Miguel Alvarenga - A actuação empolgante de João Ribeiro Telles (a confirmar o momento altíssimo que está a viver nesta temporada) no quinto toiro; a artística faena de imensa maestria de Morante de la Puebla no terceiro; e a explosão do jovem Tomás Bastos na sua apresentação em Vila Franca foram os momentos que marcaram a grande corrida das Festas do Colete Encarnado que ontem esgotou a lotação da carismática praça "Palha Blanco" (24 horas depois de também ter esgotado a lotação da Arena D'Évora na tradicional corrida de São Pedro) e marcou uma vez mais a brilhante temporada que está a protagonizar o empresário Ricardo Levesinho, que já em Maio esgotou a praça da Moita noutra corrida histórica.
Ambiente de grande solenidade, praça esgotada a lembrar tempos antigos, um entusiasmo enorme em torno desta corrida com um cartel rematadíssimo, marcada pelo esforço glorioso de Morante de la Puebla para estar presente, apesar de ainda não totalmente recomposto da lesão numa costela sofrida uma semana antes em Badajoz.
Faltou o veterano João Salgueiro, por problemas de saúde justificados através de um atestado médico, sendo substituído por Manuel Telles Bastos.
Lidaram-se a cavalo quatro toiros de Alves Inácio, de que se destacou apenas o quarto, sendo os três primeiros "para esquecer", com pouca presença, quase nenhum trapio e pouco tipo para uma praça e um público (que ontem deixou a banda passar sem grandes protestos...) tão exigentes.
Manuel Telles Bastos teve uma passagem muito digna pela "Palha Blanco", sem contudo romper em força, não por falta de empenho ou de entrega, mas por falta de toiros que lhe permitissem brilhar.
Manuel teve poucas opções com os dois toiros de Alves Inácio. O primeiro era reservado e estranho nas investidas; o segundo foi um toiro matreiro e sem a mínima qualidade, com o qual o valoroso cavaleiro da Torrinha arriscou, arrimando-se, entrando por terrenos de compromisso, conseguindo ferros que mereceram o reconhecimento e os aplausos do público. Telles Bastos deu volta no primeiro toiro e ficou-se entre tábuas no segundo (com o qual esteve superior e melhor que no primeiro, mas há critérios assim... e neste segundo nem música teve...).
João Ribeiro Telles também não teve muitas opções frente ao segundo toiro da corrida, manso, reservado, de escassa qualidade - com o qual também não se empenhou ao seu melhor nível.
No quinto da ordem, um toiro de nota alta (que deveria ter sido premiado com volta no final e chamada do ganadeiro à praça - mas nada disso aconteceu...), João Telles virou Vila Franca do avesso com uma lide perfeita, apoteótica, a galvanizar o público do princípio ao fim.
Brega brilhante, a aproveitar a excelente qualidade do toiro, ferros de parar corações, sortes verdadeiramente impróprias para cardíacos. Fechou a sua actuação com chave de ouro montando o célebre cavalo "Ilusionista" - que parece elástico e bem se podia chamar antes "Contorcionista", tal a facilidade com que contorna todas as situações e sai, como se nada fosse, da cara dos toiros por terrenos impossíveis. Cravou João dois ferros do outro mundo e ainda um terceiro, que o público não o queria deixar sair da arena. Triunfo memorável!
Da brilhante actuação dos Amadores de Vila Franca, com três grandes pegas à primeira e uma à terceira, já aqui ficou tudo dito anteriormente. Passemos ao toureio a pé.
Aplausos para Morante e para a sua atitude, uma vez mais, de apoiar o futuro do nosso toureio a pé, disponibilizando-se, sem pestanejar, a alternar numa tão importante corrida com um jovem novilheiro aspirante, Tomás Bastos, sobrinho neto do saudoso Maestro José Júlio, que teve assim uma oportunidade única de se apresentar pela primeira vez na praça da sua terra ao lado de tão grande figura do toureio mundial.
