segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Miguel Alvarenga: e depois do adeus...

Esta é a grande entrevista por que todo o mundo tauromáquico estava à espera. O meu Mestre anunciou que se vai embora, que vai deixar a tauromaquia e a escrita. Quis saber porquê - como todos vocês querem. Haverá sempre um antes e um depois do Miguel Alvarenga, o grande revolucionário da crítica tauromáquica em Portugal. Eternamente, l'enfant terrible dos homens que escreveram de toiros em Portugal. Chamaram-lhe e chamam-lhe "o Navalón português", em referência ao famoso cronista espanhol de que todos tinham medo. Mas não vou dizer mais nada, deixemos que seja o Miguel a falar

Entrevista de Hugo Teixeira

- Passa-se o quê, Miguel, vais-te mesmo embora?

- Não me vou embora de lado nenhum! Espero, se Deus quiser, andar por cá mais uns bons e valentes anos. Neste momento, graças a Deus, estou no Funchal, na Madeira, a descansar e a carregar baterias, que bem preciso. Vou é abraçar “outras causas”, dedicar-me a novos projectos profissionais que não me deixam tempo para continuar a escrever sobre o mundo dos toiros. Só isso, tão simples como isso. Às vezes, a vida profissional das pessoas muda. Tem mesmo que mudar de vez em quando, se não torna-se uma monotonia e uma chatice…


- Mas zangaste-te com a tauromaquia?

- Nunca na vida! As pessoas quando mudam de vida não têm obrigatoriamente que se zangar com a vida anterior que tinham… É mais ou menos como um casamento... antigamente, no tempo dos meus Avós, era para a vida inteira. Nos tempos modernos, as pessoas às vezes cansam-se e mudam...


- É que parece, pelos teu últimos escritos…

- Não. Zangar não me zanguei, mas a realidade é que também não me sinto minimamente motivado para continuar…


- E porquê?

- Não sou só eu que o digo, acho que muita gente pensa como eu, metem é a cabeça na areia, como a avestruz. A tauromaquia de hoje já não tem nada a ver com a tauromaquia do tempo em que eu comecei. Tinha 13 anos quando comecei a escrever de toiros, antes do 25 de Abril, motivado por meu Pai, que foi quem me meteu na cabeça o bichinho dos toiros, no jornal “Cidade de Tomar”. Agora tenho 63. A brincar, a brincar, passou meio século. Que muda muita coisa! Depois, em 1976, iniciei a minha carreira jornalística no jornal “O Diabo” com Vera Lagoa, onde cheguei a ter uma página semanal, “O Diabo ao Quite”, com o Dr. Fernando Teixeira. Foi o meu Pai que me levou ao Campo Pequeno, um dia, tinha eu 12 ou 13 anos, para contar ao Manuel dos Santos que eu era um puto aficionado e gostava de escrever de toiros. Manuel dos Santos foi quem me incentivou. Eram tempos diferentes. A Festa dos tempos de Manuel dos Santos, de Américo Pena, Alfredo Ovelha, José Cardal, José Agostinho dos Santos, mais tarde de Manuel Gonçalves, de Salvação Barreto, de Camacho e de tantos mais, até a do Rogério Amaro e do "Nené", era uma Festa que não tem nada a ver com a de hoje. Fui-me fartando, fui-me desmotivando. Agora surgiu-me um ambicioso projecto jornalístico e não virei a cara, achei que era a altura de pôr um ponto final nestes anos todos que dediquei à tauromaquia, tenho outras coisas que fazer e esta tauromaquia, repito, já não tem para mim interesse nenhum. É sempre tudo igual, já não há ídolos, há demasiados interesses que motivam a feitura dos cartéis, sempre iguais, que não têm a ver com as motivações que norteavam o espectáculo tauromáquico noutros tempos. Hoje, ir a uma tourada, para mim é um frete dos diabos, ao segundo toiro já estou a dizer à minha Mulher que estou farto e me quero ir embora... Embora não perceba nada disso, nem goste, acho que no mundo de futebol se passa a mesma coisa, já nada é igual ao que era antigamente.


