quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Moita: a arte e o poder de Emílio, o querer e a atitude de "Cuqui"

Miguel Alvarenga - Emílio de Justo é um grande toureiro, artista e poderoso, um dos primeiros do momento, tendo-se estreado com enorme sucesso ontem em Portugal na primeira corrida da importante Feira da Moita a substituir o anunciado Morante de la Puebla, que à mesma hora se encontrava (há dois dias) em descanso na Ilha da Madeira à procura de recuperar dos problemas psicológicos que o afectam, com a esperança de poder reaparecer no dia 29 na sua Real Maestranza.

Mesmo sem Morante, que era a estrela do primeiro cartel, o público não deixou de ir à Moita e a carismática praça "Daniel do Nascimento" registou uma bonita presença de aficionados a encher três quartos fortes da sua lotação- como não me lembro de ter visto nesta data, nos últimos anos. Afinal, o toureio a pé e a corrida mista, pelo menos na aficionada Moita do Ribatejo e também em Vila Franca, não deixa as praças tão vazias como alguns diziam e outros defendiam - para tentar justificar a promoção de touradas só com cavalinhos e pegadores, fugindo da hipótese de contratar matadores assim como o Diabo foge da Cruz, credo!

Emílio de Justo veio, como se costuma dizer, mesmo à justa, anunciado dois dias antes, depois de o empresário Ricardo Levesinho (que não é a primeira vez que sofre desgostos pela não comparência de toureiros estrangeiros que contrata e que anuncia com tanto e tão justificado entusiasmo...) ter passado umas noites sem dormir, perante a incerteza da vinda do diestro de La Puebla.

Não era fácil encontrar um substituto para Morante sem beliscar a sensibilidade dos exigentes aficionados da Moita. Levesinho teve a arte de conseguir contornar o problema e de apresentar ao público da "Daniel do Nascimento" um toureiro de alto nível, não podendo ser acusado de ter dado gato por lebre, não senhor.

Com ou sem Morante, o público acorreu em força à Moita. E ao toureio a pé. E valeu a pena. A primeira faena de Emílio de Justo foi um quadro para emoldurar e não esquecer mais. Um verdadeiro compêndio de bom toureio a pé. Com saber, com poder, com técnica, bom gosto e muita arte.

Dizia o sabedor e saudoso Fernando Camacho que quando a "Casa das Enguias" estava cheia, a praça também estaria. E assim foi. Deliciei-me primeiro com as incomparáveis enguias do acolhedor e fantástico restaurante do António Manuel e da Fernanda, e depois cheguei à praça, com meia-hora de antecedência e por pouco perdia as cortesias. Não assisti, com pena, à procissão com a Virgem da Macarena. Nos outros, não sei. No sector 3, a cortar os bilhetes às centenas de espectadores que se enfileiravam numa "bicha" interminável e desesperante (era assim que se dizia antigamente, até chegarem as modernices e as estúpidas interpretações de que "bicha" pode ter outro perigoso significado...), estava um único funcionário, coitado do homem. Estive para voltar para trás, regressar a Lisboa, não tenho paciência para tanta falta de condições para ir ver uma tourada, mas o meu irmão aconselhou-me a respirar fundo. E fiz isso...

Vamos aos toiros! Primeiro, o piso da arena estava fatal. Não sei o que se passa, antigamente não era assim, hoje em dia os pisos estão sempre fatais. O de Lisboa levanta poeira como o deserto. Este da Moita está pesadíssimo, parece uma praia e isso condiciona, não tenham dúvidas, o comportamento dos toiros e até mesmo o desempenho dos artistas. Não há meio de as coisas no Portugalzinho das Toiradas serem normais e próprias para consumo?... Caramba...

Essa péssima condição do piso terá condicionado o andamento e comportamento dos dois toiros de Veiga Teixeira lidados a cavalo, a abrir e a despachar, que o pessoal estava ali era pelo toureio a pé. Os Teixeiras também tinham pouca qualidade, atiravam para o manso, não transmitiram, andaram ali por andar. António Telles e Luis Rouxinol (este com uma lide de maior impacto e a entusiasmar um pouco mais o público) limitaram-se ontem a "cumprir", como agora se diz, sem deixarem grandes recordações. Nem pareciam os mesmos que todos vimos triunfar na última sexta-feira no Campo Pequeno. Eram apenas parentes dos outros, provavelmente. Em suma, lides a cavalo não me lembro de quase nada... Passaram e ficaram esquecidas.

Os forcados do grupo de Amadores da Moita fizeram uma pega à primeira (Luis Chatinho, que deu volta com Telles) e outra à terceira (Tiago Silva, que não deu volta à arena).

A pé foram lidados quatro toiros. Os cavaleiros, desta vez, estiveram em clara desvantagem, enfrentando apenas um toiro cada, uns furos abaixo dos toureiros a pé, que tiveram segunda oportunidade, lidando cada um dois toiros.

Emílio de Justo enfrentou primeiro um toiro de Álvaro Nuñez, justo de "medidas", com apresentação razoável e que serviu às mil maravilhas para o matador espanhol, mesmo sem picadores, nos mostrar que é bom, muito bom mesmo. Poderosos, dominador, mas também artista, esteve bonito com o capote e com a muleta desenhou uma faena profunda, de muito sentimento e imensa técnica e arte.

O seu segundo toiro, quinto da ordem, era um toiro complicado e brusco de Paulo Caetano. Os dois toiros de Paulo Caetano não tinham cara, nem cornos, para uma praça de primeira. Mas ninguém protestou, nem um assobio. O pessoal estava ali para se divertir e para apoiar.

