma das minhas primeira referências. Com Teresa Tarouca aprendi inúmeros dos agora denominados "Fados tradicionais" (denominação que eu não gosto, nem concordo...) e que fui, desde logo, e por ter um tão grande espólio de poesia de meu avô e de um tio, cantando com versos originais tendo, assim, um reportório próprio logo desde início. Aliás, nos três primeiros discos, esses de 70 a 73, só canto Fados ditos tradicionais, com novas letras originais. Mas, nas primeiras referências, tenho, forçosamente, que acrescentar Vicente da Câmara e Maria Teresa de Noronha. Claro que, obviamente, havia sempre mais alguma influência de um ou outro dos grandes fadistas que, nessa altura, abundavam e havia... Amália mas, neste caso... apenas para ouvir e apreciar mas não para tentar seguir...
- Nunca imitaste ninguém, foste sempre fiel a um estilo muito teu e, a meu ver, estás a cantar cada vez melhor. Fizeste o teu próprio trajecto sem grandes influências?
- Muito obrigado pelas tuas palavras. Lembro-me que, após a primeira apresentação na TV, em 1970, num programa chamado "Primeiros Aplausos", o temível (na altura) crítico Mário Castrim, escreveu que "o rapaz canta bem e só é pena que imite Vicente da Câmara"! Francamente, não me parece que isso tenha sido, alguma vez, muito notório mas, lá está o fenómeno de poderem sempre ser notadas influências de um ou outro. Tenho ideia que, no princípio tentava, mais, imitar o estilo de João Ferreira-Rosa. Mas, ainda bem que, afinal, se é como dizes, eu possa ter conseguido criar o meu próprio estilo. Isso é o mais desejável.
Aplaudindo numa corrida de toiros |
- A seguir ao 25 de Abril, chamaram “fascista” ao Fado e até à própria Amália… Depois vieram vocês, tu, o Nuno Câmara Pereira e muitos mais, que voltaram a dar ao Fado o seu lugar, concordas? Foi uma época complicada?
- Com o 25 de Abril, o Fado viu-se forçado a atravessar um deserto. Foi sobrevivendo em pequenos "nichos" e estava praticamente arredado das rádios. Alguns fadistas se foram conseguindo manter e outros recorrendo mais à canção e/ou baladas. O Fado estava mais como uma grande fogueira em que estivessem a atirar, sobre ela, baldes de água. E eis que surge uma voz a "fazer a ponte" entre o antes do 25 de Abril e o presente desse tempo (já anos 80). Uma voz que fez lembrar esses fados antigos que estavam na saudade dos portugueses. E a fogueira voltou a reacender com toda a pujança! É claro que me refiro a Nuno da Câmara Pereira. E o Fado voltou a dominar e a ouvir-se na rádio, tendo, até - imagine-se - conseguido conquistar a FM, coisa inédita pois, até então, apenas se ouvia Fado em onda média! Foi, já então nesse contexto, que a Polygram lançou o meu álbum "Rosa Branca" e eu, por meu turno com temas mais originais, beneficiei da "auto-estrada" já aberta pelo Nuno. E, a partir daí, o Fado não mais parou de crescer! (É claro que estes factos que descrevo, indesmentíveis - e quem quiser comprovar que verifique quem mais discos vendia nesses anos, entre 86 e 90 e quem mais espectáculos fazia - não constam, com a exactidão merecida, nos diversos - muitos - livros, entretanto escritos sobre o Fado).
- O facto de seres primo direito dos Grave alguma vez te “chamou” para as arenas? Ou preferiste sempre ficar pela bancada?
- Ah, ah, deixa-me rir!! Com efeito, o meu saudoso tio Joaquim Grave também, uma vez, numa tenta em Galeana (eu, miúdo...), resolveu "tentar-me" a mim. Muleta na mão, ali perfilado, lá estava eu diante da vaca e só me lembro do Xico Mendes, atrás de mim a dizer-me "António, estás cruzado"! Então e eu sabia, alguma vez, o que é que isso quereria dizer? É claro que, três segundos depois a vaca me elegeu o toureiro mais arrojado! Mais arrojado... pelo chão!!... E pronto, passei ao lado (pelo lado de baixo...) de uma grande carreira! (Não é assim que se diz?...)
