sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Campo Pequeno: e afinal correu tudo bem!

Presume-se que tenha sido feita a homenagem que estava
anunciada à Família Bohórquez. Mas ninguém entendeu uma
palavra do que pregou António Lúcio... o som da primeira
praça do país voltou à "estaca zero", isto é, não existe...

Miguel Alvarenga - Diz-se que Deus escreve sempre direito por linhas tortas. E ontem o público escreveu direitíssimo por um cartel que era meio torto. O Campo Pequeno quase encheu, quando muitos vaticinavam que ia estar a praça por metade ou ainda por menos Viva o público aficionado! E viva o Campo Pequeno - Sempre!

Rotineiro, vulgar, "mais do mesmo", o cartel da corrida de ontem no Campo Pequeno (a do Emigrante, com o tradicional Concurso de Pegas) tinha tudo menos aquilo que é preciso para causar uma enchente numa praça - um toque de ousadia empresarial, qualquer chamariz forte que marcasse a diferença.

Muitos criticaram, e eu também critiquei, o facto de este "cartel de Azambuja ou de Idanha", isto sem qualquer tom depreciativo para as duas referidas terras -  estar incluído no pacote, leia-se abono, de uma temporada de apenas quatro touradas na primeira praça do país. Deviam ser quatro grandes acontecimentos - e este de ontem não era. Era, apenas e só, uma corrida vulgar. E, para mais, transmitida em directo para o mundo pelo canal espanhol OneToro, correndo-se o grave risco de mostrar uma praça com as bancadas vazias.

Numa temporada de mais corridas, como eram as de antigamente, tinha todo o cabimento este cartel vulgar de seis cavaleiros. Num mini-abono de só quatro touradas, tenham santa paciência, mas impunha-se que todas elas fossem grandes acontecimentos - e não, apenas, corridas vulgares, como foi esta.

Havia tudo e mais alguma coisa para motivar e justificar, de facto, a nossa preocupação - nos dias, nas semanas, sobretudo nas horas antes da corrida. Pombeiro, o empresário, confessava-me de manhã que nem tinha dormido... ou, pelo menos, não tinha conseguido dormir descansado. Mas no fim deve ter sentido o orgulho da missão cumprida. Afinal, contra tudo e contra todos, ou talvez contra alguns apenas, a corrida funcionou. E o público acorreu ao Campo Pequeno, não deixou, como alguns vaticinavam, as bancadas às moscas. 

Na verdade, o adorável públicozinho português, que é mesmo o melhor do mundo, correspondeu à chamada, encheu quase três quartos da lotação da praça. Dois vizinhos de bancada que se sentavam atrás de nós referiram precisamente que estavam ali e estariam outra vez nas próximas duas corridas da temporada lisboeta, como tinha estado na anterior, para que o Campo Pequeno não acabe, para que não haja pretextos para acabar com as touradas. O Campo Pequeno é sempre diferente - tem um glamour único. Uma classe distinta.

E, feitas as contas, sem ter sido uma corrida do outro mundo, acabou por ser uma noite divertida - em que os maiores triunfos, no que aos cavaleiros diz respeito, foram de Ana Batista, de João Moura Caetano e de Luis Rouxinol Júnior.

Os toiros da ganadaria Vinhas não são propriamente toiros fáceis - bem apresentados, pesados (demasiado pesados alguns, com corpos enormes e cabecinhas pequeninas, destoando do que é a fisionomia do toiro bravo, mas dentro da habitual linha Santa Coloma da famosa ganadaria...), proporcionaram lides calmas e tranquilas (sem sustos) aos cavaleiros, empurraram com força e violência nas pegas, mas não chegaram propriamente a romper. Serviram, deixaram-se lidar, mas transmitiram pouco - não foi, em termos ganadeiros, uma noite por aí além. Nem boa, nem má... antes pelo contrário.

Ana Batista ganhou um novo fôlego nesta temporada com o fantástico cavalo com o ferro de Pablo Hermoso. E ontem voltou a brilhar nele, com ele, deixando alta a parada para as actuações que viriam a seguir. Um triunfo agradável da grande toureira numa praça que tem feito parte - importante - da sua história.

