Miguel Alvarenga - Conheço e admiro há anos o valor e a raça do cavaleiro Filipe Gonçalves, que tomou a sua alternativa há mais de quinze anos numa corrida minha (Corrida "Farpas") na Moita. Conheço também e não me canso de aplaudir a meteórica ascensão do jovem Luis Rouxinol Júnior, que é, nos últimos anos, o cavaleiro que mais rápido alcançou o topo em tão poucos anos de alternativa. Conheço e elogio a promessa que é, e continua a ser, a alegre e desenvolta cavaleira praticante Mara Pimenta. Sigo com natural interesse e justificada expectativa a evolução dos jovens cavaleiros Joaquim Brito Paes e António Ribeiro Telles (filho), a quem esperam nos próximos tempos grandes desafios que os prometem transformar, de promessas que ainda são, em firmes certezas do futuro do nosso toureio a cavalo.
Mas ontem, o que me levou ao Coliseu do Redondo foi a novidade de pela primeira vez poder avaliar quanto vale, e se vale, aquele que se anunciava, na brilhante campanha delineada pelo seu apoderado João Anão, como o "revolucionário" do toureio a cavalo - o mexicano Emiliano Gamero, que neste momento é o primeiro no seu país e se consagrou recentemente como o único rejoneador azteca que indultou um toiro na Monumental do México.
E foi por isso que hoje decidi escrever não uma, mas duas crónicas. Esta para falar de Gamero e outra que se seguirá e onde apreciarei em detalhe as actuações dos atrás referidos cavaleiros lusos, que ontem também actuaram - e triunfaram - no Coliseu do Redondo.
Primeiro, Gamero. E começo precisamente por citar esta máxima: "Tudo o que é diferente incomoda o que é igual...". E incomoda mesmo.
Graças a Deus, já sou um bocadinho antigo nestas andanças. Lembro-me do mítico Benítez, o célebre "El Cordobés", a quem os ortodoxos chamaram todos os nomes possíveis e imaginários quando um dia inventou o desconcertadamente "salto da rã" e, contudo, foi e continua a ser a maior figura do toureio do século passado. "Todos toureamos melhor que 'El Cordobés', mas 'El Cordobés' é melhor que todos nós", disse um dia o sábio Maestro António Bienvenida.
Lembro-me, mais recentemente, no início dos anos 90, dos puritanos defensores da nobre arte de Marialva chamarem "palhaço" ao saudoso rejoneador espanhol Ginés Cartagena quando este se apresentou no Campo Pequeno e, citando o toiro de praça a praça, foi ao seu encontro e desenhou um "quiebro", e outro, e depois outro, "ao contrário", saindo da cara do toiro pela esquerda. E, no entanto, ele fez furor na altura em Portugal e no mundo e ainda hoje é lembrado como um "revolucionário" que desafiou as regras e aos costumes disse nada.
E, para não ir mais longe, lembro o exemplo do meu querido e eterno amigo José Mestre Batista - que é muito semelhante, anos mais tarde, ao do também saudoso Joaquim Bastinhas -, a quem todos criticaram e apontaram mil e um defeitos, porque tinha o cabelo comprido, porque usava as casacas acima do joelho, porque desafiava os costumes dos mestres de então, e no entanto o grande Mestre foi ele e ainda hoje, passados tantos anos, lhe tiram todos o chapéu pela revolução que fez na arte de tourear a cavalo.
Podia falar de muitos mais e muito em particular do Maestro João Moura, que modificou por completo a forma de tourear a cavalo e impôs uma ditadura bem maior e até mais sólida que a do Estado Novo, que não houve ainda revolução alguma capaz de acabar com ela e todos a continuam a seguir nos dias de hoje. Mas vim aqui para falar de Gamero.
A Festa hoje em Portugal, recheada de valores que tanto admiro, vive o síndrome permanente de "mais do mesmo". São todos (alguns mais que outros) muito bons, mas é tudo sempre igual. E, como cantava Zeca Afonso, "o que faz falta é agitar a malta!". Gamero agitou-a ontem no Redondo.