- O Fado e os Toiros andaram sempre de mãos dadas?
- Penso que essa ligação entre o Fado e os toiros muito cedo se manifestou e perdurou. E penso que se tratou de uma ligação natural. Porque, afinal (e como diz a letra de um Fado), ambos são as formas de arte mais genuína e exclusivamente portuguesas. O Fado cantava-se nas esperas de toiros. A aristocracia boémia, dentro da qual se poderiam, certamente, encontrar alguns cavaleiros tauromáquicos, frequentava os bairros fadistas. Toureiros, forcados, lides históricas, situações ligadas ao mundo taurino, etc., sempre foram retratadas e cantadas em letras de fados. Sinto que o Fado e os toiros ainda continuam de mãos dadas.
Assistindo a uma corrida em Alcochete com sua Mulher, Nikas la Féria |
- As novas gerações “alegraram” o Fado, que noutros tempos era tristeza, era a “canção da desgraçadinha”? O Fado evoluiu?
- A maior evolução que o Fado pode ter tido foi com Amália. Caso para acrescentar: "E ponto final!". Com efeito, se não tivesse havido Amália, como seria o Fado actualmente? Podemos, até considerar que seria mais genuíno, eventualmente, até, ainda, com alguns indícios dessa "canção da desgraçadinha". Mais genuíno mas muito mais pobre. Amália abriu, totalmente, os horizontes ao Fado e deu-lhe todas as possibilidades de crescer e se desenvolver. E com uma enorme virtude (ainda que, a seu tempo contestada), a de manter Fado dentro do Fado que ela fazia evoluir. É claro que o Fado evoluiu muito desde aquele tempo em que começou a ser conhecido mas foi uma evolução por crescimento, alargamento e enriquecimento das suas características harmónicas. O problema é quando aquilo que se pretende considerar uma "evolução" passa a ser adultério. Assim como acrescentar natas a um cozido à portuguesa ou fazer uma açorda de alho alentejana com caril. Seguramente que estes pratos, se passassem a ser servidos, seria, seguramente, com um outro nome que não cozido à portuguesa e açorda alentejana. E é isso que não acontece com o Fado. Qualquer coisa que fazem que, de Fado, já nada tem mas que tem uma guitarra portuguesa a acompanhar, continuam a rotular de Fado, passando este a ser um saco enorme para onde atiram tudo. E esta é que já é uma falsa evolução.
- O Fado “induca”?
- A pergunta pode ser encarada de dois modos. Se for no modo jocoso, pejorativo e/ou, até ofensivo, a pergunta que fique com o interrogador que não merece resposta (eu percebo que se trata de uma alusão à frase de Vasco Santana, "Vasco Leitão" no filme "A Canção de Lisboa"). Sendo, efectivamente, com o sentido de o Fado poder educar, ou não, então respondo que sim, que o Fado pode, muito bem, ter um sentido educativo, a começar por ser um bom veículo de transmissão de boa poesia, de factos históricos ou curiosos, de sentimentos e emoções, além de, para os amantes de música, ser um bom princípio de aprendizagem de noções musicais e um bom começo para a prática de um instrumento musical como a viola ou a guitarra portuguesa.
- Ser fadista é…
- Ser fadista é saber respeitar o Fado.
- E agora fala-me do teu novo disco (cd). É uma espécie de “memórias” de 50 anos de carreira?
