Henrique Borges apareceu poucas vezes sob os holofotes mediáticos da imprensa ao longo dos últimos oito anos do novo Campo Pequeno. Administrador delegado da sociedade que gere todo este imenso projecto, antigo forcado do grupo do Aposento da Moita, é um homem discreto e que não procura o protagonismo. Meio a custo, aceitou o nosso desafio para aqui vir fazer o balanço de sete anos, estamos a viver o oitavo, de actividade da nova praça de toiros e de todo o complexo que a envolve. Reconhece que muita coisa poderia ter sido diferente e também que ainda há muita coisa a fazer. Acredita que o modelo do Campo Pequeno seria útil à tauromaquia se fosse seguido noutras praças de toiros do mundo e foi por isso que no ano passado concorreu à Monumental de Madrid. Preconiza que a tauromaquia e o próprio espectáculo tauromáquico devem ser repensados e integrados no ritmo alucinante de um "click" em que vivem hoje os jovens. Acredita que pode chocar os "velhos do Restelo", mas defende um modelo mais curto e mais económico para a corrida de toiros, com apenas quatro toiros e outras envolventes como o fado e o flamenco. Sentámo-nos no chamado "camarote vip" do Campo Pequeno e falámos ao longo de mais de uma hora. A conversa, lúcida e oportuna, aqui fica. Sete anos depois, o balanço do projecto do Campo Pequeno é positivo. Mas há ainda muitos objectivos a alcançar. Trata-se, diz Henrique Borges, de um projecto "ainda em desenvovimento".
Entrevista de Miguel Alvarenga
- Estamos a viver o oitavo ano do novo
Campo Pequeno. Qual é o balanço que se pode fazer, em termos gerais e não
apenas tauromáquicos, de todo este grande projecto?
- O projecto do Campo Pequeno é um
projecto que ainda está em estado de desenvolvimento, ou seja, é um projecto
que ainda não atingiu totalmente a sua maturidade. Naturalmente que nós, hoje
em dia e com a experiência resultante da gestão de sete anos, sabemos o que
sabemos e haveria muitas coisas que, se tivessemos que fazer de novo, as
faríamos de modo diferente. E isso resulta da experiência que nós temos hoje do
projecto. É preciso não esquecer que esta praça estava na iminência de ruir e o
estado em que se encontra hoje em dia resulta do esforço de duas pessoas, de
dois sócios, que se juntaram e meteram mãos à obra. Recordo-me perfeitamente
daquele episódio da cidadã americana, atingida aqui à porta da praça por um
tijolo que caíu, que foi marcante e que, de certa forma, acabou por dar o
pontapé de saída em tudo isto. E se calhar outros episódios aconteceriam se não
tivessemos metido mãos à obra. Portanto, foi um resultado de muita teimosia, de
muita persistência, de muita paciência e sobretudo de muita coragem. Quanto ao
balanço, hoje em dia o Campo Pequeno pode dar-se ao luxo de dizer que tem uma
sala verdadeiramente com várias feições, isto é, é como uma mulher que de manhã
acorda de uma maneira, à tarde tem uma aparência e à noite ainda tem outra
aparência. O Campo Pequeno criou essa faculdade de se poder adaptar, dá para
fazer espectáculos tauromáquicos, que são, ao fim e ao cabo, o seu principal
objectivo, mas dá também para fazer espectáculos musicais, espectáculos com
empresas, tem um centro comercial, tem um estacionamento, isto é um conjunto de
várias valências que, todas em conjunto, fazem sentido; se separarmos cada uma
delas, se não soubermos gerir isto de forma integrada, as dificuldades começam
a aparecer e é preciso ser dito que hoje em dia atingimos estes resultados
porque aprendemos a tirar partido da valência de cada uma dessas áreas e,
sobretudo, perceber a cumplicidade que essas áreas têm umas em relação às
outras. Acredito que hoje em dia haja pessoas que saibam gerir centros
comerciais, estacionamentos, espectáculos em separado, mas gerir o conjunto,
gerir todo este projecto, é aí que está o segredo da abelha, é aí que começa a
tocar de outra maneira. E é esse património que nós temos, repito, fruto da
nossa experiência de sete anos à frente de todo este projecto.
