Miguel Alvarenga - O público que enchia o Campo Pequeno explodiu ontem numa sentida, emotiva e calorosa ovação, como há muito não se registava nada assim, para dizer adeus a uma das mais valorosas e valentes figuras do toureio a cavalo dos últimos quarenta anos: Rui Salvador não conteve as lágrimas e a muita emoção que se apoderou de si na hora - bonita - da despedida.
E, como a Coimbra dos Doutores, Salvador teve mais encanto na hora da despedida.
Esteve, apenas e só, verdadeiramente magistral na lide dos dois exigentes e muito sérios toiros da ganadaria de Dr. António Silva, deixando assim a imagem de grandeza e de plenitude de um Toureiro que se vai embora num momento enorme - e que poderia por cá continuar por muitos e bons anos.
Foi também esse factor que ontem o público aclamou e aplaudiu na última volta à arena do fantástico cavaleiro de Tomar, embora nascido em Lisboa - Rui Salvador abandona as arena quando está melhor que nunca. Sai em beleza e em grande. Ontem esteve inspirado. Inspiradíssimo. E com o valor e o mérito de vir a Lisboa despedir-se com uma ganadaria como esta. Toiros para homens de barba rija. Como o Rui sempre foi.
Os oito toiros da ganadaria Dr. António Silva foram seis verdadeiras estampas com imensa cara, muita transmissão, todos eles com teclas, exigentes, daqueles que metem mudanças e impõem respeito, colocando em risco as vidas dos toureiros e dos forcados. Isso mesmo: colocando em risco as vidas de quem os enfrenta.
A ganadaria foi homenageada pelos empresários - e pelo público - ao intervalo, pelo seu 80º aniversário, e a jovem ganadeira Sofia Silva Lapa foi contemplada pelo director de corrida Ricardo Dias logo no primeiro toiro (belíssimo!) com uma merecida volta à arena - e a realidade é que há muito tempo se não via um curro de toiros tão bom como este. Foram oito toiros, podia ter sido uma noite longa e enfadonha, mas não foi. Até na hora de recolherem aos currais, os Silvas se comportaram à maneira, não maçando ninguém, saindo de cena sem demoras.
O sexto e sétimo foram os toiros mais complicados, mansos, mas encastados, com teclas para tocar, a exigir dos toureiros e a não facilitar a vida aos forcados.
Rui Salvador, como escrevi atrás, deixou na hora do adeus duas lides para recordarmos durante muito tempo. Foi sempre mais um Toureiro de valor (valente) do que propriamente de arte. Mas ontem o Rui foi tudo. Lidou com a ousadia de sempre, encantou com a arte que lhe vai na alma, até se recriou com um ferro em sorte de "violino" em cada toiro, que era coisa que não lhe costumávamos ver fazer.
Esteve completo e esteve enorme. Ainda se vai despedir noutras praças. Em Lisboa, onde há quarenta anos Mestre Batista lhe concedeu a alternativa na presença de João Moura, toureou ontem pela última vez. E toureou tão bem que deixa já uma enorme saudade. Talvez até uma lágrima, ou mais, como aquelas que lhe escorreram pela cara quando na arena se despediu e, num gesto simbólico, despiu a casaca e a deixou na arena, na arena que foi palco deu tantas noites de glória por ele vividas.
Rui brindou a sua primeira lide ao amigo e apoderado de uma vida - José Carlos Amorim. E a segunda, dedicou-a ao público.
Adeus é demasiado forte. Até logo, Rui Salvador! Toureiro que marcou as nossas vidas.
Havia receios de que o público não correspondesse - a data era das piores, pelo sol, pela praia, pelas férias - e a praça não tivesse a moldura humana que tivera nas duas corridas anteriores. Mas teve. Os aficionados não faltaram à última noite de um cavaleiro que merece todas as nossas homenagens e mais algumas. A praça registou três quartos fortes das bancadas preenchidos, como acontecera na corrida anterior. Cheia à vista.
Rui Fernandes, Francisco Palha e Miguel Moura, assim como os forcados de Évora e de Coruche, foram na noite de ontem dignos e honrados companheiros da histórica noite de Rui Salvador no Campo Pequeno - e ficam também todos eles, por méritos próprios, na memória de todos os que tão cedo não vão esquecer esta grande corrida.
Foi uma noite de mil emoções. De sustos, também, pela seriedade e pelo risco que transmitiram os toiros da ganadaria Dr. António Silva.
Rui Fernandes não toureava em Lisboa há quatro anos. Por desacertos, e provavelmente desencontros com a estratégia da empresa liderada por Pombeiro, que custou a entender, mas acabou por reconhecer, que um Toureiro como ele faz falta a qualquer cartel e às grandes competições.
