segunda-feira, 6 de abril de 2020

A história de António Silva, o homem que agitou a tauromaquia

Em 2007 o jornal "Farpas" contou em quatro edições a história de António
Silva, o homem que agitou a Tauromaquia
Em Dezembro de 2006 o "Farpas" testemunhou o reencontro de António Silva
e Paco Duarte à porta da Monumental de Madrid, 29 anos depois de ali
terem dado muito que falar
António Silva num jantar com "os seus toureiros" Fernando Guarany e Paco
Duarte, com Miguel Alvarenga. Nesta noite idealizou um novo "mano-a-mano"
entre ambos, que acabaram por tourear na Malveira
A estreia do "Muleta Negra" em 1965 no Campo Pequeno
Miguel Alvarenga na Golegã com Paco Duarte e Manuel Valente,
o "Espontâneo Zip-Zip" que agitou o meio taurino nos anos 70
25 de Junho de 1970: o "Espontâneo Zip-Zip" no Campo Pequeno
Fernando Guarany fotografado há dois anos à porta do Campo Pequeno, no
mesmo lugar onde em 1977 se colocou vestido de toureiro dentro de um caixão
Paco Duarte em Outubro de 1978 quando finalmente se apresentou na Monumental
de Madrid e, em baixo, há dois anos, fotografado pelo "Farpas" no cenário da
sua "guerra"


"Muleta Negra" e Fernando Guarany prostraram-se à porta do Campo Pequeno vestidos de toureiros a reclamar uma oportunidade de ali actuarem. Manuel Valente, o "Espontâneo Zip-Zip" saltou à arena quando toureava "Paquirri" e acabou por cumprir o sonho de tourear na primeira praça de Portugal. E Paco Duarte esteve vinte dias à porta da Monumental de Madrid, também vestido de toureiro, acabando por tourear em Las Ventas. Todos eles tiveram um denominador comum: António Silva, o apoderado "das coisas impossíveis"

Miguel Alvarenga - António Silva foi um homem diferente. Morreu no início deste novo século, depois de nos anos 60 e 70 ter sido o grande responsável pelo lançamento revolucionário e inédito - pela forma como o fez - de toureiros como o "Muleta Negra", o "Espontâneo do Zip.Zip", o brasileiro Fernando Guarany e Paco Duarte.
Era conhecido por "Silva Gordo", pela sua forte compleição física. Vivera uns anos em Inglaterra e isso dava-lhe um certo glamour de gentleman das terras de Sua Majestade. No início dos anos 2000, o "Farpas", ainda na versão em papel, contou em quatro edições toda a história de António Silva, guardo ainda os manuscritos todos que me entregou e as fotos históricas que me deu na altura. Tinha dado um livro a sua vida.
António Silva trabalhava na empresa Wagons-Lis, companhia europeia de comboios. Viajava pelo mundo e em Espanha tornou-se um grande aficionado das touradas. Depois conheceu Adelino Pena, irmão do célebre empresário tauromáquico Américo Pena, que foi sócio de Manuel dos Santos, José Cardal e Alfredo Ovelha na empresa do Campo Pequeno durante vários anos.
António Silva tinha ideias "doidas" e com Adelino Pena idealizou que haveria de lançar novos toureiros em moldes completamente revolucionários para a época. O primeiro foi Germano de Sousa, a quem convenceu que utilizasse uma muleta negra para marcar a diferença, assim nascendo o "Muleta Negra", que nos anos 60 se prostrou vestido de toureiro à porta do Campo Pequeno a pedir uma oportunidade para ali tourear. Deu entrevistas à imprensa e explicou que a muleta era negra porque a sua vida também o era. Comoveu o país. Disse que triunfaria ou morreria na arena.
O empresário Manuel dos Santos deu-lhe uma oportunidade na noite de 9 de Maio de 1967. "Muleta Negra" apresentou-se no Campo Pequeno ao lado de Jesus Solorzano e Ricardo Chibanga com novilhos dos Irmãos Neto, mas não triunfou - nem morreu. "Fugiu, atrapalhou-se, revelou não ter sabedoria ou treino para sair daquilo em que se metera", recordam as reportagens da época. Foi a sua primeira e última tourada.