- No entanto, a vossa empresa já estava
no Campo Pequeno alguns anos antes de todo este projecto arrancar. Alguma vez
pensaram que iam deitar mãos a esta imensa obra nesses anos iniciais?
- Tínhamos a noção de que a praça tinha
que sofrer uma intervenção para poder continuar a servir de suporte financeiro
para a Casa Pia. Não nos podemos esquecer que a montante de tudo isto, acima de
tudo isto, temos a Casa Pia, a quem nós devemos todo o respeito e consideração
e a quem nós temos obrigação contractual de pagar uma prestação, este é um
projecto que tem essa singularidade, não é um projecto que tenha só uma vertente
financeira particular, tem uma componente altruista, nós trabalhamos para, de
certa maneira, pagar uma prestação à Casa Pia, que permite educar os miúdos que
estudam na Casa Pia. Portanto, nunca imaginámos que efectivamente ao fim de
sete anos íamos atingir este lugar. Tínhamos alguma expectativa, digamos assim,
mas essa expectativa só veio a confirmar-se fruto de um trabalho que foi
desenvolvido por todas as pessoas que aqui trabalham, onde me incluo e aqui
aproveito para agradecer a todos aqueles que têm dado o seu contributo para que
este projecto tenha atingido este patamar. O Campo Pequeno não é um desafio
diário, é um desafio horário, vive-se quase hora a hora, as pessoas, aqui,
dedicam-se intensamente a este projecto, mas dedicam-se de uma maneira
apaixonada, apaixonada nuns momentos e desapaixonada noutros...
- Em termos tauromáquicos, que balanço
faz destes sete anos?
- Acho que é um balanço extremamente
positivo. Porque, tendo em linha de conta que com o fecho do Campo Pequeno para
obras andámos aqui a navegar nuns mares em que não sabíamos bem qual era o rumo
que tudo isto ia tomar, tendo-se concluído a obra a tauromaquia ganhou aqui um
novo fôlego e o Campo Pequeno também ganhou um novo fôlego. Digamos que a
tauromaquia e o Campo Pequeno, em conjunto, ganharam aqui uma nova feição, uma
nova força. Daí eu achar que essa força resulta desta intervenção e a
tauromaquia, a nível geral, acho que tem que passar por este tipo de atitude.
Os clientes do Campo Pequeno, hoje em dia, os que aqui vêm, já não são
exclusivamente aqueles que herdaram o gosto, que gostam de toiros por herança,
digamos assim, há hoje um novo público que está a vir e isso faz-nos estar
muito optimistas quanto ao futuro. Mas atenção, isto é um trabalho de
permanente esforço, de permanente exercício, de saber ler os sinais, ter visão
e saber o que vem aí, perceber o que é que os jovens querem hoje em dia. Os
jovens hoje em dia vivem a vida e o mundo à velocidade de um "click",
os miúdos conseguem ver informação na internet e o ritmo a que vivem é
diferente do nosso, do meu e do seu, vivem a um ritmo completamente diferentem,
alucinante, e o espectáculo tem que saber acompanhar esse ritmo. E as pessoas
que dirigem o espectáculo e que estão à frente das tomadas de decisão, têm que perceber
isso. O espectáculo tauromáquico tem que ter outro ritmo e apesar de eu
acreditar que estamos a captar novos públicos, temos que fazer mais qualquer
coisa. Há que repensar a tauromaquia...
- ... e há que repensar o próprio
espectáculo, concorda?
- Em absoluto. Há que encurtar o tempo
do espectáculo. Porque não fazer espectáculos de quatro toiros, em vez de seis?
Pode parecer chocante aquilo que estou a dizer, mas depois vai-se ver que é
capaz de fazer sentido. Poderiam lidar-se quatro toiros, montar corridas de
dois cavaleiros e ter depois uma outra componente artística a animar o
espectáculo, como o fado ou o flamenco.
- Claro que não faltarão os "velhos
do Restelo" a criticar se fizerem corridas de quatro toiros...
- Mas o futuro não se faz com os "velhos
do Restelo". Também houve muita gente que criticou o Campo Pequeno depois
das obras, apesar de não se ter alterado, porque nem fazia sentido, a fachada e
a estrutura da praça, mas a verdade é que passaram sete anos e a maioria das
pessoas já entenderam que era mesmo necessário fazer-se o que se fez. Mas há
mais: o Campo Pequeno e nomeadamente toda esta equipa que aqui trabalha há sete
anos neste projecto, criou um modelo que pode ser repetido noutras praças do
mundo e eu acho que a tauromaquia tem que seguir o modelo que o Campo Pequeno
seguiu, porque senão vejo o caso mal parado.