Ninguém esperava, creio eu, ver o mexicano tourear com o classicismo do Maestro António Telles, a diferença do Maestro Moura ou a verdade e a raça de Rui Fernandes, de Salvador, de Salgueiro e de tantos mais. O seu estilo é outro, a sua praia é outra. E tem outras ondas.
Mas não ouvi assobios, vi e senti o público com ele, vi-o fazer duas incríveis piruetas na cara do toiro, não a dois ou três metros de distância como muito as fazem, vi um toureiro "com praça", com atitude, com afirmação. E com arte. Arte distinta da dos bons calções lusitanos, obviamente. "A magia vale e é aplaudida em todo o mundo, desde que nasça com sentimento", tinha-me dito Emiliano na entrevista que lhe fiz esta semana. A magia de Gamero não tem que ser, obrigatoriamente, a magia, a classe e a arte dos cavaleiros portugueses. É qualquer coisa de diferente, um espectáculo distinto, de que se pode gostar e de que se pode, com toda a legitimidade, não gostar. Eu gostei, confesso. Porque não há, nunca houve, evolução sem revolução, sem aquilo que é diferente e incomoda o que é igual.
Gamero não é melhor que os cavaleiros portugueses, nem vem cá fazer uma "revolução" para acabar com eles, Deus me livre pensar uma coisa dessas. Mas acredito que chegou para "agitar a malta", para levar gente às praças com a garantia de que não vai ver "mais do mesmo". E por isso vai valer a pena vê-lo mais vezes e sobretudo em Beja, já no próximo dia 23, com dois toiros e em competição com dois dos nossos melhores, Caetano e Bastinhas.
Ontem, não é desculpa, nem pode sê-lo, porque o público que paga o bilhete não tem nada a ver com isso, Gamero actuava pela primeira vez na temporada portuguesa (há três anos já tinha toureado na Aldeia da Luz e também deixara ambiente), uma semana depois de ter chegado a este país e sem estar ainda devidamente acoplado ao nosso toiro, sem o uso de rojões de castigo, mas mesmo assim agradou (talvez menos aos ortodoxos, mais aos que aplaudem o que é bem feito e com sentimento), pese embora o incidente sofrido com a égua, que partiu o posterior traseiro direito (vulgo perna traseira) por ter colocado mal a pata no chão e não porque o toiro lhe tivesse provocado essa fractura. O que é muito diferente e acontece aos melhores.
A colhida aconteceu depois, como o atestam as fotos que esta madrugada aqui publiquei, precisamente porque Gamero não se terá apercebido da lesão que a égua sofrera e foi directo ao toiro para pôr o ferro, já não conseguido a sua montada sair da cara do oponente, exactamente porque estava lesionada, fragilizada e sem força no posterior traseiro.
Resumindo e concluindo, eu gostei de ver Emiliano Gamero. Tem arte, tem valor, faz a diferença. Não para melhor, nem para pior. Apenas é diferente do que é igual. E em Portugal fazia falta aparecer alguém assim.
Vai valer a pena tê-lo por cá nesta temporada? Claro que vai. Pelo menos vamos viver emoções distintas na arena e vamos ter uma saudável competição de um "revolucionário" com os melhores intérpretes da nobre arte portuguesa de bem lidar toiros a cavalo em toda a sela. Não vamos ver sempre "mais do mesmo".
E por isso, doa a quem doer (e se calhar, dói...), acredito na Revolução Gamero inteligentemente anunciada, com o objectivo de "agitar a malta", pelo seu apoderado João Anão. E tudo o resto são cantigas. De embalar. Como sempre. Fazem parte da necessidade de contestar. Porque, na realidade, "tudo o que é diferente incomoda o que é igual". Tenho dito. E as fotos falam por si.
Benvindo, Toureiro!
Fotos M. Alvarenga