Manuel Valente, o "Espontâneo Zip-Zip"

Três anos mais tarde, António Silva conheceu em alguns tentaderos outro jovem que queria ser toureiro e se chamava Manuel Valente. Voltou a ter uma ideia brilhante e que ia dar nas vistas. Prometeu ajudá-lo. Um dia convidou-o a ir a uma corrida a Lisboa em que toureava o matador espanhol Francisco Rivera "Paquirri", ao tempo um ídolo da aficion portuguesa.
"Comprei-lhe uma barreira, dei-lhe um muleta para que a levasse escondida e disse-lhe para saltar à arena no toiro de 'Paquirri'", contou depoia António Silva ao "Farpas".
O jovem assim fez, ainda deu uns muletazos, mas foi colhido e detido pela Polícia. A história voltou a comover o país e Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia levaram o rapaz ao seu programa televisivo, o "Zip-Zip", na altura um dos grandes atractivos da televisão portuguesa (RTP). Ficou conhecido como o "Espontâneo Zip-Zip" e a 25 de Junho de 1970 o empresário Manuel dos Santos apresentou-o no Campo Pequeno ao lado do espanhol Blás Romero "El Platanito" e dos cavaleiros Fernando de Andrade Salgueiro e José Luis Sommer D'Andrade e dos forcados do Barrete Verde de Alcochete, com toiros de João Gregório.
Uns meses depois, António Silva teve outra ideia e Manuel Valente saíu de Portugal numa bicicleta, vestido de toureiro, rumo a Madrid, para pedir uma oportunidade de actuar em Las Ventas. A meio do caminho, repórteres da televisão espanhola esperavam-no e a história correu o país.
Numa das quatro entrevistas ao "Farpas" em Dezembro de 2007, António Silva contou a história e acusou o famoso toureiro Luis Miguel Dominguín de "ter cortado as pernas" ao jovem toureiro português.
"O Manuel Valente foi entrevistado num programa de televisão e Dominguín ligou para os estúdios e, em directo, propôs-se a ajudá-lo. Mas Dominguín ia nesse ano reaparecer nas arenas e apenas se utilizou do impacto mediático que teve a história do Manuel Valente para promover o seu regresso e a seguir cortou-lhe as pernas e não o ajudou mais...", contou Silva.
Manuel Valente tinha mais jeito e mais arte que o "Muleta Negra" e ainda toureou alguns anos, chegando mesmo a tomar a alternativa de matador de toiros.

Guarany num caixão à porta do Campo Pequeno

No ano de 1977, um jovem brasileiro, que já fora modelo, também queria ser toureiro, Chamava-se Fernando Guarany e António Silva espreitou novo "furo". Tinham passado dez anos desde a história do "Muleta Negra", viviam-se os tempos loucos da revolução do 25 de Abril, era o tempo ideal para pôr em prática mais um dos seus "números".
Na manhã do Domingo de Páscoa, em que se inaugurava a temporada em Lisboa, Fernando Guarany colocou-se dentro de um caixão à porta da praça, vestido de toureiro, reclamando uma oportunidade para aí tourear. Às primeiras horas da manhã, a Polícia deu-lhe voz de prisão por não ser permitido estar na via pública dentro de um caixão. O toureiro foi para esquadra e depois deixaram-no sair e voltar para a porta do Campo Pequeno, mas a urna ficou apreendida.
Guarany permaneceu um mês na porta principal da praça de toiros de Lisboa, foi notícia em todos os jornais e na televisão e todos os dias havia romarias de pessoas até ao Campo Pequeno para ver o brasileiro que queria ser toureiro.
A empresa - ao tempo liderada por Manuel Jorge Díez dos Santos, o filho de Manuel dos Santos, que entretanto falecera vítima de acidente de automóvel - deu-lhe por fim uma oportunidade e Fernando Guarany esgotou o Campo Pequeno na tarde de 29 de Maio de 1977, repartindo cartel com o então promissor novilheiro Francisco Duarte (Paco Duarte), os cavaleiros Gustavo Zenkl e José Zuquete e os forcados da Azambuja, lidando-se toiros de Vicente Caldeira.
A estreia do toureiro brasileiro foi um sucesso e Guarany foi várias vezes repetido no Campo Pequeno, actuando em muitas outras praças nacionais.