Rui Fernandes nunca alinhou, como muitos alinharam, em nome dos anos da pandemia, em tourear por cachet's da uva mijona - e isso tem-no mantido arredado das praças nacionais, cumprindo praticamente a maior parte da sua actividade actuando nas principais feiras taurinas e nas melhores praças de Espanha e de França.
Mas finalmente a empresa de Lisboa acordou - e Rui até brindou aos três actuais gestores, Luis Miguel Pombeiro, Jorge Dias e Samuel Silva, a sua segunda actuação - de enorme maestria! -, depois de ter dedicado a primeira a Rui Salvador.
Lide de grande fulgor a que imprimiu ao segundo Silva da noite, um toiro exigente e cheio de transmissão, a meter mudanças e a pedir contas. Rui Fernandes esteve senhor da situação, mandou, templou, demonstrou a qualidade imensa da sua fantástica quadra de cavalos e o dom de bem tourear que tem sido apanágio dos seus já mais de vinte anos de cavaleiro profissional - sempre entre os da linha da frente.
O segundo toiro do seu lote, o sexto, era um toiro poderoso, a puxar para o manso, mas com casta e com muitas teclas para tocar, mais que as de um piano. Acordou de quando em vez e perseguiu o cavalo com uma velocidade estilo bólide da Fórmula 1.
Rui Fernandes soube dar a volta, contornar e superar as contrariedades (entenda-se: dificuldades) que o exemplar da ganadaria Silva apresentou - foi uma lide de maestria, de entrega e de valor, fruto da experiência, do traquejo, da tranquilidade e da muita maturidade com que está em praça. Toureiro importante. Duas lides de importância. E de raça e valor.
Francisco Palha atravessa um momento grande e está a construir, de corrida em corrida, uma temporada de um mérito imenso. Mas continua a ser um Toureiro de tudo ou nada. Muito regular com momentos de assustadora irregularidade.
É toureiro de risco e de casta - e toureiro de todos os toiros. Com o terceiro Silva da noite, que recebeu com uma emotiva sorte de porta gaiola, também exigente, também a pedir contas, pisou Palha os terrenos da verdade, cravando ferros de muita emoção, que o público aplaudiu com força e entusiasmo. Lide brilhante.
E depois, lide intermitente, com a mesma raça, mas sem a mesma decisão e o mesmo brilhantismo, no sétimo toiro da noite, um exemplar mansote e complicado, dos que atrapalham e não permitem desatenções. Francisco Palha arriscou, sofreu um toque violento, andou bem e andou mal, num misto de actuação confusa, sem música e sem muitos aplausos. Teve, como sempre tem, a dignidade dos Senhores que receberam educação - e reconheceu que uma actuação que não fora redonda, nem nada que se parecesse, antes pelo contrário, não era merecedora de volta à arena. Ficou Palha entre tábuas, com a humildade e o respeito pelo público que sempre soube demonstrar. Bem, Toureiro!
Miguel Moura toureou ontem na primeira praça de Portugal com o fulgor e o esplendor com se tem exibido ao longo de toda a temporada - e a três dias de se voltar a apresentar na primeira praça de Espanha, a de Madrid, também referenciada como a primeira do mundo taurino, onde vai actuar no domingo.
Chegou a Lisboa ainda não refeito de mais uma triste ocorrência acontecida na praça de toiros de Coruche - onde em Maio do ano passado um cavalo seu morreu em plena arena, de ataque cardíaco, no final de uma lide; e onde no sábado passado, já fora da arena, outro cavalo - um Puro Sangue Árabe com ferro de Álvaro Silva - teve fim idêntico, depois de ter lidado o segundo toiro da corrida. Azares a mais para o Miguel sempre na mesma praça...
Ontem, com dois Silvas poderosos, exigentes, a pediram contas e a não perdoarem deslizes, Miguel Moura esteve grandioso, esteve "à Moura", triunfou nos dois com a raça e a graça que o caracterizam, arriscando, bregando, ladeando com a marca da casa, impondo a força da sua garra. Miguel está um Toureiro maduro, tranquilo, seguro, a lembrar o "Niño Prodígio" - seu Pai - nos anos de ouro.
Foram duas grandes actuações, sem contudo atingir a nota máxima que marcou em Outubro do ano passado a sua memorável actuação nesta mesma arena, ao ponto de ter sido considerado o grande triunfador de 2023 no Campo Pequeno.
Muito bem todos os bandarilheiros, sem intervenções exageradas durante as lides dos seus cavaleiros, com eficácia e saber, e muito trabalho em alguns casos, a colocar os toiros para os forcados. Noite grande para João Pedro Silva "Açoriano" e Paulo Sérgio, Hugo Silva e João Santos "Sevilhita" (que vestia um inédito e bem bonito traje de luces), Joaquim Oliveira e Diogo Malafaia, Nuno Oliveira e Jorge Alegrias.