- Quando anunciaste que ias embora, houve logo comentários nas redes sociais de que eras anti-taurino, de que não eras aficionado…

- Estou-me nas tintas para as redes sociais e sempre me estive nas tintas para o que dizem de mim. Nunca serei anti-taurino, porque não sou estúpido, é um espectáculo de que gostei muito, para o qual já não tenho hoje a paciência que tinha noutros tempos, mas nunca serei contra. Quanto ao ser aficionado, fui, sim senhor. E muito. A esta Festarola que temos hoje já não sou minimamente… Nem percebo, sinceramente, como é que ainda há aficionados com pachorra para ver sempre a mesma coisa, vira o disco e toca o mesmo…


- Chamaram-te “o Navalón português”, o crítico de que todos tinham medo… Quando havia o jornal, muita gente não dormia de quarta para quinta, com receio do que viesse a lume na manhã seguinte…

- Conheci o grande Alfonso Navalón pela mão do meu querido e saudoso amigo Amadeu dos Anjos. Era um homem fora do normal. É um exagero dizerem que sou “o Navalón português”… Mas nunca tive medo de escrever as verdades, isso sim.


- E esse novo projecto é o jornal “A Rua”?

- É um novo jornal, sim, que sairá no início do próximo ano. Pode ser “A Rua” ou ter outro título, ainda não está definido. Estou neste momento a formar a equipa, como um primeiro-ministro que forma um governo. O grupo empresarial é fantástico e ainda se lhe juntarão outros investidores, a equipa não é muito grande, é a suficiente.


- Um jornal de Direita? Tem ligações ao Chega, como por aí consta?

- “A Rua” ou seja que título for o que vamos publicar, era um jornal de Direita, um jornal de coragem, era, como se definia, o Combate do Futuro. Penso que nunca houve tanta necessidade, como agora, de fazer voltar às bancas um jornal assim. Ligações ao Chega não tem nenhumas. Digamos que pode estar no espaço político do Chega, só isso.


- E não dá, Miguel, para conciliar o novo jornal com a manutenção do “Farpas”? Vamos deixar de ter o “Farpas”?

- Dar, podia dar. Mas sinceramente não me apetece. Tudo na vida tem o seu tempo e a minha actividade no mundo tauromáquico chegou ao fim. Foram muitos anos, mais de quarenta e confesso que estou cansado, desmotivado. Nunca dei tanta razão ao meu querido amigo João Salgueiro quando há uns anos disse que se ia embora porque também estava desmotivado, porque a Festa tinha perdido todo o seu glamour. É exactamente o que se passa comigo. Até ao final do ano, o “Farpas” vai continuar. Depois se verá…


- Quer isso dizer que ainda há uma esperança de que continue?

- Há coisa que eu nunca disse, que é desta água não beberei. Não faço futurologia, mas à partida o “Farpas” acabará quando iniciar o novo projecto.


- Há pouco disseste que não te tinhas zangado com a tauromaquia. Pergunto: mas sais magoado com alguém, com alguma coisa?

- Eu assumi-me sempre como jornalista e nunca como crítico tauromáquico. Ao fim de mais de quarenta anos, continuo a dizer que percebo pouco de tauromaquia, limito-me a escrever o que sinto e o que vejo numa corrida e isso é diferente de ser crítico tauromáquico. Agora vou continuar a minha actividade jornalística, mas fora do mundo dos toiros. É a coisa mais natural deste mundo, as vidas profissionais mudam… Não tenho mágoa alguma com nada e com ninguém. Cansaço, apenas.


- Mas sem ti e sem o “Farpas” muita coisa vai mudar…

- Tem-me telefonado imensa gente, nem te passa pela cabeça. A maioria dizem que a Festa não faz sentido sem mim, que eu faço parte da mobília e não me posso ir embora. É bom sentir que gostam de nós e que vão sentir a nossa falta, claro que isso é bom, mas eu tomei uma decisão e não volto atrás. E é claro que a Festa continuará a fazer todo o sentido, esteja eu ou não…


- Mas tens a consciência, Mestre, de que és o número-um e que toda a gente, os que gostam e os que não gostam, a primeira coisa que fazem todas as manhãs é irem ler o “Farpas”?…

- Quando comecei, tinha a certeza de que ia mudar o mundo, de que ia mudar a Festa! Mas isso é o sonho meio ingénuo de qualquer jovem. Aprendi com meu Pai, aprendi com Manuel dos Santos, aprendi falando imenso com os críticos tauromáquicos desse tempo, mestres como Leopoldo Nunes, Saraiva Mendes, Saraiva Lima, muitos mais, ainda sou do tempo deles. Eram diferentes. Hoje já não há críticos tauromáquicos a sério, exceptuando o João Queiroz. Eu acho que fiz alguma escola, que marquei alguma diferença, que descrevi a Festa de uma forma a que não estavam habituados, de uma forma mais jornalística. Acho que fiz o meu trabalho, não fui melhor, nem pior, talvez tenha sido apenas diferente. Número-um não serei, não é falsa modéstia, Hugo. Mas agora acabou! Ponto final!