Paco Duarte 20 dias à porta da Monumental de Madrid

Um ano depois (1978), outra ideia despoletou na imaginação revolucionária de António Silva, desta vez mais ousada e fora de portas: em vez de Lisboa, Madrid. E o candidato a tourear na Monumental de las Ventas, a primeira praça de toiros do mundo, desta vez era Paco Duarte, jovem promissor novilheiro da Malveira, que seias anos antes (1972) se estreara num espectáculo de juventude na desaparecida praça da sua terra, ao lado de outros jovens, entre os quais os então promissores cavaleiros Manuel Jorge de Oliveira e João Moura.
Em Setembro desse ano de 1978, António Silva viajou de avião com Paco Duarte para a capital espanhola.
"O Paco levava o traje de luces consigo e a minha ideia era que ele se vestisse no avião quando estivessemos a aterrar e do aeroporto fossemos logo para Las Ventas, onde se colocaria na porta principal a pedir uma oportunidade para ali actuar", contou António Silva ao "Farpas" anos depois desse episódio.
"Foi engraçado porque ele foi-se vestir de toureiro na casa de banho do avião e as hospedeiras ficaram espantadíssimas e perguntaram-me se ia tourear a Carabanchel. Na altura havia umas novilhadas nocturnas em Carabanchel. E eu pensei cá para mim: ainda vai mas é para a prisão de Carabanchel, que é uma das cadeias principais da capital...", contou o apoderado.
Mal o avião aterrou, apanharam um táxi para Las Ventas. Paco Duarte permaneceu vinte dias vestido de toureiro à porta da Monumental de Madrid, rodeado por fotografias e cartazes, a pedir uma oportunidade. Foi, até hoje, o único toureiro a protagonizar semelhante acto na primeira praça de toiros do mundo.
A 12 de Outubro desse ano de 1978, no Dia de Hispanidad, Paco Duarte actuou finalmente em Las Ventas - e as coisas funcionaram. Radicou-se depois a poucos quilómetros de Madrid, continuou toureando e em 1991 tomou a alternativa de matador de toiros, a que depois abdicou para se tornar bandarilheiro e o mais famoso e mais certeiro dos "puntilleros" no país vizinho.
Em Dezembro de 2006, o "Farpas" (em edição de papel) testemunhou à porta da Monumental de las Ventas, o reencontro histórico de Paco Duarte com António Silva, 29 anos depois de naquele mesmo local terem revolucionado a Espanha taurina.

O último sonho de António Silva

Morenito de Portugal, jovem novilheiro da Escola de Toureio da Moita, de ascendência africana, era o último sonho de António Silva, já neste novo século, para voltar a revolucionar o ambiente.
Em Dezembro de 2007, cerca de um ano antes de morrer, na última entrevista que me concedeu no jornal "Farpas", perguntei-lhe se ainda idealizava, nesse tempo, voltar a promover um "número" como os outros dos anos anteriores.
Respondeu-me assim:
"Isso hoje é tudo muito complicado e discutível. Além de terem que possuir algumas condições necessárias, é preciso conhecer bem a pessoa, o seu carácter, etc. Presentemente e pelo muito que já vi dele, era capaz de apostar no Morenito de Portugal. Não o conheço pessoalmente, nem nunca falámos, mas pelo que já lhe vi fazer na frente dos toiros, embora pouco, creio que com algumas arestas limadas poderia ser alguém a dar cartas em muito pouco tempo. Tem tudo para revolucionar o toureio a pé. Acreditem no que eu digo. O Morenito podia dar a isto a volta por que todos andam à espera e de que todos se queixam de que não há meio de acontecer. Basta lembrar o caso de Ricardo Chibanga. Nos tempos modernos e noutros moldes, ele podia reeditar tudo isso".
Morenito, entretanto, abandonou o sonho de ser toureiro. E António Silva morreu sem cumprir o últimos dos seus "números".
Não o publiquei na entrevista, mas posso hoje revelar a forma como António Silva me confidenciou pretender lançar Morenito e que uma vez mais revolucionaria os costumes:
"Se o Guarany se apresentou dentro de um caixão, a este eu punha-o à porta do Campo Pequeno crucificado, numa cruz, a pedir uma oportunidade. Hoje em dia, com as televisões e o mediatismo que noutros tempos não existia, era uma revolução no país!".
Mas não chegou a ser.

Fotos D.R.