sexta-feira, 19 de junho de 2015

Noite mágica, mágica mesmo! Depois de "El Juli", já nada será como dantes...

Loucura total: "El Juli" em ombros pela porta grande do Campo Pequeno. Nunca
se tinha visto tourear tão bem a pé na catedral da tauromaquia nacional!
Ontem, Ventura conquistou em definitivo o Campo Pequeno! Esteve enorme!
Grande noite, também, para os Forcados de Montemor. A seguir, vamos mostrar
as quatro pegas, uma a uma. Em baixo, a homenagem da administração do
Campo Pequeno aos 60 anos de toureio do Maestro Mário Coelho


Miguel Alvarenga - Nada será mais igual e haverá sempre, como Rui Bento disse ao site "mundotoro.com", um antes e depois de "El Juli" no Campo Pequeno. A noite de ontem foi mágica, mágica mesmo e vai ficar na História como um ponto de referência para Lisboa, ma snão só, também para a temporada e para a Festa em geral em terras de Portugal.
Lembro-me, sou meio antigo, dos tempos de "Paquirri", de Dámaso González, de "Currilo", de "Niño de la Capea" e de Paco Ruiz Miguel, das noites grandes de Amadeu dos Anjos, de José Falcão, de Vitor Mendes, de Rui Bento e José Luis Gonçalves no seu tempo, do momento de Pedrito, mas não me lembro de ver tourear tão bem a pé no Campo Pequeno como ontem toureou "El Juli". E não me lembro do Campo Pequeno assim em tempo algum, a praça cheia, o púbico em euforia total, completa, loucura contagiante, no final obrigaram-no a dar três voltas à arena e queriam mais, não o queriam ver sair da arena e em ombros foi depois passeado e aos ombros saíu pela porta grande, glória tremenda para um Figurão do toureio mundial que ali esteve a dar a cara e a dar e a dar e a dar, como se Lisboa fosse Madrid ou Sevilha ou Nimes ou a Monumental do México, como se precisasse de provar alguma coisa a alguém, como se aquela fosse a noite e a corrida de que precisava para ser alguém, como se não fosse ele um toureiro já com história, com um lugar no reino dos maiores, bem casado, milionário, sem precisar de nada e a entregar-se daquela forma, ainda a agarrar nas bandarilhas quando lho pediram e a marcar, a dizer estou aqui, vim para tourear, vim para vos pôr a todos loucos. Foram um sonho as três faenas de "El Juli". Um sonho lindo na forma como deu importância ao tércio de capote, como depois parou os pés, mexia tudo, a muleta, os toiros, tudo menos ele, pés parados, rodando a cintura, elevando a arte, "muñeca" mandona, muleta mágica e ali ficou, podia ter vindo a cornada, impávido, sereno, como se tudo aquilo que fez fosse a coisa mais simples e mais fácil deste mundo, como se os toiros (o primeiro de Garcigrande, os outros dois de Domingo Hernández, que é a mesma coisa, o ganadeiro é o mesmo) tivessem saído de maravilha e não sairam, foram nobres, codiciosos, mas quem os obrigou a investir e a ficarem verdadeiramente hipnotizados no poderio e no mando da muleta, isso foi ele, isso foi obra dele e de mais ninguém. Fantástico, único, não vai ser fácil voltar a ver igual.
E, afinal, o toureio a pé tem público e tem gente entusiasmada que se levanta das bancadas e vibra, porque sente, porque "El Juli" transmitiu, naquele sorriso de menino, todo o sentimento e toda a paixão que lhe iam na alma. Não me digam nunca mais que o toureio a pé morreu em Portugal, não existe, coisas assim, porque isso é mentira e ontem ficou devidamente comprovado. E eu volto a bater na tecla. Ao "mais do mesmo", o público não acorre, as gentes estão saturadas. Aos acontecimentos diferentes, que tragam inovação, o público vai. E há-de ir sempre ao toureio a pé, quando o toureio a pé for como foi ontem.
Quando "El Juli", no seu último toiro, agarrou nas bandarilhas e se propôs a preencher ele esse tércio - em que é "do outro mundo", mas que nem sempre executa - deixou ali o retrato de um lutador, de um ambicioso, de um toureirão que já tem tudo e ainda quer mais, de um artista que se entregava com um profissionalismo e uma honestidade sem limites, nem fronteiras, nem mais nada.