- O meu novo CD "Eléctrico 28" é fruto de um trabalho que durou 7 anos!!! Vários obstáculos foram surgindo, a começar pela partida do meu querido e já muito saudoso amigo e guitarrista desde a "Rosa Branca", José Luis Nobre Costa. Depois, ainda pensei em baptizar esse CD com o título "Bodas de Rubi", antevendo a possibilidade dele sair no ano 2015, quando completaria 45 anos de carreira (45 anos de "casamento" com o Fado). Mais alguns contratempos foram acontecendo, com o tempo a decorrer, muitos outros temas me surgiam que me davam vontade de os gravar e o CD, finalmente, poderia ter ficado pronto em 2019 mas, quando notei que 2020 era o ano em que comemoraria os meus 50 anos de carreira, então não tive dúvidas em deixar para este ano o lançamento do dito, mal sabendo eu o maldito ano que nos esperava! E, se o ano era 2020, então decidi que o CD teria 20 temas! São 17 originais e 3 "brincadeiras". Uma palavra para o produtor que foi Jorge Quintela que foi maravilhoso na imensa paciência, acompanhando, ao longo dos 7 anos, o que se ia produzindo e, com grande talento e competência finalizou um trabalho do qual me orgulho muito porque, passe a imodéstia, estou seguro que ficou muito bom! Não considero, de forma alguma, que seja um CD de memórias porque é, essencialmente um trabalho que traz 17 originais, entre estes, 5 fados ditos tradicionais, com novas letras e os restantes totalmente originais. Autores em que se podem encontrar nomes bem conhecidos e, de minha autoria, são duas músicas e uma letra. Os músicos que me acompanharam (e foram 12!!...) foram extraordinários de dedicação e fizeram um trabalho notável, digno de ser ouvido. Convido a todos para que deem um passeio neste "Eléctrico 28".
- O teu filho Gustavo, que foi forcado em Alcochete e é também um fadista “castiço”, vai ser o teu sucessor?
- O meu filho Gustavo, que foi, efectivamente, forcado em Alcochete, teve uma fractura de um dedo, num treino, e esse acidente veio em muito boa hora impedir a sua continuidade nessa nobre arte porque, para quem precisava tanto das mãos em boa forma, tendo em conta a profissão de músico, não era a actividade mais indicada! Mas devo confessar que tive muito orgulho enquanto tive oportunidade de o ver fardado de forcado. O Gustavo tem a profissão de músico, tem formação musical, está a tocar muitíssimo bem, mas a profissão que mais lhe desperta o seu empenho é, mesmo, a de cantar e, como dizes, é o que se pode chamar um fadista "castiço" que canta com uma entrega total que emociona muito quem o ouve. Do ponto de vista que é um fadista que é meu filho, poderá ser considerado meu sucessor mas, devo dizer que não o vejo, propriamente, com esse adjectivo porque acho que tem um estilo muito próprio, definido e identificável que se diferencia do meu. E ainda bem que assim é!
António com o filho Gustavo, um "castição" do fado, no Campo Pequeno |
- Projectos futuros?
- Oh meu caro Miguel! Projectos futuros?! Nesta maldita situação em que nos encontramos, em que o que mais me aflige é não saber quando nem como isto vai acabar, como é que podemos fazer projectos para um futuro desconhecido?... Bem, devo dizer que, antes disto tudo começar, tinha projectos, sim, tinha projectado um espectáculo baseado nos meus 50 anos de carreira. Um espectáculo em que interpreto fados desde 1970 até ao CD actual. Tive ocasião de fazer um desses espectáculos em Alcochete e outro em Santiago do Cacém mas a ideia era poder levá-lo a todo o nosso país. Por isso, assim, posso responder à tua pergunta dizendo que os projectos que tenho, para o futuro, são, especialmente, os de concretizar, logo que for possível, este meu espectáculo.
- Mais 50 anos de Fado, António?
- Infelizmente, sabemos bem que mais 50 anos é que não haverá... Mas não encontro em mim razões para parar e faço tenções de, tal como diz Maria da Fé, "cantar até que a voz me doa".
Fotos D.R., Emílio de Jesus/Arquivo, Maria Mil-Homens e M. Alvarenga