Miguel Alvarenga - Uma tenta constitui um momento sagrado na vida de qualquer ganadaria, pelo facto de, e como o próprio nome indica, nesse acto se tentar, pontuar e seleccionar a bravura das vacas que, através dos futuros filhos, irão dar continuidade ao historial da divisa, segundo os critérios de avaliação do próprio ganadeiro, que é, por norma, quem dirige a função.
As tentas não têm público, exceptuando o pequeno e seleccionado grupo de convidados que o ganadeiro entende por bem ter nesses momentos a seu lado. E também não são previamente anunciadas, precisamente para evitar a eventual comparência de "penetras". As vacas são toureadas e mostradas ao ganadeiro por matadores de toiros ou novilheiros expressamente convidados para o efeito e que aproveitam a tenta para se prepararem e treinarem.
E, facto curioso, por mais figuras que sejam, por norma desempenham naqueles momentos um papel bem distinto daquele que protagonizam nas arenas, denotando até humildade (quando a têm) no acolhimento das indicações que o ganadeiro lhes dá para procederem na sua "faena" experimental desta ou daquela forma, para que nenhum detalhe passe despercebido sobre o comportamento da vaca e para que a consequente selecção e avaliação da bravura seja levada ao pormenor.
Intervem obrigatoriamente um picador, sem o qual não seria possível avaliar a investida da vaca ao cavalo e a sua eventual bravura ou "desbravura" - que é precisamente o que apurará ou não o animal para continuar entre os efectivos da ganadaria e assegurar os futuros toiros a lidar em praça.
As tentas decorrem em silêncio e em ambiente sagrado, onde quem fala é apenas o ganadeiro que as dirige e o toureiro.
Ontem em Vila Viçosa, na quinta do ganadeiro e antigo cavaleiro José Luis Cochicho, realizou-se a primeira tenta pós-pandemia, depois de durante dois anos e meio a covid ter impedido a realização de semelhantes provas. Em grande momento, a ganadaria de Cochicho tem um curro de toiros já escolhido para ser lidado este ano numa das corridas que Rui Bento promove na praça da Nazaré.
Os toureiros participantes na tenta de ontem foram os afamados matadores espanhóis Manuel Díaz "El Cordobés" e Javier Conde, que foram coadjuvados por Cândido Ruiz, um dos bons bandarilheiros espanhóis da actualidade, que actua na quadrilha do primeiro matador e integra também a do nosso "Juanito".
Manuel Díaz, hoje já com 53 anos, mas com as mesmas ganas de sempre, é um toureiro emblemático, precisamente pela áurea que criou desde o princípio à sua volta, fruto do seu desmedido valor, e pelo facto de ser filho (ilegítimo, mas finalmente reconhecido pelo pai, uma "bomba" há muito esperada e que em breve inundará as capas das revistas sociais da vizinha Espanha!) do mítico Manuel Benítez "El Cordobés", ainda e sempre o toureiro que marcou a Festa na segunda metade do século passado e que, como esta manhã revelámos, aos 85 anos se mostra agora predisposto a actuar num festival ao lado dos dois filhos, em Córdoba, a favor da Ucrânia.
O novo "El Cordobés" cumpre esta temporada 29 anos de alternativa. Recebeu-a a 11 de Abril de 1993 na Real Maestranza de Sevilha - apadrinhado por Curro Romero, com o testemunho de "Espartaco".
Esteve dois anos sem tourear devido a uma delicada lesão num joelho e reapareceu na temporada passada. Já não toureia tanto como dantes (numa temporada, recordou ontem, chegou a somar 135 corridas em Espanha e mais 35 nas Américas, um total de 170!), mas vai participar este ano em dez corridas, pelo menos, e tão cedo não pensa retirar-se das arenas. É casado em segundas núpcias, tem três filhos.
Javier Conde (48 anos), natural de Málaga, discípulo do famoso "Niño de la Capea", amigo íntimo e compadre de Enrique Ponce (e também de Manuel Díaz), é um toureiro de arte que fez história e, embora não estando retirado, toureia poucas corridas e alguns festivais por temporada.
Casado com a famosa cantora Estrella Morente, Javier Conde é um caso no mundo da tauromaquia. Tomou a alternativa em Málaga a 16 de Abril de 1995 e cortou nessa tarde três orelhas. Foi seu padrinho "Niño de la Capea" e "Jesulín de Ubrique" foi a testemunha.