João Moura Caetano fez-nos sentir a todos a inspiração, a arte, o temple que lhe vão na alma e que marcam a diferença sempre que entra em praça. Toureou um bonito exemplar da Herdade do Zambujal com a classe e o bom gosto que são apanágios da sua tauromaquia. Um êxito gordo e marcante de Moura Caetano na primeira praça de Portugal, a poucos dias de actuar também na primeira praça de Espanha e que é também a primeira do mundo, a de Las Ventas, em Madrid.

Manuel Telles Bastos fez jus, como sempre faz, à sua forma de tourear à antiga, com classe e elegância. Lide perfeita, mas que acabou por vir a menos na recta final quando mudou de cavalo. No fim, o forcado não quis dar a volta e Manuel deu-a sózinho.

Duarte Pinto é outro cavaleiro clássico. Procurou executar o seu toureio frontal, emotivo e verdadeiro, mas ontem nem sempre as coisas lhe correram de feição. Esteve bem, sem poder estar melhor, porque o seu Vinhas, complicado, reservado, tinha muito peso - 680 quilos (credo, cruzes, canhoto, quase 700 quilos não é peso para um toiro!...) - mas pouca qualidade.

O espanhol Andrés Romero goza de bom cartel entre a aficion lusitana. Recebeu o toiro sem ferro para cravar, com uma jaqueta. Dobrou-se bem, parou-o, depois iniciou a sua actuação e teve alguns ferros de qualidade. Apenas não soube terminar a lide. Saltou do cavalo "à Bastinhas", mas já apeado pediu mais um ferro. Foi buscar outro cavalo e tentou cravar uma "mourina" - que não resultou. Levou um toque violento e pelo meio ouviu um aviso para ir embora. No fim, fez uma tentativa de trazer os cavalos para o acompanharem na volta à arena (?), mas o público e o director de corrida (muito bem) não o autorizaram a isso...

A corrida terminou com um triunfo empolgante e uma lide de muito valor, a tourear, a bregar, a rematar as sortes com arrojo e ousadia, de um inspirado Luis Rouxinol Júnior - frente a outro Vinhas com 600 quilos, com muito esqueleto e pouca carinha. Puxou Rouxinol dos galões, numa lide brindada a seu pai (que ontem fazia anos) e também a Fermín Bohórquez (como o fizeram, aliás, todos os cavaleiros) e fechou a noite com chave de ouro - uma lide triunfal.

Muito bem todos os bandarilheiros que coadjuvaram as lides e bem colocaram os toiros para os forcados. Sem desprimor algum para os demais, permitam-me - e não se ofendam - que destaque a diferença e a arte com que sempre marcam uma corrida bandarilheiros como Duarte Alegrete, António Telles Bastos e João Pedro Silva "Açoreano".

Também havia críticas ao facto de o Concurso de Pegas ser disputado por três grupos "menores" - e, afinal, tão grandes ou maiores que os outros! -, quando há grupos "consagrados" que ficaram de fora da temporada lisboeta. Mas Deus escreveu sempre direito por linhas tortas... e os grupos de Amadores de Coimbra, Amadores de Monsaraz e Académicos de Coimbra honraram ontem com toda a dignidade e todo o mérito os pergaminhos da nobre e tão portuguesa arte de pegar toiros.

Já a seguir, publicaremos a habitual reportagem com as sequências das seis pegas. Para já, refira-se que o concurso (o júri eram os três cabos dos grupos actuantes) foi ganho por André Mendes, dos Amadores de Monsaraz, autor da segunda pega da corrida - mas não teria vindo nenhum mal ao mundo se o vencedor tivesse sido João Tavares, dos Académicos de Coimbra, que pegou brilhantemente o último toiro da noite. Uma vitória ex-aequo também teria sido bem aceite.

Pelos Amadores de Coimbra pegaram Pedro Casalta à primeira e André Macedo à segunda; pelos de Monsaraz, foram caras o vencedor André Mendes ao primeiro intento e João Ramalho também na primeira tentativa, havendo a lamentar nesta pega a fractura do tornozelo sofrida por um dos ajudas, Diogo Potes; e pelos Académicos de Coimbra pegaram Francisco Gonçalves à terceira tentativa e o já referido João Tavares à primeira.

A corrida foi transmitida em directo pelo canal OneToro com comentários a cargo de David Casas e de Rafael Peralta (filho do rejoneador do mesmo nome) e de João Vasco Lucas (que comentou as actuações dos forcados), com as entrevistas, entre tábuas, feitas por Margarida Calqueiro. Tendo estado na praça, não me posso pronunciar sobre a transmissão. Dizem-me que teve alguns tempos mornos e que lhe terá faltado a vida e o ritmo que a equipa imprime às transmissões de corridas de Espanha...