Podia ter estado bem num toiro, era previsível, mas esteve mais que bem, esteve fantástico nos três, foram as faenas mais completas que se viram no Campo Pequeno desde há não sei quantos anos, foi o delírio, a apoteose, a loucura generalizada. Abriu a porta grande, que não se abria há cinco anos e por ela saíu aos ombros dos jovens toureiros da Academia do Campo Pequeno, Diogo Peseiro e Sérgio Nunes, que bonito esse gesto foi, que grandeza os dois miúdos demonstraram levando aos ombros a Figura que certamente os fez ontem sonhar mais alto e maior. Aos ombros saíu "El Juli", mas não chegou, agora deviam erguer-lhe uma estátua à porta do Campo Pequeno, que uma noite igual não vai ser fácil repetir tão cedo, como ele toureou, como ele esteve mandão, como ele se parou e ali ficou, desenhando pinturas de arte em cada passe, em cada lance, caramba, parecia fácil, caramba, parecia simples.
Tentei aqui descrever, ao sabor da emoção que ainda me enche a alma, o coração, apetece-me que me corram lágrimas de alegria, do sentimento que vivi, da alegria que pude ontem dar à Ana, que nem adora o toureio a pé e saíu deslumbrada, ao meu filho Guilherme, ao meu sobrinho Nuno, que nunca vira toureio a pé - mas não sei se consegui. O que ontem se viu na arena de Lisboa não se conta nem se descreve com facilidade. Vive-se, sente-se e depois mal se consegue contar. Desta vez, não há crónica que o descreva, vamos mesmo ter que ver os videos. E já mais nada vai ser igual. As palavras do Rui Bento ao "mundotoro.com" dizem tudo, expressam tudo, não há melhor para descrever a noite de ontem: "Como aficionado, profissional do toureio e como ser humano, estou imensamente feliz. Vai ser um marco de referência para a continuidade desta Festa que não acabará nunca". Pois vai.
E depois, Ventura. A noite de ontem foi de "El Juli", mas também foi de Ventura e dos Forcados de Montemor. Foi, sem dúvida, a melhor das quatro primeiras corridas desta temporada lisboeta, a melhor dos últimos anos, a melhor desde que reabriu Lisboa há nove anos, se calhar, das melhores em mais de cem anos de existência do Campo Pequeno. Estou a exagerar, estarei a esticar-me em demasia? Acho que não.
Diego Ventura mostrou ontem em Lisboa, em definitivo, a grandeza da sua tauromaquia, o poder e a força do seu toureio, a qualidade extrema dos seus cavalos - e a sua, claro. Pode o público português não simpatizar tanto com ele como simpatiza com Hermoso, mas depois de ontem tudo pode e deve ter mudado. Ventura esteve enorme no primeiro toiro (de Passanha), esteve grande, superior a ele próprio, um Senhor, brega indiscutivelmente fantástica, ferros ousados, com emoção e verdade, pisando terrenos  de onde se sai ao milímetro, toureando, também como "El Juli" o fez, com o querer e a ambição de um miúdo que começa e necessita de se afirmar. Ventura, ontem, conquistou definitivamente o Campo Pequeno.
No segundo toiro, de Guiomar Cortes de Moura, a substituir o de Vinhas que recebeu à porta da gaiola com a garrocha e que foi recolhido por manifesta dificuldade de locomoção, voltou a estar muito bem, impondo-se, conquistando, levantando o público das bancadas com a raça que irradia em cada pormenor, com os recortes de maravilha com que rematou todas as sortes, tudo aquilo também parece fácil e, afinal, é tão difícil e tão bem feito. Ventura, ontem, esteve em plano da primeiríssima Figura mundial que é e acabou-se de uma vez por todas aquele mau estar, aquela (des)empatia que existia entre ele e o público de Portugal, que também é o dele e ontem o passou a ser ainda mais.
O terceiro toiro que enfrentou, de Vinhas, procurou o refúgio nas tábuas, mas Ventura foi de lá tirá-lo, alcançou mais um triunfo importante na medida em que o toiro lho permitiu e ele lho exigiu e o obrigou e lhe sacou tudo o que o toiro não tinha para dar. Foram três actuações de muito alto nível, muito em especial a primeira - que vai também marcar esta temporada lisboeta, que promete ser mesmo Sensacional, como a tinham anunciado.