- Ganhaste muitos bons amigos na Festa…

- Poucos, mas bons. A esmagadora maioria foram meus “amigos” por interesse…


- Achas?

- Acho, não. Tenho a certeza. Mas tenho grandes e verdadeiros amigos que conheci neste meio e que vão continuar toda a vida a ser meus amigos e eu deles.


- E também alguns inimigos, alguns processos em tribunal…

- Já foi chão que deu uvas. Excepto com um, reatei a amizade que tinha com todos os que me puseram processos… Esta vida são dois dias, vale a pena andarmos de candeias às avessas?…


- Excepto com um?…

- Sim. Mas um dia ainda havemos de beber um copo!


- Referes-te a quem?

- Ele sabe…


- Uma das últimas “guerras” em que te envolveste foi com os fotógrafos por causa das fotos de colhidas…

- Não houve guerra nenhuma, nem há. Respeito todos os fotógrafos de hoje, mas a realidade é que também não têm nada a ver com os “antigos”. Adoro fotografia e hei-de continuar a fotografar. Mas às vezes estou ao lado de alguns e em cada ferro eles disparam as máquinas como se fossem metralhadoras e eu tiro uma única foto, não faço sequências. Em centenas de fotos de um ferro de um cavaleiro hão-de estar sempre quatro ou cinco muito boas, com estas metralhadoras digitais não é preciso saber nada disto, é só disparar. A história das colhidas foi uma estupidez de alguns… Decretaram que não se deviam publicar fotos de colhidas… Eu sou jornalista, publico e fotografo o que acontece, não escondo nada. Eles não são jornalistas, a diferença é só essa… Tiram fotos para depois publicarem nos seus sites, que são assim uma espécie de mostruários para os toureiros escolherem e comprarem os retratos. Mas isso é uma coisa e fazer jornalismo é outra. Respeito-os na mesma, obviamente. Fazem um trabalho, mas eu faço outro.


- Estar a ouvir-te, eu que me orgulho de ter começado contigo e de ter aprendido contigo, é continuar sempre a aprender e começo a sentir saudades… Vais ter saudades disto?

- Não terei muitas saudades, porque estou meio farto disto e saudades tem-se daquilo de que se gosta e nos faz falta. O toiros não me vão fazer falta nenhuma e estou cansado.


- Mas vais continuar a ir às corridas?

- Claro que vou. E sempre que for, levo a máquina fotográfica, porque adoro fotografar. Irei às que me atraírem. Como irei a concertos e a outros espectáculos quando foram bons.


- Miguel Sousa Tavares também anunciou que ia abandonar o jornalismo e ia escrever as suas memórias. Também vais escrever as tuas? Era giro!

- Claro que sim! Tenho um livro quase pronto, já passaram dez anos mas estará sempre actual, que é “A História da Minha Prisão”, pode sair no próximo ano. E já estou há algum tempo a escrever as minhas memórias do mundo tauromáquico. Não sei ainda o título… pode ser “Memórias de um Aficionado Desmotivado” ou coisa assim…


- Escreveste no Facebook e todo o mundo se alvoraçou, que não ias levar o teu neto aos toiros…

- O meu neto Santiago é hoje, como sabes, a minha adoração maior! Penso, sinceramente, que quando ele for crescido, já nem haverá touradas… Não por acção dos anti-taurinos, mas pela estupidez dos próprios taurinos. Mas, sinceramente, acho que nunca o vou envolver neste mundo dos toiros, como o meu Pai me envolveu. Claro que um dia ou outro o levarei a uma corrida, depois ele decide. Levei sempre os meus filhos. Não são contra, mas não têm assim uma grande aficion. Agora quero também ter tempo para a minha Família, para a minha Mulher, para os meus filhos, para o meu neto, para a minha Mãe, o meu irmão, os meus sobrinhos. Quero calmamente escrever as minhas memórias, dedicar-me em grande ao novo projecto e aos poucos deixar os toiros…


- Sabes e tens consciência de que vais fazer falta?

- Sei lá se vou… Mas o que sei é que tenho o direito de decidir o que vou fazer e não me apetecem mais toiros…


- É um adeus definitivo?

- Desta vez, é! Acho que é... Neste momento estou a descansar uma semana no Funchal. Quinta-feira regresso à luta. E depois tenho todo o Inverno para tomar as decisões que entender...


Foto D.R.