Ontem, mais importante que os triunfos pessoais de cada toureiro ou forcado, foi o grande triunfo da Tauromaquia que marcou, de forma excepcional, o Festival Taurino de praça cheia que encerrou o Dia da Tauromaquia. O triunfo da aficion. E da força da nossa razão - que será sempre a razão da nossa força
Miguel Alvarenga - As lides a cavalo a duo são um figurino absolutamente fora de moda e até os espanhóis acabaram com isso há mais de vinte anos - mas ontem justificaram-se, foram a razão de ser da união que esteve patente entre todos e para todos, ou quase todos, pudessem marcar presença.
Os duetos foram muito bem escolhidos, tendo em conta os estilos de cada um. António Telles toureou com seu sobrinho João e estiveram os dois em absoluta consonância, numa lide agradável, vibrante e cheia de bons momentos de grande toureio, marcada pelo classicismo e a verdade do Maestro e pela irreverência e ousadia de João; Rui Salvador e Francisco Palha são dois toureiros de "ferros impossíveis" e protagonizaram uma lide plena de emoção, marcada pela aparatosa e perigosa queda de Rui, que depois se encastou e veio por aí acima com a raça e a força que, 35 anos depois, seguem iguais aos primeiros dias (grande Toureiro!), havendo ainda a ressalvar que Palhinha quebrou por fim o enguiço da má sorte no Campo Pequeno e esteve igual a si próprio, ou seja, enorme, em tarde de estreia de dois novos cavalos. Os Telles lidaram o novilho-toiro de Passanha, de boa nota e Salvador e Palha o de Ribeiro Telles, que também deu excelente jogo.
Luis Rouxinol repartiu a lide com Filipe Gonçalves, dois estilos que se aproximam. Pena que o novilho de Prudêncio fosse tão reservado, tão fixado em tábuas e não tivesse proporcionado aos cavaleiros tudo aquilo que se queria. Até parecia que andou baralhado com a confusão de dois cavalos em praça... Imperou a maestria de Rouxinol e sobressaíu um "novo" Filipe, menos espalhafatoso, mais toureiro, a prometer grandes novidades nesta temporada.
O último duo, ante um toiro codicioso de Romão Tenório, esteve a cargo de Rui Fernandes e João Moura Júnior. Pontificou de início a maestria mourista, com João a evidenciar a forma suprema costumeira e Rui a sofrer um violento toque no primeiro ferro e a falhar depois o primeiro curto, mas depressa deu a volta e ambos terminaram em beleza, culminando com o público de pé uma lide que teve altíssimas vibrações e momentos de grande beleza e verdade.
As quatro pegas, executadas por uma selecção de cabos, tiveram na segunda, por Márcio Chapa (cabo do Grupo da Tertúlia do Montijo) o seu primeiro ponto alto, à primeira, muitíssimo bem, depois de Hugo Figueira (cabo dos Amadores do Redondo) só ter consumado a primeira da tarde à quarta tentativa. A terceira pega esteve a cargo de João Paulo Damásio (forcado dos Amadores do Montijo, que representou o cabo, ausente) foi executada à terceira e a última, enorme, como é apanágio do seu autor, foi brilhantemente executada por Manuel Pires, cabo dos Amadores do Ramo Grande, da Ilha Terceira, com uma grande ajuda de Pedro Coelho dos Reis, cabo do Aposento da Chamusca.
O terceiro, quarto e quinto toiros foram lidados pelos matadores no intervalo das lides a duo dos cavaleiros.
António João Ferreira lidou o novilho de Calejo Pires, que depressa se acabou e não tinha a qualidade necessária para o toureio de arte deste matador. Muito fez António João, tentando os possíveis e os impossíveis por agradar, destacando-se já na fase final quando toureou com a mão esquerda, por onde o novilho investiu melhor. Faena esforçada e valorosa.
Nuno Casquinha obteve um triunfo notável com o novilho de Condessa de Sobral, que deu excelente jogo e proporcionou ao toureiro mostrar o seu placeamento e a grande forma em que se encontra. Entrega com o capote, uma facilidade tremenda com as bandarilhas, onde o difícil até pareceu fácil e depois, uma faena artística e bonita com a muleta, onde imperou o domínio e se reafirmou o valor tremendo do toureiro. Triunfo incontestado.
Manuel Dias Gomes vinha com ganas, sobretudo por ter estado um ano sem tourear em Lisboa, depois de em 2017 ter tido um triunfo memorável ao lado de Padilla. Recebeu de joelhos em terra o novilho-toiro de Falé Filipe, com presença e trapio. Com a muleta, abriu o livro e foi um compêndio de arte, de temple, suavidade e bom gosto aquilo a que assistimos.
Estiveram muito bem as quadrilhas e tanto os bandarilheiros de Ferreira como os de Dias Gomes preencheram com notoriedade os seus tércios. Bem os campinos também.
O festejo, primorosamente dirigido por Manuel Gama, que esteve assessorado pelo médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva, iniciou-se com um minuto de silêncio nas cortesia, como já aqui referi, em memória de todos os grandes amigos que nos deixaram nos últimos meses - Emílio, meu querido, foste um dos lembrados e a mim nem calculas o que me custou pela primeira vez não te ver, e às tuas luvas brancas, na trincheira! - e ainda com um momento particularmente emotivo e que a todos disse tanto, quando os cavaleiros entraram na arena trazendo uma imagem de Joaquim Bastinhas e ali mesmo lhe renderam a sua sentida homenagem (foto ao lado). O público aplaudiu de pé a memória do Maestro - sem o qual tudo vai ser também tão diferente.
Também a Associação Nacional de Grupos de Forcados rendeu tributo a todos aqueles que perderam a vida numa arena, fosse de uma praça, fosse de um tentadero, com a presença de familiares de alguns deles na arena. A ANGF entregou ainda ao Museu do Campo Pequeno, por não ter o seu museu próprio (que um dia existirá) o Galardão Prestígio que recebeu em 2017 e ainda um Forcado para que ali perpectue a memória de todos aqueles cuja memória ontem foi louvável e muito justamente lembrada.
Está de parabéns a Federação PróToiro pela fantástica organização deste dia e, sobretudo, pelo enorme sucesso do Festival. Também a empresa do Campo Pequeno, que acolheu e foi parceira deste sucesso. Estão de parabéns os toureiros e os forcados que nele tomaram parte, dando um exemplo notável da união e da força que os congrega a todos num universo único e memorável a que se chama aficion. E está de parabéns, acima de tudo, o público aficionado pela resposta que deu à chamada e por ter enchido a praça.
Ganhámos todos - porque razão havemos de, às vezes, andar desunidos e de candeias às avessas, se depois, em momentos como este, sabemos dar as mãos e remar todos para o mesmo lado?
Ganhou a Festa. Venceu a Tauromaquia. E, repito, mostrámos ao mundo que a razão da nossa força é, hoje e sempre, a força da nossa razão.
Que assim seja para o resto da temporada!
Foto M. Alvarenga
Durante o dia de hoje não perca a grande reportagem de Maria João Mil-Homens com todas as actividades que marcaram o Dia da Tauromaquia e os melhores momentos deste fabuloso Festival.