- Era essa a vossa intenção quando no
ano passado concorreram à adjudicação da Monumental de Madrid?
- Eu e o Rui Bento, quando concorremos a
Madrid, a nossa perspectiva era poder partilhar a experiência que tínhamos tido
qui no Campo Pequeno, porque acreditamos que numa cidade cosmopolita como
Madrid, também com muitos jovens, a praça ganharia muito se tivesse este tipo
de intervenção. Ora bem, se nós já tínhamos essa experiência, ao tempo, de seis
anos e se estávamos disponíveis para a partilhar, acho que Las Ventas e quem lá
está poderia tirar vantagens disso. Não foi possível, com muita pena nossa, mas
a seguir a tempo vem tempo e quem sabe, pode ser que um dia nós possamos lá
estar e ajudar quem lá está a perceber estes sinais, esta necessida de mudar,
que não são tão evidentes nesta altura, mas já começam a ser preocupantes.
- 2013 era apontado como o pior ano da
crise. Como têm corrido as coisas no Campo Pequeno?
- Digamos que conseguimos ultrapassar as
dificuldades que se anunciavam e que se previam. O aumento do IVA foi dramático
para nós e para todos aqueles que desenvolvem esta actividade dos espectáculos,
acho que o tecido social foi altamente afectado pela necessidade de pagarmos a
nossa dívida externa, há que pagar e o Estado e o Governo não têm, por si só,
capacidade para pagar e temos que ser nós a pagar, e depois não temos dinheiro
para outras coisas. O Campo Pequeno foi também, obviamente, altamente
sacrificado com isso. Isto não vai durar sempre, a situação económica do país
tende a melhorar, agora é preciso que haja inteligência para perceber que não
pode haver saltos lógicos, não pode haver alterações abruptas, porque senão
estamos sempre a começar do zero. E o que temos que fazer é aprender com a
crise e não voltar a cometer os erros do passado. O Campo Pequeno é o espelho e
é a mola da nossa tauromaquia. Cabe-me aqui louvar e enaltecer toda a equipa
liderada por Rui Bento, que em sete anos conseguiu colocar o Campo Pequeno no
seu lugar. Eu fico muito satisfeito, ao contrário de alguns, quando as outras
empresas têm sucesso. Fico muito contente quando a praça da Moita enche, quando
a praça de Vila Franca enche, quando outras praçam enchem, porque quanto os outros
estão bem, nós também estamos bem.
- Vão continuar a gerir outras praças,
como é o caso das da Nazaré, da Figueira da Foz e de Sobral de Monte Agraço e
até mesmo vir a concorrer a outras que no próximo ano irão a concurso?
- Em termos de estratégia empresarial, a
estratégia está correcta e entendemos que continua a ser justificável.
Naturalmente que o Campo Pequeno gere a tauromaquia como um negócio. Isto pode
parecer chocante, mas tem que ser mesmo assim. Sem a componente económica, nada
funciona. Começando por baixo, se não existir componente económica, os
ganadeiros não têm capacidade de criar toiros. Desde o primeiro momento até ao
último, a componente económica está sempre presente. Quanto às praças, a nossa
ideia é continuar a manter a estratégia, pelo menos nalgumas que nós entendemos
que são interessantes e que são importantes para o desenvolvimento da
estratégia integrada e global do Campo Pequeno. Por enquanto e relativamente a
novas praças, não estamos para aí virados. Dentro do momento que estamos a
atravessar, as outras praças que gerimos acabam por gerar uma situação
equilibrada para o negócio da empresa e portanto, dentro dessa lógica, vamos
continuar a manter as que temos, sem pensar por enquanto em novas praças.
- Em redor da praça, há neste momentos
poucas esplanadas, umas acabaram, ainda não existe aqui uma vida nocturna com a
"movida" que se desejava e que existe hoje, por exemplo, no Terreiro
do Paço. Ainda há objectivos que não foram alcançados nesse aspecto?
- De início sofremos aqui um bocado o
efeito da novidade e por isso os operadores que cá estavam desenvolveram as
suas próprias esplanadas de uma forma um pouco desordenada. Houve aqui alguma
ausência de regras, um período em que houve, digamos assim, uma certa anarquia.
