quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Moita e a magia de Morante

Miguel Alvarenga - O aficionadíssimo público da Moita, que ontem preencheu a quase totalidade da lotação permitida da sua praça "Daniel do Nascimento", rendeu-se, entregou-se e aclamou a arte, a magia, a essência e o poderio de Morante de la Puebla - que sem ter toiros capazes, impôs-lhes a força da sua genialidade e os espremeu até à última gota, sacando duas faenas "impossíveis", afirmando o seu respeito pelo público de Portugal, demonstrando o momento "cumbre" que está a viver. Por outras palavras, empolgando um público entusiasta e profundamente conhecedor que depois não lhe regateou vibrantes aplausos e lhe agradeceu o esforço, a entrega, o querer, premiando-o numa significativa volta à arena (como as de antigamente) autorizada com aficion pelo director de corrida Fábio Costa.

À saída da praça, Morante teve mesmo alguma dificuldade em chegar à sua carrinha de quadrilhas, tal o entusiasmo com que os aficionados o rodeavam, o abraçavam e com ele queriam registar momentos fotográficos  que não se esquecem mais.

Os dois toiros de Calejo Pires que lidou - e que não estavam anunciados no programa - tinham apresentação q.b. (482 e 452 quilos), mas revelaram pouca qualidade, ao contrário do que costuma acontecer com esta boa ganadaria. Distraídos, de investidas pouco claras, a roçar a mansidão, deram logo nos primeiros lances de capote sinais de que não iam servir. Mas serviu o toureiro!

Morante impôs-lhes o seu enorme poderio e o seu grande e reconhecido oficío, recusando-se determinantemente a despachá-los, como outros poderiam ter feito. Dobrou todos os Cabos das Tormentas, venceu todos os vendavais, estava ali para triunfar, não tinha vindo cá "em passeio turístico".

As duas faenas, mas sobretudo a última, foram pinceladas de saber e arte, reafirmaram a força e o grande momento de um toureiro artista e lidador que não nasceu para perder nem a feijões. Ontem não houve toiros a ajudar o triunfo de Morante, mas houve Morante a tornar fácil o difícil, a provar que com os toiros menos bons se vêem os grandes toureiros, que os toiros complicados fazem vir à tona a verdade e a glória dos toureiros que são génios.

O toureio a pé tem sempre um sabor diferente na Moita. E ontem Morante ainda o temperou mais. Arte e valor, experiência e essência, poderio e entrega.

A primeira corrida da Feira da Moita foi, também, uma vitória do empresário Ricardo Levesinho. Pelo grande e rematado cartel com que abriu o ciclo. Pelo sucesso de bilheteira que constituiu, pelo ambiente que a rodeou do princípio ao fim. Pelo querer do empresário em ir por diante com a corrida, apesar da ameaça de chuva. Não se pode dizer, contudo, que foi uma corrida triunfal. Foi, antes, uma corrida de grandes momentos.

Os toiros de Ribeiro Telles para as lides a cavalo, bonitos, muito bem apresentados, alguns com quilos a mais e bravura a menos (530, 625, 615 e 535 quilos, pela ordem de saída), mais dóceis que agressivos, demasiado "murubes" e com pouca transmissão, retiraram alguma emoção e brilho ao empenho dos dois cavaleiros. Foi bom o último, quinto da ordem, merecendo João Palha Ribeiro Telles, representando a ganadaria, as honras de vir à arena e ser premiado com forte ovação pelo público que, antes, já aplaudira o bom toiro quando este recolhia aos currais.

João Moura, que veio substituir António Ribeiro Telles, ainda não totalmente recuperado da grave colhida que sofreu em Reguengos, exibiu nos seus dois toiros a costumeira maestria, a eficiência e o arrojo de grande lidador e colocou emoção nas sortes, sobressaindo sobretudo em dois grandes ferros curtos no quarto toiro da ordem. Esteve "à Moura", mas sem o esplendor de outras actuações com que já este ano levou os aficionados ao rubro. Faltaram ovos para melhores omeletas...