Com este toiro, Emílio de Justo esteve valente e cheio de valor, com muito ofício, muito saber e muita entrega. Não era fácil fazer o que ele fez. Acabou por dominar e domar o toiro, mas este acabou também ali, não quis mais ir à luta, fugiu para tábuas. Emílio agradeceu uma ovação dos que entenderam e reconheceram o valor do que acabara de fazer. A directora de corrida Lara Gregório de Oliveira, pelos vistos, não terá entendido isso. E não premiou o esforço do toureiro espanhol com música. Fica para a próxima...

Coisa que raramente acontece e ontem temos que destacar e aplaudir: estiveram muitíssimo bem com as bandarilhas os subalternos espanhóis de Emílio de Justo. Nos dois toiros.

O nosso "Cuqui", Joaquim Ribeiro de seu nome, toureiro moitense sem corridas (como, aliás, os outros matadores nacionais... este deve ter sido o ano em que todos tourearam menos, aqueles que chegaram a tourear...), demonstrou ontem o seu tremendo valor ao estar como esteve, sem ter toureado corrida nenhuma. Muita atitude (a receber o seu primeiro toiro de joelhos em terra à porta da gaiola, com uma emotiva larga afarolada que conquistou desde logo o público), muito bom gosto e muita entrega numa primeira faena bem desenhada a um belíssimo toiro de Paulo Caetano a que só faltava cara e cornos, de resto foi uma maravilha. Pareceu-me que a directora de corrida colocou o lenço para o ganadeiro dar a volta à arena, mas a escuridão que envolve o camarote do "inteligente" nesta praça da Moita não dá para ninguém se aperceber desses pormenores... "Cuqui" deu-a sem Paulo Caetano, que ficou no burladero acompanhado por seu filho João.

Destaque para um único par de bandarilhas que colocou neste toiro, em que deu a alternativa ao jovem bandarilheiro Mariano Meira, que cravou dois com decisão e poderio.

O segundo toiro de "Cuqui" era um exemplar de Álvaro Nuñez com cinco anos e maior imponência que todos os outros que ontem passaram pela arena da "Daniel do Nascimento". Um toiro de respeito. "Cuqui" não o bandarilhou, entregando a tarefa a Tiago Santos e Duarte Silva, que cumpriram este tércio com elevado brilhantismo, provocando as maiores ovações da noite e agradecendo ambos de montera na mão. Olé para ambos. A lidar, muito bem também, esteve Jorge Alegrias.

Com a muleta, sem atingir o brilhantismo da primeira faena, o matador moitense esteve artista e esforçado, ouviu música e foi aplaudido com entusiasmo pelo público da sua terra.

Ao intervalo, nos corredores, foi descerrada uma placa de homenagem póstuma a António José Rodrigues, antigo cabo do grupo de Amadores da Moita, cuja figura foi recordado num emotivo discurso pelo presidente da Câmara.

Ao início da corrida, na arena, prestou-se homenagem a Manuel Jacinto, que há precisamente 50 anos recebeu nesta mesma arena a alternativa de bandarilheiro. Entregaram-lhe lembranças a presidente da União de Freguesias da Malveira (terra onde vive o toureiro), Carla Galrão; e também o empresário Ricardo Levesinho e o presidente da autarquia moitense.

Manuel Jacinto assistiu à corrida toda num burladero na trincheira, mas, inexplicavelmente, não houve um cavaleiro, um matador, um forcado um bandarilheiro, que se lembrasse de lhe brindar uma sorte, um ferro que fosse, um par de bandarilhas. São outros os tempos e à Festa falta hoje, e de que maneira, as senhoriais atitudes e os gestos de educação e reconhecimento que eram características dos antigos. Enfim é o que temos, mas como isto também está para acabar, já nem vale muito a pena estarmos a preocupar-nos com essas coisas...

Estiveram bem todos os bandarilheiros; Miguel Mariano Meira pode orgulhar-se de ter protagonizado uma alternativa brilhante, meio século depois da do recordado Manuel Jacinto; o toureio a pé mostrou que tem força e provavelmente há muitos anos que não víamos a "Daniel do Nascimento" com tanta gente nesta tradicional primeira corrida da Feira.

Tirando o mau estado do piso da arena, as péssimas condições de acesso dos espectadores à entrada dos sectores, com filas sem fim e horas de espera desesperante, tirando a carinha sem cornos de dois dos toiros lidados a pé, a corrida viu-se, foi divertida e foi um pouco mais do que só mais uma...

Quinta-feira há mais.

Fotos M. Alvarenga


Para entrar no sector 3, a nossa "procissão" foi uma seca. Havia
um único funcionário na porta a cortar os bilhetes. Assim não
há condições...
Praça cheia ontem na Moita. Um belo prenúncio para a Feira


50 anos de alternativa: Manuel Jacinto foi homenageado ao
início da corrida, mas depois ninguém mais se lembrou dele...
nem um brinde, nem um simples abraço...

Telles cumpriu, Rouxinol teve mais impacto, mas o toureio a
cavalo ontem deixou pouca história para contar...
Amadores da Moita pegaram um toiro à primeira e outro à terceira

Muito valor, muita técnica, muito poderio e muita arte. Estreia
em grande de Emílio de Justo em Portugal



"Cuqui" com imensa atitude, sem corridas, mas a parecer que
tem toureado imenso!
"Cuqui" concedeu a alternativa ao bandarilheiro Mariano Meira