Miguel Alvarenga - Júlio André não concretizou o sonho de ser matador de toiros, mas foi - é - um dos bons bandarilheiros do seu tempo. E, sobretudo, um formador de toureiros. Foi, com o saudoso Manuel António, há trinta anos, o fundador da Escola de Toureio da Moita. Toureiro há quarenta e cinco anos, vestiu pela última vez o traje de luces em Setembro de 2018 em Elvas, naquela que foi a última corrida do eterno Joaquim Bastinhas.
"Quando cheguei ao hotel e me despi, não disse a ninguém, mas decidi que aquela era a última vez que me vestia de toureio. Sem nunca me despedir. Nunca me passou pela cabeça despedir-me da profissão que foi a minha vida. Serei toureio até morrer" - diz-me.
Amanhã, sábado, vai ser homenageado na praça da Moita - a sua terra adoptiva, onde se radicou muito cedo, depois de ter nascido ali ao lado no Montijo - num festival taurino que, para além do tributo tão merecido, tem como principal objectivo angariar fundos para o ajudar neste "grave cornada" que sofreu aos 63 anos, "cornada" de que fala sem complexos nem problemas e com o maior à vontade:
"Tenho um cancro, isto é uma doença que surge sem avisar e sem escolher idades. Mas não me rendi à doença, enfrento-a com a mesma coragem com que enfrentava os toiros, vivo cada dia sem pensar nisso, hei-de vencer! No IPO, naquele sétimo piso por onde andei em tratamentos, vi pessoas de todas as idades, crianças, jovens, idosos. Isto acontece quando menos se espera. Ando há um ano em tratamentos, a situação neste momento está controlada, mas nunca se sabe. E os tratamentos custam um dinheirão. Quando o Nuno Silva 'Rubio' e o João Prates 'Belmonte' decidiram levar por diante este festival, que já esteve para se realizar no início da temporada, eu disse-lhes para não se meterem nisso, que dava uma carga de trabalhos, mas eles não me deram ouvidos... e amanhã, lá estarei! Obrigado a todos!".
- Além de uma homenagem, que o Júlio merece, você precisa deste festival de amanhã? - perguntei-lhe, para irmos directos ao assunto.
"Sim, preciso deste apoio. Dei 45 anos da minha vida aos toiros, devo tudo aos toiros. E neste momento preciso de todos os amigos e de todo o público aficionado", respondeu.
A nossa conversa foi ontem no Samouco na tertúlia de Nuno Silva, o "Rubio" (que no próximo anos cumpre vinte anos de alternativa), bandarilheiro que começou na Escola da Moita com Júlio André e que é, juntamente com João Prates "Belmonte", organizador desta homenagem que amanhã vão fazer ao seu Mestre.
Apesar da doença, Júlio não larga o cigarro. "Devia deixar de fumar, mas, caramba, é um dos meus prazeres...". Está hoje com muito melhor aspecto e confiante na recuperação, depois dos muitos tratamentos a que foi sujeito.
Ontem no Samouco na tertúlia de Nuno "Rubio", com o seu antigo aluno |
Começámos a nossa conversa - espécie de entrevista em que procurei dá-lo a conhecer melhor sem aprofundar em demasiado a sua história como toureiro, conhecida de todos e que ainda há dias ele relatou em pormenor numa outra entrevista ao touroeouro.com - perguntando-lhe se valeram a pena estes 45 anos como toureiro e se faria tudo de novo outra vez. Respondeu sem pestanejar:
"Então não valeu?... Faria tudo outra vez igual! Porque conhecendo o mundo fora do toiro, o mais que poderia ser era carpinteiro ou pedreiro e sabia que chegava ali ao fim do mês e a minha vida era igual à de milhares de pessoas... E fazia tudo outra vez igual porque a mim o toiro deu-me tudo. Olhe, a sua amizade, a amizade de dezenas de outras pessoas, o que conheci, os países que visitei como toureiro. Em miúdo ainda joguei um bocadinho à bola no Montijo, mas acabei por não ficar 'na bola' porque para o fazer a sério era preciso a quarta classe e nós éramos uma família muito pobre, oito irmãos, e mal podíamos íamos logo trabalhar. Tirei a quarta classe só mais tarde, quando pude. Entrei no mundo dos toiros porque no Montijo, onde vivia em pequeno, sempre houve grandes toureiros, o Gregório, o Alberto, o António José Martins e como em miúdo morava muito perto da praça do Montijo, eu passava lá a vida, faltava às aulas para ir ver os toureiros, no tempo andavam por lá muitos matadores que vinham do México e da Venezuela e que até iam viver para a praça de toiros do Montijo, uns dormiam na enfermaria... Tive desde miúdo essa convivência com eles todos. A minha casa era a praça de toiros do Montijo!".
