João Telles, seu pai e seu tio. A foto fala por si. Ninguém trava a calvagada de glória e consagração do jovem cavaleiro da ilustre dinastia da Torrinha |
Miguel Alvarenga - O público de Vila Franca é especial. Estranho e complicado. Não digo, não me atreveria a tal blasfémia, que seja pior ou melhor que os outros públicos, mas que é diferente, isso é. Muito diferente, mesmo. Não gosta do “politicamente correcto”, é contestatário, protesta às vezes por nada e por tudo, é imprevisível, tem um gosto muito particular e quase que doentiamente exigente. As coisas ou são como eles querem, ou não chegam a ser. Há seriedade e conhecimento naquelas gentes. Ontem, Padilla voltou a entregar-se, voltou a fazer tudo, mesmo quando lhe faltou toiro (o primeiro de Falé Filipe que enfrentou não tinha qualidade, mas ele deu-lhe a volta), voltou a arrimar-se que nem um leão, no fim sacaram-no em ombros e o público protestou, chegou mesmo a insultar o director da corrida Manuel Gama. Isto, depois de no quinto toiro o terem aplaudido calorosamente e exigido mesmo uma segunda volta à arena…
Com o valente matador jerezano saiu também em ombros o nosso António João Ferreira - que não queria, se retraiu mesmo, mas acabou por não ter outra oportunidade senão embarcar também na passeata aos ombros. E o público protestou de novo. A pé, saiu João Telles, o único que verdadeiramente deveria ter saído em ombros porque fora o grande e absoluto triunfador no conjunto das duas (magníficas) actuações. E o público não gostou disso...
Um sabor e un color especiais!
Vila Franca tem um sabor - e un color - especial. O público também não gostou, apesar de estar previamente anunciado, que Joaquín Moreno tivesse cantado uns apontamentos de flamenco quando os matadores toureavam a pé, apesar de terem sido breves as suas intervenções e dado lugar, logo depois, à actuação da Banda do Ateneu. O público suportou o flamenco nos dois primeiros toiros de Padilla e Ferreira. No segundo de Padilla, o matador parou de tourear quando Moreno cantava e sentou-se no estribo da trincheira até ele terminar, assim como quem diz: “ou cantas tu, ou toureio eu”. Padilla estava a concentrar-se e a procurar dominar o toiro, complicado, quando Moreno começou a cantar. Os aficionados exigiram silêncio, entenderam a necessidade da concentração do artista e não quiseram que o flamenco brilhasse e incomodasse de algum modo a lide e a concentração de Padilla. Bronquite em Vila Franca.
A seguir, foi o próprio António João Ferreira que mandou calar Moreno mal este começava a cantar. Está visto que em Vila Franca se não se querem inovações nem intromissões nas lides, por melhor que fosse a vontade e a intenção do empresário Paulo Pessoa de Carvalho. Tourada é para ser acompanhada por pasodobles, o cante flamenco que se lixe, foi o que ontem decretou a especial aficion vilafranquense. E pronto.
O todo-o-terreno Padilla
Padilla é, na verdade, o novo ídolo da aficion nacional. Um todo-o-terreno com um valor e uma entrega à prova de bala. Mas cada vez me convenço mais que a aficion nacional se confunde e se extingue no público do Campo Pequeno. Onde o adoram de verdade e o idolatraram já. Em Santarém não levou ninguém à praça. Ontem quase esgotou Vila Franca. Em Lisboa, já saiu (meritoriamente, diga-se de passagem) três noites em ombros. E na Moita, há dois anos, também o sacaram em ombros quando o empresário Bolota o trouxe pela primeira vez a Portugal depois do acidente que lhe roubou um olho. Ontem, no quinto toiro, obrigaram-no a dar duas voltas à arena e honraram-no com calorosas e entusiastas ovações. E a seguir protestaram a sua saída em ombros… Dá para entender?
Por outro lado, Padilla tem a ânsia natural, mas desmedida, de querer sair sempre em ombros. E começa já a ser demais e a tornar-se demasiado rotineiro. Ontem foi uma actuação de enorme brilhantismo e com o pundonor e o profissionalismo de sempre, mas não era para sair aos ombros. O público consagra-o na mesma, não precisa de haver este exagero das constantes saídas em ombros. Qualquer dia, de tão rotineiro, já ninguém valoriza isso.
Público em delírio
O primeiro toiro de Padilla era um manso perigoso e desinteressado. O toureiro espremeu-o até ao fim e, com elevado profissionalismo, conseguiu sacar a faena que o oponente não tinha para dar. Foi uma lide esforçada, mas sem brilhantismo. Padilla não deu volta à arena.
No seu segundo, um Falé Filipe de muito melhor qualidade, complicado de início, mas que o toureiro dominou e acabou por triunfar, voltou a estar bem de capote e magistral com as bandarilhas (três pares de imenso mérito e ainda outro em sorte de “violino”), desenhando com a muleta uma faena variada e cheia de valor. Deu as tais duas voltas, a última envolto na Bandeira Nacional (sabe-a toda!) e recebeu ainda calorosa ovação no centro da arena. Público em delírio total.
António J. Ferreira, um toureiro em alta
António João Ferreira é um jovem matador em ascensão. Um toureiro em alta e a ter em conta. Foi o triunfador da Feira de Outubro em Vila Franca, repetiu ontem por seu mérito próprio e não desiludiu ninguém. Variado e artista nos tércios de capote, imprimiu uma valente dose de arte, de mando e de poderio na primeira faena de muleta, onde esteve em plano de triunfador, com bonitas séries pelos dois lados, evidenciando atitude e um imenso querer, mas sobretudo muita consolidação e uma enorme maturidade artística. Esteve brilhante e esteve acima de tudo Toureiro!