Conde já estivera no tentadero de José Luis Cochicho, uma praça de tentas bonita e bem cuidada, baptizada com o nome do pai do ganadeiro/cavaleiro, o saudoso empresário Francisco José Cochicho, um homem de quem muitos guardam emotivas e gratas memórias. "El Cordobés" estreou-se lá ontem. E um e outro manifestaram o seu encanto pela beleza do espaço e pela extraordinária qualidade de algumas das vacas que se lidaram, seis no total, duas menos boas, outras duas de nota alta e mais duas, a quarta e a quinta, "de campeonato".
O facto de não se realizarem tentas na ganadaria há dois anos e meio e de as vacas que ontem sairam à praça de tentas estarem com idade, com peso e imenso trapio, levou mesmo os dois experientes matadores a comentarem que "pareciam toiros" e "hoje saímos daqui como se tivéssemos toureado um festival e não propriamente uma tenta".
Há muito que José Luis Cochicho entregou a seus filhos Luis Filipe (reputado advogado, que foi promissor toureiro a pé, frequentou a extinta Academia de Toureio do Campo Pequeno e chegou a tourear em festivais, um deles o da Rádio Campanário em Vila Viçosa, onde repartiu um dia cartel com dois figurões como Francisco Ruiz Miguel e Vitor Mendes; e é hoje comentador das transmissões do Canal Extremadura) e Maria Inês a direcção da ganadaria. Ontem foi Luis Filipe quem esteve, com a exigência e os conhecimentos que lhe reconhecemos, no comando das operações.
Os presentes - como antes escrevi, as tentas não têm público - foram ontem o antigo e recordado bandarilheiro Albino Fernandes (que durante muitos anos integrou, entre outras, as quadrilhas de Alfredo Conde, de José Maldonado Cortes e de José Luis Cochicho) e o autor destas linhas, a que depois se juntaram Antónia, a simpática cunhada de José Luis Cochicho, e seu marido João Serrano.
Na lide das seis vacas, em que intervieram, com a experiência e a maestria de sempre, o picador (retirado) Dionísio Grilo, actualmente ao serviço da ganadaria Ascensão Vaz e que durante vários anos integrou a quadrilha do matador António Ferrera, e o já referido bandarilheiro espanhol Cândido Ruiz, os matadores Manuel Díaz "El Cordobés" e Javier Conde proporcionaram-nos momentos de rara beleza com a sua arte, o seu poderio e o seu temple - de que, a seguir, vos mostrarei detalhes que marcaram um dia inesquecível.
Depois da tenta, no salão recheado de recordações da carreira de José Luis Cochicho - que no próximo dia 6 de Junho comemora o 35º aniversário da sua alternativa - teve lugar um almoço servido pelo Restaurante "El Cristo" de Elvas (a "segunda casa" de José Luis Cochicho, como ele diz), onde em animada tertúlia pudemos desfrutar da simpatia e da simplicidade de dois monstros do toureio, que recordaram histórias e mais histórias das suas tão intensas vivências neste mundo dos toiros, em particular muitas das façanhas que viveram juntos além-Atlântico, nas feiras taurinas do México, da Colômbia e da Venezuela, onde foram - e são ainda - ídolos.
"Que grande dia, que dia tão bem passado, um desses dias que a gente não esquece mais", como reza o fado. Um dia marcado pela reconhecida arte de bem receber de José Luis e Manuela Cochicho e de seus filhos Luis Filipe e Maria Inês. Fica - sempre - a vontade de lá voltar.
Fotos M. Alvarenga
A tribuna do tentadero "Francisco José Cochicho" |
Lidaram-se ontem seis vacas, destacando-se pela bravura a quarta e a quinta |
Luis Filipe Cochicho esteve no comando das operações |
Os dois matadores saudando a presença da anfitriã Manuela Cochicho |
José Luis Cochicho à conversa com "El Cordobés" |
Jose Luis Cochicho, Albino Fernandes, Manuela Cochicho e sua irmã Antónia Serrano |
Manuela Cochicho, Antónia e João Serrano |
Detalhes: apetrechos dos toureiros |
Dionísio Grilo, "El Cordobés", Maria Inês Cochicho, Javier Conde, Luis Filipe e José Luis Cochicho e Albino Fernandes |
Miguel Alvarenga com os dois ganadeiros e os matadores |
As lides foram coadjuvadas pelo eficiente bandarilheiro Cândido Ruiz, que pertence às quadrilhas de "El Cordobés" e do nosso matador "Juanito" |
Os anfitriões José Luis e Luis Filipe Cochicho com os toureiros |
José Luis Cochicho em sua casa junto ao cartaz da sua alternativa, de que se cumprem 35 anos no dia 6 de Junho |
Foto de grupo, ao final de um dia tão bem passado |
Dionísio Grilo, que durante muitos anos honrou Portugal em todo o mundo como brilhante picador |