No final, ofereceu a lide do toiro sobrero, de Passanha, que não tinha as qualidades do primeiro e não lhe permitiu fechar com chave de ouro uma noite grande e que certamente vai para sempre guardar na alma e na sua história - que na alma de quem viu e na história do Campo Pequeno já ela ficou gravada e não mais será esquecida.
Os Forcados Amadores de Montemor foram também dignos e grandes triunfadores da mais bonita noite dos últimos tempos em arenas de Portugal. O grande Francisco Borges fez a primeira pega da noite, com a técnica costumeira, o saber mandar, saber recuar, as ganas com que se fechou e lá ficou, aguentando a "bomba" que parecia um comboio e o grupo coeso e pronto a ajudar, Francisco Godinho eficientíssimo a rabejar, como o haveria de repetir nas pegas seguintes, um senhor Forcado.
João Braga brindou a sua pega a "El Juli" e dele se esperava muito, como é seu hábito. Fez um pegão, como faz sempre, mas ontem as ajudas foram escassas e não sei mesmo, só vendo o video, se não foi o ajuda quem, sem querer, claro, o acabou por tirar da cara do toiro, tal a violência do embate, o desvio da rota que o toiro fez e o Braga, braços de ferro, coração de leão, fechado que nem uma lapa, até cair, resvalar para o lado e sair. Voltou a tentar e só à terceira concretizou, com as ajudas carregadas, por forma a que ficássemos por ali e a pega fosse por fim concretizada.
A terceira pega foi executada com brilhantismo por Francisco Bissaia Barreto, com garbo e pundonor, arte também e um valor imenso na forma como recuou, como toureou e como se fechou de braços e pernas, daqui não saio, daqui ninguém mais me tira.
Manuel Ramalho esteve enorme na quarta e última pega ao sobrero oferecido por Ventura. Pega de valor sem fim, aguentando violentos derrotes, o grupo a ajudar muito bem, glória a fechar uma noite de êxito para os Amadores de Montemor, que todos aplaudiram de pé quando no final atravessaram a praça e se foram embora, missão cumprida, noite grande para um grande grupo.
A noite começara com a emoção de aplaudirmos na arena o Maestro Mário Coelho, pelos seus 60 anos de toureio, pela glória que foi e que todos lembramos, ficou na História, ficou nas nossas vidas, ficou no nosso percurso de aficionados e ao intervalo lhe descerraram na entrada da praça a merecida placa que há-de perpectuar para todo o sempre os momentos de grandeza que nos proporcionou em tantas décadas de gloriosa permanência nas arenas. Bonita e justa a homenagem que lhe prestou a administração da empresa do Campo Pequeno, lamentável a falta de um brinde ao Maestro, nem que fosse dos Forcados, que eram quem ali representava Portugal e dele se esqueceram e ninguém se lembrou de os lembrar e foi pena, foi triste que Mário Coelho ali tivesse permanecido a noite inteira no burladero da empresa e nem um brinde lhe fizessem naquela noite que, afinal, era sua também. E da sua história e da sua vida.
Nas cortesias veio a primeira emoção, o minuto de silêncio a lembrar o crítico João Mascarenhas e o forcado e picador Rafael Trancas. Ventura brindou s sua primeira lide a Eduarda de Oliveira, viúva de Rafael e depois ergueu o sombrero aos céus e à memória de seu tio (irmão da Mãe), falecido há uma semana. Houve ainda um brinde dos Forcados de Montemor ao seu antigo companheiro Pedro Caixinha, hoje afamado treinador de futebol; e um brinde, o único que fez, de "El Juli", a Fernando Couceiro, marido da Maria Moura Caetano, seu companheiro de aventuras nas derribas - com quem depois da corrida ceou no "Rubro".