João Ribeiro Telles está num momento assombroso e não tenho a mínima dúvida em afirmar que é, neste momento, um dos mais sérios e favoritos candidatos ao título de máximo triunfador desta temporada. Tiveram melhor nota os seus dois toiros e João agigantou-se em duas lides emotivas e de altíssimo nível, reafirmando o que já toda a gente esperava: onde ele está, acontece toureio daquele que faz explodir o público nas bancadas.

Pormenores bonitos de brega, remates e recortes a usar os seus fantásticos cavalos como se eles fossem capotes ou muletas, ferros de arrepiar a entrar pelos toiros dentro, pisando a linha de risco, impondo a sua raça e o seu valor, proclamando bem alto que este é o seu ano.

No segundo toiro, depois de uma lide arrebatadora, foi buscar o craque "Ilusionista" e cravou um primeiro ferro de parar corações, sofrendo depois no segundo uma aparatosa colhida daquelas que só sofrem os toureiros que arriscam e vão aos limites pisando terrenos de alto risco e maior compromisso. Recompôs-se, encastou-se como os maiores, agigantou-se de novo e terminou com mais um grande ferro. Grande João!

Bem as quadrilhas de todos os toureiros, pouco eficazes, sem o valor dos nossos, os bandarilheiros de Morante nos tércios de bandarilhas.

Não se pode propriamente dizer que foi uma surpresa inesperada a memorável actuação que tiveram ontem os valorosos forcados Amadores da Moita - porque todos sabemos que se trata de um bom grupo e só é pena que não o vejamos mais vezes em praças e em cartéis importantes, porque o merece indiscutivelmente.

A primeira pega da noite esteve a cargo de David Solo, que fez mesmo jus ao nome e sózinho se manteve uma barbaridade de tempo na cara do toiro, a aguentar derrotes e derrotes, quando este se desviou da rota e fugiu ao grupo. Finalmente os companheiros chegaram e David jamais perdeu a guerra, fechado com braços de ferro, com decisão, poderio e brilhantismo. Esta fica na memória como uma das grandes pegas da temporada. Foi o forcado ao centro da arena repartir os aplausos com o Maestro Moura, mas depois o público exigiu e o director de corrida permitiu-lhe que desse uma volta à arena das que se davam antigamente e raramente se dão agora pelas imposições legais em tempo de pandemia. Mas uma pega destas merecia isso e muito mais.

As três pegas que se seguiram - e cujas sequências fotográficas vamos já mostrar a seguir - foram executadas por João César, à segunda; e por Fábio Silva e Filipe Correia, ambos à primeira, tendo na último sido chamado também à praça, com inteira justiça, o fantástico primeiro ajuda. Qualquer uma das pegas reafirmou o bom grupo que estava em praça, com destaque especial sobretudo para os forcados da cara.

Os Amadores da Moita tiveram ontem um triunfo forte na sua praça e no final atravessaram a arena para ir embora sob uma chuvada fortíssima de ovações. 

A propósito, ressalve-se que não caiu uma pinga de água durante a corrida, não confirmando os ameaços que se fizeram sentir durante todo o dia. 

Dirigida com aficion e rigor por Fábio Costa (que apenas tardou a conceder música a Morante no último toiro...), que esteve ontem assessorado pelo competente médico veterinário Jorge Moreira da Silva, esta primeira corrida da Feira da Moita, a tradicional do Município, foi presidida pelo presidente aficionado da Câmara da Moita, Rui Manuel Marques Garcia, a quem os forcados brindaram uma pega.

E hoje há mais: logo à noite, a carismática praça "Daniel do Nascimento" é palco para o esperado mano-a-mano dos matadores "Cuqui" e "Juanito". Outra noite de emoções.

Fotos M. Alvarenga

Com toiros complicados se descobre a verdade dos grandes
toureiros. Público da Moita rendeu-se à magia de Morante
Moura e a maestria de sempre, com toiros que transmitiram
pouco e não permitiram grandes brilhantismos

Noite de apoteose consagra João Telles como o
mais sério candidato ao trono de triunfador desta
segunda temporada da pandemia