Noite de muito esplendor para os valentes executantes da nobre e tão portuguesa arte de pegar toiros - que foram ontem os Amadores de Évora, comandados por José Maria Caeiro (três pegas à primeira e uma à segunda) e os Amadores de Coruche, na estreia do cabo João Prates (com uma pega à primeira, duas à segunda e a última à quarta).
Por Évora pegaram João Madeira (à primeira), José Maria Passanha (à segunda), João Maria Cristovão (à primeira) e o cabo José Maria Caeiro (à primeira tentativa); e por Coruche foram caras Tiago Gonçalves (à primeira), João Formigo e António Tomás (os dois ao segundo intento) e o novo cabo João Prates, forcado de eleição e reconhecidos méritos, que consumou só à quarta tentativa, a sesgo e com as ajudas carregadas. Destaque para as várias intervenções brilhantes do primeiro ajuda do Grupo de Coruche.
Triunfo mais brilhante para os alentejanos, noite mais dura para os ribatejanos - mas todos eles com um mérito enorme e, graças a Deus, sem ninguém se ter lesionado, apesar da muita dureza dos ásperos toiros de Dr. António Silva - já a seguir, vamos aqui falar em pormenor dos forcados e mostrar-lhe as sequências das oito pegas.
Ontem as homenagens foram feitas ao intervalo - e não ao início da corrida. Os três empresários e os cabos dos dois grupos de forcados entregaram lembranças a Rui Salvador, alusivas à celebração dos seus 40 anos de alternativa, mas sobretudo ao facto de ali estar naquela praça pela última vez.
Depois rendeu-se tributo à ganadaria de Dr. António Silva, pelos 80 anos da sua fundação, com a presença na arena de Sofia Silva Lapa (neta do saudoso Dr. António Silva) e do afamado campino João Inácio "Janica", maioral da ganadaria.
E, finalmente, o empresário Luis Miguel Pombeiro homenageou, com a aclamação geral do público, esse emblemático forcado que foi - é! - José Jorge Pereira, que todos conhecem por Zeca Pereira, icónica figura da aficion de São Manços, que, curiosamente, nunca pertenceu ao grupo de forcados da sua terra, mas, em contrapartida, foi o único que vestiu as jaquetas dos três consagrados grupos de Santarém, de Montemor e de Lisboa.
Desta vez, o som esteve totalmente perceptível, António Lúcio falou - e bem - sobre a carreira de Rui Salvador (ou me engano muito, ou não ouvi qualquer referência no discurso à cidade de Tomar, terra de meu Pai, terra também do Pai do Rui) e todos entenderam na perfeição o que ele disse. Tem dias, pelos vistos, o som do Campo Pequeno...
Quanto ao piso da arena, continua a parecer que estamos numa tempestade em pleno Deserto do Saara - o que é demasiado incómodo para todos os espectadores e talvez tenha a ver, investiguem, com o facto de o Campo Pequeno já não ser uma praça de toiros, mas antes um centro de lazer onde se alternam só quatro touradas com concertos musicais e outro tipo de espectáculos, havendo uma permanente mudança e alteração de cenários e, obviamente, de piso também. Nada a fazer, pelos vistos. Mesmo depois de regada ao intervalo, a arena continuou a levantar uma poeirada enorme durante as lides...
Por fim, uma palavra de louvor ao diligente e cumpridor director de corrida Ricardo Dias, antigo forcado dos Amadores de Coruche, que esteve assessorado pelo médico veterinário residente Jorge Moreira da Silva. E, como já acontecera na corrida anterior, a noite foi abrilhantada por duas bandas, a costumeira do Samouco e também a de Amareleja. Festa é festa!
Apesar de terem sido oito toiros, foram oito bons e sérios toiros, os toureiros e os forcados estiveram à altura das circunstâncias e a corrida decorreu com um ritmo fabuloso e cheio de entusiasmo, constituindo uma das melhores noites dos últimos anos na praça da capital. Assim vale a pena ir aos toiros.
No final, Rui Salvador foi passeado em ombros por louvável iniciativa dos companheiros de cartel - um gesto que se aplaude. E depois todos o aplaudiram pela última vez nesta praça.
Até logo, Rui Salvador! Toureiro que marcou a nossas vidas.
Fotos M. Alvarenga
Brilhante e na plenitude das suas faculdades: Rui Salvador despediu-se em grande do público de Lisboa |
Logo no primeiro toiro, a ganadeira Sofia Silva Lapa deu aclamada volta à arena com Salvador e o forcado João Madeira |
Empresa do C. Pequeno acordou finalmente e reconheceu que Rui Fernandes faz falta! O Toureiro justificou em grande! |
Francisco Palha: tudo pode acontecer quando ele toureia! E ontem aconteceu de tudo um pouco |
Segurança e maturidade - Miguel Moura está um Senhor Toureiro |
Final emotivo: companheiros passearam Salvador em ombros e depois aplaudiram-no todos pela última vez nesta arena |