Nota negativa de uma noite em que é muito mais preciso que guardemos as memórias, tantas, positivas: os dois tércios de bandarilhas (mal, pessimamente) preenchidos pela quadrilha de "El Juli". Perguntar-se-à porque raio uma primeiríssima Figura do toureio mundial tem uns bandarilheiros tão maus. Mas não o são. São excelentes bandarilheiros que ontem acusaram a falta de picadores e tremeram na hora de colocar as bandarilhas. Tem solução, numa hipotética (impõe-se, já lá vamos) volta de "El Juli" a Lisboa: bastará que deixe os seus subaltermos lidarem os toiros e contrate para bandarilhar dois dos bons que temos em Portugal. Ontem, podia "El Juli" ter resolvido a questão se entregasse o tércio de bandarilhas a quem tão bem o executa, o nosso António João Ferreira, que estava de sobreassalente e apenas interveio no segundo toiro com um bonito quite por "gaoneras".
De sobressalente estava também o cavaleiro praticante David Gomes, que Ventura convidou para cravar dois ferros num toiro e ele cumpriu da melhor forma, equitador aprumado, toureiro com raça e vontade, montando o extraordinário cavalo "Campo Pequeno" e a provar que tem que tourear mais, parado não pode estar, prometeu tanto e agora ficou encostado às boxes? Merece mais e pode ir longe. Ontem, chamou as atenções. Disse que pode. Mais que muitos.
Por fim e antes da nota final, já lá vão não sei quantos cigarros e eu tinha deixado de fumar, mas as emoções falam mais alto, o director de corrida. Pedro Reinhardt é um duro, mas o Campo Pequeno, repito o que já aqui escrevi uma vez, é a primeira praça do país, é a Catedral e há regras, tem que haver respeito, seriedade - e o Pedro impõe tudo isso sempre que dirige uma corrida. Estica-se por vezes? Estica-se, sim senhor. Excede-se em rigor, parece que lhe falta o coração, o sentimento, ele que foi forcado de coração grande, de paixão e de reconhecido e aplaudido sentimento. O Campo Pequeno não pode ser um recinto folcórico, mas ontem, Ventura e "El Juli" mereciam música, nos dois primeiros toiros que lidaram, muito antes de Pedro a conceder. David Gomes foi muito bem chamado à ordem quando entrou praça dentro sem pedir autorização ao director, arriscando-se a ser considerado "espontâneo"... que não era o caso. E Pedro Reinhardt fez também muito bem em avisar Ventura, no sobrero, de que não lhe tinha autorizado a volta à arena. Pode ter sido um excesso, poderia ter-lha concedido, quem não permitiu o êxito nesse toiro foi mesmo o toiro e não o toureiro, mas... Lisboa é Lisboa, há regras, as coisas não podem ser de qualquer maneira, tem que fazer sentido e tem, antes de mais, de haver ordem. Por isso e apesar das vozes revoltadas que escutei depois, na noite longa do "Rubro" (que ambientazo, meu Deus, se viveu depois da corrida nas imediações da praça), venho aqui aplaudir a correcção, o rigor e a seriedade da direcção de Pedro Reinhardt - que muito admiro.
Uma palavra final, sei que isto já vai longo, mas depois de uma corrida assim nem um livro ou dois ou mais chegam para descrever o que vimos, o que sentimos, as emoções que nos encheram a alma, uma palavra final, dizia, justa e merecida. Para Rui Bento, para a Drª Paula Resende. Isto ficou a dever-se a eles. Ficou a dever-se à aficion, ao saber, ao sentir a Festa como ele sente - ao Rui Bento. Ficou a dever-se à fantástica, cuidada, rigorosa e altamente positiva administração que a Drª Paula Resende tem conseguido e sabido impor na gestão do Campo Pequeno. Ninguém teria levado a mal se aos ombros os tivessem também levado no final. Mereciam.
E agora, que volte "El Juli"! Não preciso ensinar o Padre Nosso ao Vigário. Mas eles dois sabem bem que se impõe e que Lisboa vai precisar de o ter cá uma segunda vez, na segunda metade da temporada. A noite de ontem foi a noite de que o Campo Pequeno precisava. Mas foi, acima de tudo, a noite que fazia falta à nossa Festa. Já nada mais vai ser igual depois disto. Tragam o homem de volta ao Campo Pequeno ainda este ano!

Não perca, a seguir: os melhores momentos da corrida; as pegas, uma a uma; os Famosos que ontem estiveram no Campo Pequeno!

Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com