quarta-feira, 17 de julho de 2019

Breves considerações sobre o "Manifesto Anti-Dinis"

Madrid, Maio de 2010. O corno do toiro entra pelo pescoço e sai pela boca do
toureiro espanhol Júlio Aparício, que felizmente sobreviveu ao acidente. A foto
correu mundo. Não devia ter sido mostrada? 
É um horror, mas é e foi notícia, esta foto do matador Victor Barrio caído morto
na arena de Teruel em Julho de 2016, vítima da cornada de um toiro
Também correu mundo e foi capa em vários jornais esta foto do matador Ángel
Teruel com a cara aberta por um toiro em Arles em 2012
Repórteres de guerra. Uma coisa é ser jornalista, outra coisa é ter outra
profissão e ao fim-de-semana entreter-se a tirar retratos nas touradas...
Os repórteres em cenários de guerra devem ocultar as fotos dos horrores?...
Esta foi a foto mais famosa e mais emblemática da Guerra do Vietnam e o governo
chegou a usá-la como "modelo" contra o Ocidente. Cong Ut, repórter da
Associated Press, foi o seu autor. A foto foi captada em Trang Bang quando esta
menina de 9 anos fugia nua de um bombardeamento. À esquerda, em cima,
a "menina da foto", Kim Phuc, quarenta anos depois
Um ano depois da fazer a famosa foto, o repórter
Cong Ut encontrou-se no Vietnam com Kim Phuc


Miguel Alvarenga - "Basta Pum Basta! Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero. Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim!" - o texto é da autoria de José Almada Negreiros e faz parte do famosíssimo "Manifesto Anti-Dantas" (ao lado), publicado em 1915 por ocasião da estreia da peça de teatro "Soror Mariana Alcoforado" de Júlio Dantas.
14 repórteres fotográficos taurinos e o director de um site de tauromaquia publicaram ontem um "Manifesto Anti-Dinis", a que. catutelosamente. chamaram apenas comunicado.
Nele, reagem de forma veemente à publicação de fotos de colhidas e tragédias nas arenas, a propósito da recente polémica que envolveu as fotos da colhida mortal do cavalo Xeque-Mate de Moura Jr. na fatídica corrida de Coruche em que outros dramas ocorreram, fotos essas da autoria do repórter João Dinis e que foram capa do "Correio da Manhã" e pano de fundo de vários noticiários televisivos.
Os fotógrafos subscritores do comunicado (que ontem aqui publicámos na íntegra) afirmam "ter orgulho em ser diferentes" e defendem que a "divulgação/venda/cedência das imagens das colhidas na corrida de Coruche, pela nossa interpretação, devem ser mostradas, mas ao contrário de outros, julgamos que uma ou duas fotos com critério o fazem na perfeição e não da forma massiva como foram divulgadas", justificando esta posição pelo "respeito pelos artistas e animais" que, dizem, "deve ser um dever fundamental".
Alguém acha que o famoso fotógrafo Huynh Cong Ut, da Associated Press, não teve respeito pelo ser humano quando no dia 8 de Junho de 1972 fotografou a miúda de 9 anos a fugir nua de um bombardeamento em Trang Bang, foto essa vencedora do Prémio Pulitzer e que é, ainda hoje, a imagem mais emblemática da Guerra do Vietnam?
Tenho por muitos dos subscritores do comunicado (alguns não conheço) respeito, admiração e amizade. E sobretudo gratidão. A começar pela minha querida Maria João Mil-Homens, que comigo forma equipa há uns anos, a muitos dos fotógrafos que subscrevem o comunicado tenho a agradecer o facto de já ter podido contar com trabalhos seus aqui no "Farpas". E admiro o trabalho de todos.
Profissionalmente falando e em termos jornalísticos, o que defendem corresponderia, em termos normais, à assinatura de uma sentença de morte. Não será o caso, porque somos um país de brandos costumes e o que hoje é branco, amanhã é preto. E tudo se vai esquecer.
Vou dar por encerrada esta polémica - de uma vez por todas. Mas não se pode aceitar que um fotógrafo, se quiser ser profissional, venha a terreiro defender que as fotos das tragédias são para esconder. A tragédia faz parte da Festa. Engrandece-a tanto como a glória e os triunfos. Quantas tragédias, como as colhidas de Júlio Aparício, de Victor Barrio (mortal) e de Ángel Teruel, para citar apenas estas três fotos que aqui se reproduzem, não foram capa de jornais em todo o mundo? E os repórteres de guerra, vão para os cenários de terror para ocultar as imagens que captam?
Quem é que se pode vangloriar de profissionalismo se depois vem a público defender que só se devem mostrar fotos do lado côr de rosa da Festa?
Estão todos errados - e este comunicado seria patético se não estivessem bem claras, como água, as linhas mestras e os objectivos que o orientaram. Muito mais do que vir dizer que "são diferentes" e "se orgulham" disso e que reprovam em absoluto a publicação "massiva" de fotos das tragédias, os 14 fotógrafos quiseram sobretudo dizer que estão mas é contra o João Dinis. As fotos que causaram a polémica são dele. Se fossem de outro qualquer, não haveria comunicado algum e todos teriam passado ao lado desta celeuma.
A culpa é, portanto, do João Dinis. Primeiro, porque criou ao longo dos últimos tempos tantos anti-corpos (mas isso foi exclusivamente culpa dele e só dele e de mais ninguém) que já ninguém o pode ver à frente. Só um ou dois fotógrafos lhe falam nas trincheiras. E já são muito poucas as trincheiras onde as empresas lhe dão acesso. Segundo, porque foi, realmente, profissional e captou as imagens certas no momento certo. Brilhou profissionalmente. Mas deu azo aos que não gostam dele a que aproveitassem esta polémica para vir a terreiro crucificá-lo. Uma vez mais. Primeiro foi a polémica da Carteira Profissional. Agora foram as fotos da tragédia de Coruche.
O resto, todo este "Manifesto Anti-Dinis", é apenas e só uma cantilena de embalar. Nenhum dos 14 fotógrafos do comunicado é verdadeiramente contra a publicação de fotos de tragédias - e quase todos também já as publicaram. Não foi isso que eles quiseram dizer. É preciso saber ler o comunicado nas entrelinhas. O que eles quiseram claramente expressar é que odeiam o João Dinis, não podem com ele e vão pegar-lhe sempre que ele lhes der argumentos para tal.
Posto isto, siga a dança! E quando acontecer uma tragédia (Deus queira que não), entendam que isso é notícia. Como são notícia os triunfos e as glórias. Tudo faz parte da Festa. Ocultar, esconder, é tentar tapar o sol com uma peneira.
Eu sou jornalista, muito antes de ser aficionado. O que o João Dinis fez não foi mais do que honrar a profissão. Eu teria feito igual. Ou mais, ainda.
Ou somos jornalistas. Ou não somos. E então não digam que o são. Reconheçam antes que têm os vossos empregos, que compraram uma máquina-metralhadora e que aos fins-de-semana se vão entretar a fotografar touradas. Isso é diferente de ser, de sentir e de viver o jornalismo. Não tem nada a ver, mesmo.
Mas não se exponham ao ridículo. Não venham a público dizer "somos muito profissionais, somos muito diferentes e só publicamos fotos de coisas bonitas para respeitar os artistas e os animais e não melindrar a sensibilidade de ninguém". Isso, meus queridos amigos, é a negação total e absoluta do jornalismo.
Tenho dito. E não digo mais nada.

Fotos D.R.