E a sua paixão pelos toiros, recorda, começou logo ali em pequeno. "Eram as largadas, o treinar na praça, todas essas coisas", recorda.
Ser matador de toiros era o seu sonho, confessa:
"Era o meu grande sonho. E foi isso que eu transmiti a todos os miúdos ao longo dos trinta anos em que estive a dar aulas na Escola de Toureio da Moita, transmiti que no fundo o meu sonho tinha sido ser matador de toiros. Na altura havia uma trupe cómica muito boa no Montijo, faziam sempre cerca de trinta espectáculos por ano e eu tinha a sorte de eles me porem a tourear na parte seria do espectáculo, porque eu estava na Escola de Toureio do Montijo. Tive depois a sorte de ir para uma escola e tentar transmitir a todos os meus alunos essa minha vivência".
- Embora não tendo sido matador, foi um dos bons bandarilheiros deste país. Presumo que não terá tido uma grande amargura pelo facto de não ter chegado à alternativa de matador, ou teve?
"Não, pelo contrário. Porque ser bandarilheiro é uma profissão prestigiada no mundo do toiro. Muitas vezes, miúdos da escola que não se sentiam com condições para serem toureiros, perguntavam-me: 'Ó senhor Júlio, e agora o que é que eu vou fazer?', e eu dizia-lhes que haveria sempre uma maneira de continuar connosco, ou sendo moço de espadas, ou indo para a crítica, sei lá, há muitas outras formas de continuar ligado à Festa. Mas, respondendo concretamente à sua pergunta, nunca me senti amargurado por não ter sido matador, fiz o meu papel como bandarilheiro, como professor na Escola de Moita, isso orgulha-me muito. E cheguei a ser apoderado do novilheiro 'Morenito de Portugal' e também de dois cavaleiros".
- E como nasceu a Escola de Toureio da Moita? Foi o Júlio que a formou?
"Eu vim viver para a Moita, tirei a alternativa na Moita e todos os dias treinava na praça 'Daniel do Nascimento'. Os miúdos que iam para a escola passavam por ali, entravam e muitos entusiasmavam-se a ver os treinos. O 'Belmonte', que morava ali a cem metros, foi o primeiro a aparecer, tinha nove anos na altura... E depois este trouxe o outro e o outro trouxe o outro e às tantas tinha ali já dez ou doze miúdos que queriam ser toureiros. E também por lá andava o Manuel António, que foi novilheiro e na altura já era bandarilheiro, também treinava ali comigo, mas tinha a vida dele, era um homem mais velho que eu".
- E nasce assim a escola?
"Como o Maestro Armando Soares dava na altura aulas na Escola de Toureio de Badajoz, eu pedia uma carrinha emprestada e ia lá ter com ele, levava os miúdos para eles treinarem com ele. E um dia ele disse-me: 'Tens aqui uma série de miúdos, porque não crias uma escola lá na Moita?'. E eu respondi que para isso era preciso um matador, era preciso que nos abrissem as portas dos tentaderos... e sugeri-lhe que viesse ele para a Moita. O Maestro Armando disse que ia pensar nisso e depois acabou por vir, mas com a condição de eu ficar com ele, porque ainda estava ligado à Escola de Badajoz e só podia ir à Moita duas ou três vezes por semana. E as coisas nasceram assim".
- O Júlio fez muitos toureiros, juntamente com o Maestro Armando, esta semana até disse na entrevista ao touroeouro.com que não se lembrava de quantos foram...
"Pois, foram muitos. Muitos e bons. Porque hoje em dia todos eles estão bem colocados como bandarilheiros com as figuras do toureio e também de lá sairam três matadores, o 'Parrita', o 'Velásquez' e o 'Procuna'. E uns dez ou doze bandarilheiros profissionais. E houve muitos outros miúdos que foram aspirantes a novilheiros e depois não seguiram em frente".
- O melhor e o pior momentos da sua carreira?
"O pior, pior, acho que nunca tive. Pior mesmo era quando chegava aos dias das corridas e não me telefonavam para ir tourear... Mas graças a Deus, toda a gente sabia que o meu caminho era o toureio a pé e, curiosamente, foi com cavaleiros que mais toureei. Nunca tive problemas com ninguém, nunca arranjei problemas na Festa e disso posso hoje orgulhar-me. E muito. Saber ser toureiro dentro e fora da praça é muito importante e foi sempre esse o meu caminho".
- E cornadas, sofrei muitas?
"Algumas, uma vez parti um pé e foi uma fractura muito complicada. Tive outras mazelas, mas, graças a Deus, nunca nada de muito grave".