A mesma atitude e o mesmo querer com que, logo de início, atravessou a arena e se colocou de joelhos frente à porta dos sustos, recebendo o toiro com uma “larga afarolada” de fazer parar corações. Chama-se a isso afirmação, valentia, coragem, destemor e atitude de Toureiro grande.
O seu segundo toiro, mais reservado, colheu-o aparatosamente quando toureava de capote por arrimadas “chicuelinas”, mas o toureiro não se deu por vencido e foi à luta, decidido, numa esforçada faena de entrega e valentia, mas sem as pinceladas de arte da primeira, mais por culpa do toiro do que por falta de valor do toureiro.
Nota alta para os bandarilheiros
Pedro Paulino e Rui Plácido destacaram-se em bandarilhas no primeiro toiro de Ferreira e no segundo voltou Paulino, sem o mesmo sucesso que no toiro anterior, brilhando desta vez João Ferreira (irmão do matador) com dois pares enormes que o obrigaram a agradecer de montera em mão a forte ovação de um público que sabe reconhecer o bom desempenho dos toureiros de prata.
Ninguém trava cavalgada de glória de João Telles!
João Ribeiro Telles, acabadinho de chegar de um triunfo monumental, repartido com Moura e Pablo, na que foi até agora a grande corrida do ano, sexta-feira em Évora, voltou ontem em Vila Franca a afirmar com todas as letras a sua incontestada chegada ao patamar das primeiras figuras nacionais.
Com dois toiros manejáveis da ganadaria da casa (David R. Telles), com peso e idade, mas com pouca cara e por isso menor seriedade e que apesar de transmitirem pouca emoção, investiram com alegria e foram nobres, João Telles protagonizou duas grandes lides, com brega acertada e ferros de muita verdade em terrenos de compromisso.
Evidenciou segurança, serenidade, confiança nos excelentes cavalos da quadra e uma moral em alta. Está num momento extraordinário e acredito que desta vez não vai mais apear-se do comboio. Telles está para dar e durar e transformou-se num dos cavaleiros da nova vaga com mais interesse para o público. Foi, sem margem para dúvidas, o grande triunfador da corrida de ontem em Vila Franca. E foi, pasme-se, o único que não saiu em ombros… Alguém explica o escândalo?
Boas e rijas pegas
Nas duas pegas do toiros lidados por João Telles estiveram os valorosos Forcados de Vila Franca. A primeira foi executada com brilhantismo por Vasco Pereira ao primeiro intento, com o grupo a ajudar na hora e coeso, brilhando Carlos Silva, como sempre, a rabejar; a segunda pega esteve a cargo de Francisco Faria e só foi concretizada à terceira, com uma grande primeira-ajuda de Tiago Oliveira, depois de nas duas anteriores tentativas o forcado ter sido violentamente derrotado. Esta pega foi brindada a Nuno Moura, fotógrafo que ilustrou o livro dos 85 anos do Grupo de Vila Franca, que saiu há dias e cuja escrita é toda da responsabilidade de Maria José Garcia. A primeira pega fora brindada aos Campinos, os verdadeiros ex-libris das Festas do Colete Encarnado.
Público com Mendes em emotiva homenagem
Ao início da corrida e como estava também anunciado, foi homenageado o Maestro Vitor Mendes, que recebeu lembranças do presidente da Câmara de Vila Franca, Alberto Mesquita, e do empresário Paulo Pessoa de Carvalho. Padilla foi à arena atirar-lhe a sua montera e depois passou-lhe para as mãos o seu capote, com os quais Vitor Mendes foi ao centro da “Palha Blanco” receber, emocionado, uma estrondosa ovação em memória de um brilhante e glorioso passado a honrar Portugal em todas as praças do mundo.
Ao longo da corrida, Vitor Mendes. que assistiu numa barreira acompanhado por sua Mãe - foi brindado por João Telles, por Padilla e por António J. Ferreira. Houve também brindes aos Campinos que, em grande número, representaram na bancada a figura emblemática do verdadeiro símbolo do Colete Encarnado, cujas festas comemoraram este ano o seu 85º aniversário.
Manuel Gama dirigiu esta corrida com o acerto e a competência habituais. Apesar de no final ter sido alvo de protestos e até mesmo de alguns insultos. Mas Vila Franca é diferente… E continua a ter un color especial.
A corrida foi emotiva, teve um ambientazo como há muito se não via na “Palha Blanco”, são tardes destas que trazem calor à Festa e deixam na rua os aficionados a discutir.
Só perdeu quem não foi. E esta corrida culminou uma semana louca na tauromaquia lusa, que começou na quarta com um triunfo importante de António Telles e de Ventura no Montijo; prosseguiu na quinta com a absoluta confirmação de Parreirita Cigano e Jacobo Botero - frente a Toiros de Verdade de Veiga Teixeira - no Campo Pequeno como toureiros importante para mudar o rumo a isto tudo; que teve na sexta uma noite de inesquecível apoteose em Évora com casa esgotada e os triunfos inexcedíveis de Moura, de Pablo e de João Telles e dos Forcados de Évora, bem como da ganadaria Passanha; e que viveu sábado uma grande tarde de toiros em Monforte e outra noite de casa cheia no Montijo com Luis Rouxinol a enfrentar seis toiros (algo aquém do seu melhor). São, afinal, acontecimentos como estes que aqui referi que dão à Festa o calor e o entusiasmo que fazem lembrar tempos outros e mantêm viva e bem viva a chama da nossa Tauromaquia.
Os ventos começam, na realidade, a mudar. Andamos fartos de ver mais do mesmo. E estas corridas trouxeram muita coisa de novo. Semana positiva. Altamente positiva.
Fotos Carlos Silva