Festa é festa, transmissão em directo para o mundo exige festa e talvez por isso o eficiente director de corrida Manuel Gama (que ontem esteve assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva) optou ontem por musicar depressa e em força todas as lides. Além disso, houve competição de bandas, o que também tornou a noite bem mais festiva - além da residente do Samouco, abrilhantou ontem a corrida a Banda da Santa Casa da Misericórdia de Arruda dos Vinhos. E na próxima corrida, dia 22, virá a da Amareleja. Lisboa é diferente - e Lisboa é uma festa. 

Silvino Lúcio, presidente da Câmara de Azambuja, assistiu sózinho (apenas com a senhora que o acompanhava) no chamado camarote vip da ProToiro, onde desta vez não estava nenhum elemento da federação. Estariam a banhos? O presidente Francisco Macedo assistia à corrida numa primeira fila do sector 4. Hélder Milheiro, Nuno Pardal & Companhia, ontem, nem vê-los... Estranho, mais a mais tratando-se de uma corrida televisionada e, portanto, com maior visibilidade que o costume. Mas não se quiseram deixar ver os amiguinhos da ProToiro...

Se noutras touradas encheram o camarote de deputados e autarcas, ontem tinham tido uma oportunidade fantástica de mostrar ao mundo que em Portugal há políticas que apoiam a tauromaquia. Mas preferiram assobiar para o lado, foram de férias ou se calhar amuaram com alguma coisa e desapareceram em combate. É o que eu me farto de perguntar: esta ProToiro serve, final, para o quê?...

E por fim, as coisinhas anormais que se passaram: primeiro, o som. Ao fim de muitos anos de uma vergonhosa aparelhagem sonora, a primeira praça do país estreou novo som na corrida de abertura da temporada. Percebia-se tudo o que dizia António Lúcio. Ontem, voltou o som de antigamente. O não som, entenda-se. Bem se fartou de pregar Lúcio, mas ninguém entendeu patavina do que ele disse. Ouviram-se uns ruídos, só isso. Lamentável.

Ao início, presumo que se tenha feito a anunciada homenagem à Família Bohórquez. Pelo menos, Fermín veio à arena agradecer uma ovação e mostrar um bonito quadro oferecido pela empresa, da autoria do artista plástico Diogo Amaro, antigo forcado do Aposento do Barrete Verde de Alcochete que uma vez saíu aos ombros desta praça. Mas do que pregou Lúcio não se entendeu nem uma palavra...

Ao intervalo, foram à arena os três cabos dos grupos de forcados, que receberam lembranças entregues pelos empresários Luis Miguel Pombeiro, Jorge Dias e Samuel Silva. Presumo que por todos eles estarem a cumprir significativos aniversários. Mas também ficou por entender.se o que pregou Lúcio...

Vergonhoso que o Campo Pequeno não tenha som... vergonhoso a todos os títulos.

Vergonhosa a poeirada que se levantou na arena durante as primeiras três lides. Diz a empresa que foram os cavaleiros que não permitiram que se regasse mais o piso da arena (que estava pesadíssimo). Ao intervalo, entrou em praça um senhor que parecia vir de roupão (talvez tivesse estado a dormir antes...) com uma mangueira a regar, apoiado nas indicações de dois bandarilheiros...

Nestes aspectos, som e estado do piso da arena, havia que se ter mais cuidado. Não esquecer que se trata, ainda, da primeira praça do país... e não de uma qualquer portátil.

E houve ainda uma homenagem à tradição da tourada à corda da Ilha Terceira, mas isso não foi culpa de ninguém, foi apenas teimosia do segundo toiro de Vinhas, que por nada deste mundo queria ir para dentro e teve que ser laçado para finalmente sair de cena...

Fotos M. Alvarenga


Público correspondeu e encheu três quartos da lotação
Empresários presentearam os três cabos pelos aniversários
dos seus grupos de forcados


Ao intervalo veio um senhor de roupão regar finalmente o piso
e pôr fim à poeirada que mais parecia uma tempestade no deserto
No segundo toiro houve homenagem à Tourada à Corda da Terceira


Momento solene da votação na melhor pega: o júri, composto
pelos três cabos, reunido no final com os empresários
E o vencedor foi André Mendes (segunda pega) de Monsaraz