Hoje em dia esse período foi ultrapassado, eu acredito que ainda temos que
fazer muito mais, aqui e noutras áreas, para poder atrair os jovens ao Campo
Pequeno e até outro tipo de público para esta zona da cidade de Lisboa, que eu
vejo como uma zona central e de enorme potencial. Nós contamos com a Câmara,
como sempre contámos, aliás sem ela não teria sido possível desenvolver este
projecto, sendo certo também que gostaríamos que nos vissem também
verdadeiramente como uma sala de espectáculos, não queremos ter mais direitos
que os outros, queremos ter os mesmos direitos que os outros, mas é uma pena se
não tirarmos partido deste espaço, deste jardim, deste edifício que é único,
tem a idade que tem e tem que ser acarinhado. E lembro sempre que acima dito
tudo está a Casa Pia e que quanto mais o Campo Pequeno estiver de saúde, a Casa
Pia também lucra com isso.
- A polémica das "exclusivas"
que este ano foram feitas a cinco cavaleiros. De início houve uma tomada de
posição do Campo Pequeno que depois se alterou. Foi uma posição que acabou por
ser ultrapassada, como aliás se esperava. Foi difícil?
- Foi um tema ultrapassado com bom senso
e com equilíbrio. Afirmámos a nossa posição no início do ano, sobretudo por ter
a consciência de que se afigurava uma crise em que iríamos ter problemas nesta
área, não há muito dinheiro, achámos que as "exclusivas" não eram
muito apropriadas no momento. Manifestámos livremente a nossa opinião e depois
as pessoas interpretaram como quiseram. Com o decorrer da temporada, nós
sentimos a necessidade também de passar a outro nível de entendimento, não
podíamos estar permanentemente de costas viradas e o acordo veio de forma
natural. Foi conversado com as pessoas que tomaram essa iniciativa, chegámos a
um acordo de forma natural e quanto ao assunto nada mais temos a acrescentar.
Se for caso disso e se assim entendermos, poderemos dizer mais alguma coisa no
final da temporada, mas acho que de momento está tudo claro e está tudo aí à
vista para quem o quiser analisar.
- Para terminarmos, o que falta fazer,
não apenas em termos tauromáquicos, em todo este projecto do Campo Pequeno?
- Em primeiro lugar, conseguir que este
edifício seja um polo de grande atractividade turística. Temos estado demasiado
ocupados com a operação cá dentro, mas agora é a altura de começar a vender
todo este projecto para fora. Temos tido vários contactos por parte de gente de
Espanha que pretende saber como é que nós gerimos e como é que nós explorámos
para chegarmos a este patamar. Temos interesse em partilhar esse segredo da
abelha, a nossa atitude não é a de nos fecharmos, é a de partilhar. Quantas
mais unidades destas existirem, mais a tauromaquia está sólida. Ao fazer este
projecto, estamos a criar mais amarras para a tauromaquia. No país vizinho temos
que perceber isto e no dia em que Espanha perceber isto, a América do Sul
acabará também por entendê-lo. Portanto, isto é aquilo que eu acho que devemos
saber: vender mais para fora e conseguir trazer mais turistas em prol do
negócio. Especificamente e em particular, temos que pôr o Museu Taurino a
andar, é um projecto que tem vindo a ser adiado, mas que este ano é quase um
ponto de honra para nós, temos que pô-lo a funcionar para convertê-lo num polo
de atracção turística; temos que conseguir que as esplanadas aqui fora sejam um
ponto de encontro dos lisboetas e sobretudo dos jovens; gostaria muito que este
projecto pudesse ser repetido noutras paragens. Hoje em dia, se tivessemos que
comprar este terreno, não sei que valor teria, mas teria certamente um valor
muito elevado. Em Espanha, a maioria das praças estão também situadas em zonas
da cidade em que o valor imobiliário é muito grande e por isso considero que em
muitos casos tem que ser feita também uma intervenção como a que fizemos aqui
no Campo Pequeno. Relativamente à nossa equipa, o desafio é diário, temos
sempre que ter melhores ideias para que nossos clientes que aqui vêm se sintam
satisfeitos e gostem de desfrutar deste espaço.
Fotos D.R.