E porque a tauromaquia não se faz apenas
de Corridas de Touros, aqui fica um artigo em escrita popular, relacionado com
as tão carismáticas Touradas à Corda, eventos taurinos com origem na Ilha
Terceira mas que há muito quebrou fronteiras e se enraizou noutras ilhas.
Eles andem aí!
André Cunha - De
cima das gaiolas alguém faz sinal ao velhote que passou a tarde a mascar
tabaco, a incandescente ponta do cigarro acende o rastilho e lá vai a cana
rompendo céu. Bem no alto, valentes estrondos ecoam longe, são lançados os
últimos foguetes apalavrados, sinal de que toiro no caminho só para o ano. Cá
em baixo fica o intenso cheiro a enxofre, uma nuvem de fumo paira sobre a
multidão que enche o arraial, é "povo cmá bicho"(1). Com semblante
enfadonho, homens de casaco às costas e mulheres com as malas ao ombro deixam
os seus postos que já ocupavam a algumas horas. A tourada à corda acabou, mas
no meio do desgosto alguns rasgam sorrisos e dizem que "pró ano há
mais!"
Dito
e feito, a promessa será cumprida. Não tarda nada e os reis do mato regressam
com baterias recarregadas aos arraiais da região (sim, porque mesmo tendo maior
expressão na Ilha Terceira, as touradas à corda expandiram-se um pouco por
todas as ilhas), para nova temporada da mais tradicional e carismática festa
popular "made in Azores".
Outrora,
o contentamento chegava com um simples saco de "cândins" e
"gamas"(2) da América. Hoje as emoções são mais fortes e a excitação
surge com a palavra toiro. Com o aproximar de nova época, sempre marcada para o
Dia do Trabalhador (1 de Maio), há quem já trabalhe arduamente para que as
primeiras touradas sejam em grande e para que tudo decorra pelo melhor.
Na
freguesia, os olfactos mais apurados dão conta de que o "Manel das
Pipocas" ligou a velhinha máquina de fazer "freiras"(3), já tem
o amendoim ao sol e já torrou as favas. O "Joaquim da Burra" tapa uma
parede de pedra do seu cerrado de milho, que havia sido
"esburralhada"(4) dias antes por uma égua parida, mesmo sabendo que
algum toiro mais saltador a volte a botar em baixo. Trabalhadores da junta
cortam a relva e dão uma mão de tinta na Casa do Povo. O "Ti Chico"
também dá uns retoques na sua casa e retelha o alpendre, enquanto o vizinho
aproveita para caiar as suas paredes, pois espera a chegada de parentes do
estrangeiro para as Festas do Espirito Santo. O "Pedrinho Ripas" só
vê pregos e madeira à frente, prepara cancelas e tapadas por medida, para
colocar no arraial. O pessoal da comissão faz matança, mata uma vaca e outros
vão para o mar. Quer-se carne nova e tenrinha para as bifanas, torresmos
frescos e bem amanhados, chicharros fritos e lapas do calhau.
Desta
forma, é fácil perceber que a organização de uma tourada não se restringe
apenas ao dia da própria tourada, pelo contrário, começa muito antes e envolve
muita gente pelas mais diversas razoes, que com dedicação e afinco primam para
que tudo esteja preparado para o dia dos toiros. Não podemos deixar de louvar o
trabalho de bastidores praticado pelos ganadeiros, pastores e todos os
colaboradores, visto que sem eles nada disto era possível (terão merecida
atenção futuramente). Depois do trabalho vem a recompensa, a ansiedade aumenta
com o aproximar do 1 de Maio e uma pergunta repete-se: " - Vais aos toiros
pa terça?"
De cima das gaiolas alguém faz sinal ao
mesmo velhote, que a 15 de Outubro do ano transacto, passou a tarde a mascar
tabaco. A incandescente ponta do cigarro volta a acender o rastilho e lá vai a
cana rompendo céu. Bem no alto, um valente estrondo faz estremecer qualquer um,
acaba de ser lançado o foguete, sinal de que toiro está prestes a pisar o
alcatrão. Cá em baixo reina um burburinho, hormonas nervosas e corações
palpitantes. Toiros de corda, sejam bem-vindos... "Eles andem aí!"
(1) Muita gente; (2) Rebuçados e pastilhas
elásticas; (3) Pipocas; (4) Derrubada.
Fotos D.R.