- Alguma vez sentiu medo de morrer quando toureava?
"Nunca, como não tenho agora medo de morrer com a doença. Tenho medo é de sofrer com esta doença, cair numa cama e ficar num estado em que não me possa mexer, mas medo de morrer não tenho. Todos morremos um dia...".
Júlio André sonhava deixar de tourear no dia em que se despedisse o Maestro Joaquim Bastinhas, último toureiro a cuja quadrilha pertenceu. "Foi muito meu amigo e eu dele. Esteve sempre a meu lado nos bons e nos maus momentos por que passei", recorda, sem esconder a emoção. E foi só quando falou do saudoso Maestro que lhe vi lágrimas nos seus expressivos olhos azuis. Emocionou-se:
"Toureei com o Maestro Bastinhas na Figueira da Foz na noite em que reapareceu depois do acidente que sofrera dois anos antes. E toureámos ainda nesse ano de 2018 em Elvas, que foi a sua última corrida. O Maestro tinha um projecto para tourear umas vinte corridas no ano seguinte e disse-me que queria que eu estivesse a seu lado. Mas eu disse-lhe que comigo já não podia contar. 'Então porquê?', perguntou-me ele. E eu respondi que já não tinha pernas para ir aos toiros, que já não me sentia capaz. Resposta dele, que tinha na altura dois jovens e bons bandarilheiros na quadrilha: 'Mas qual é o teu problema? Tenho cá dois 'galos da Índia' que vão ao toiro e eu quero que fiques na quadrilha, tinha gosto em que continuasses'. Disse-lhe que me queria ir embora, que não me queria andar a arrastar e o Maestro disse-me: 'Então vamos montar um festival para te ires embora, conta comigo e com o Marcos'. Infelizmente, aconteceu o que aconteceu. Depois de Elvas já não nos encontrámos mais, ele adoeceu e acabou por nos deixar".
- O que espera do festival de amanhã na Moita?
"Como lhe disse atrás, preciso deste festival e desta ajuda de todos, não só pela doença que tenho, mas sobretudo pelos custos que esta doença tem, que são muitos. Estou de baixa, mas a baixa é uma coisa mínima, não dá para sobreviver, não há que ter vergonha de o dizer. E é o momento em que eu preciso da Festa, assim como a Festa precisou de mim noutros tempos, porque também toureei imensos espectáculos de beneficência para muitas entidades. Espero que agora me dêem num dia o que eu dei à Festa em 45 anos. Tive a sorte do Nuno e do João andarem para a frente com a organização deste festival e o que eu espero é que as pessoas vão, o cartel é bom, o tempo vai estar bom".
- Já lhe perguntaram na outra entrevista se se vai vestir de toureiro amanhã... já decidiu?
"Ainda não decidi. Como disse na outra entrevista, logo verei amanhã, quando acordar. Gostava de me vestir de toureiro, era bonito, mas ainda não sei... Tenho muito respeito por esta profissão e decidi naquela noite em Elvas, em 2018, que não-me-toques vestia mais de toureiro. Tenho andado muito a pensar nisso, amanhã decido... Despedir-me é que nunca me despeço, porque não faz sentido despedir-me de uma profissão que me deu tudo. Como lhe disse antes, serei toureiro até morrer".
- Para terminarmos, Júlio André, como está a Festa hoje? Muito diferente do seu tempo?
"Completamente diferente. Está muita coisa ao contrário e, a meu ver, o maior problema é que não vejo ninguém preocupado com isso. Por exemplo: deitaram abaixo a praça da Póvoa de Varzim. Acha normal que ninguém tenha feito nada contra isso, que ninguém tenha reagido, que não tenha aparecido, ao menos, um aficionado a manifestar-se contra a demolição?... E isso é apenas um pormenor dos muitos que estão hoje mal na Festa. Tenho muita pena e fico muito apreensivo por não ver ninguém preocupado com o rumo que as coisas estão a tomar, encolhem todos os ombros e deixam andar...".
A nossa conversa continuou, sobre muitas coisas, sobre o presente, sobre o passado, um sem número de recordações, num agradável jantar a que se juntou o Paco Duarte, outro toureiro do tempo de Júlio André.
Momentos bem passados com toureiros de outros tempos - com quem se aprende sempre.
Sorte para amanhã, Júlio! E que ninguém falte à Moita! Faltarei eu, como ontem tive oportunidade de dizer ao Júlio - e ele compreendeu - por motivos familiares que me impedem amanhã de estar a seu lado. Mas estarei sempre - e ele sabe!
Fotos M. Alvarenga
No final do jantar na "Marisqueira do Samouco": Miguel Alvarenga, Júlio André, Paco Duarte e Nuno Silva "Rubio" |