Morante reaparecera na véspera em Zamora, depois de ter faltado a dois importantes compromissos, devido à lesão numa costela sofrida por colhida em Badajoz no fim-de-semana anterior. A sua presença em Vila Franca chegou a estar posta em causa, o empresário Ricardo Levesinho voltou a ter algumas dores de cabeça (não seria a primeira vez que faltava uma figura anunciada com pompa e circunstância na "Palha Blanco"), mas o Maestro fez um esforço e não faltou, demonstrando o seu grande respeito e simpatia pelo público português, que também tanto o acarinha e há muito o elegeu como "o seu toureiro".
Vieram de Espanha dois toiros da ganadaria García Jiménez, da Casa Matilla (ontem ali representada por Jorge Matilla), deixando no ar algumas dúvidas (legítimas) sobre se será mesmo necessário trazer toiros do país vizinho quando aqui actuam matadores espanhóis... Não haverá melhor entre as ganadarias lusas?... Certamente que há, não temos dúvidas. Mas...
O primeiro toiro, com alguma presença (mas não muita), serviu, sem no entanto ser um bom toiro. Valeu a entrega e o ofício de Morante, que sofreu logo na lide de capote uma violenta e assustadora voltareta que o deixou maltratado e poderia ter consequências graves na evolução da sua recuperação da lesão de Badajoz.
Morante recompôs-se, voltou à luta e desenhou cingidas chicuelinas para terminar o tércio de capote que iniciara com artística verónicas, recebendo do público fortíssima ovação.
Brindou a faena de muleta aos Campinos - na tarde da sua festa do Colete Encarnado - e demonstrou depois todo o seu profissionalismo, toda a sua honestidade e a sua raça de grande toureiro. Andou, andou, andou, porfiando, arrimando-se, ao contrário de abreviar e despachar uma lide que desde o início se entendera ter pouca matéria (por outras palavras, pouco toiro) para brilhar.
O público brindou Morante com uma muito aplaudida volta à arena, demonstrando-lhe todo o seu carinho e admiração. Toureiro grande!
O sexto toiro, segundo de García Jiménez, com menos trapio e também menor qualidade, não deu a Morante opções para o triunfo. O Maestro voltou a esforçar-se e a fazer das tripas coração para agradar, mas por mais que tentasse, não tinha pela frente matéria prima para poder triunfar. Ficou, uma vez mais, a sua entrega, o seu profissionalismo, a grandeza da sua arte. E ficou um ambiente fantástico para o revermos em Setembro em Lisboa, no Campo Pequeno - que é também já uma das suas praças-talismã.
Tomás Bastos, que momentos antes fora homenageado na arena pelo presidente da Câmara de Vila Franca, Fernando Paulo Ferreira, que lhe ofereceu um bonito capote de passeio, pisava ontem pela primeira vez a arena da "Palha Blanco" trajado de luces e depois de uma já considerável trajectória como toureiro amador quando ainda não tinha idade para altos vôos e andava meio escondido dos olhares públicos, por razões que se entendem.
Tomás tem no sangue e na alma essa raça dos eleitos, não fosse ele sobrinho neto do saudoso Maestro José Júlio, sobrinho também do sempre lembrado bandarilheiro Dário Venâncio e filho de David Antunes, que foi promissor novilheiro e se destacou depois como um dos melhores bandarilheiros da sua geração.
Tomás Bastos tem pinta de toureiro, tem garra, tem raça, tem gancho com o público, sabe estar - e está bem rodado pelas muitas novilhadas em que tem triunfado do outros lado da fronteira.
Já vimos, infelizmente, muitos toureiros tão promissores como ele acabarem por "morrer na praia" - mas este Tomás tem tudo o que faz falta a um jovem para vir a triunfar neste mundo.
Enfrentou um bom novilho de Calejo Pires, que recebeu com um variado e bonito tércio de capote, demonstrando depois a agilidade e a facilidade com que bandarilha (foi aparatosamente colhido no terceiro par, mas não passou nada, seguiu como nada tivesse acontecido). Com a muleta, esteve mandão, senhor da situação, gracioso, valente, poderoso, arrastando a faena como se não houvesse amanhã, a querer mostrar tudo o que vale - e vale muito!
Estiveram em bom nível todos os bandarilheiros e ontem tomou a alternativa o promissor Sérgio Nunes, que foi novilheiro aluno da extinta Academia de Toureio do Campo Pequeno e, depois, da Escola de Madrid, sendo aplaudido de montera em mão depois de bem bandarilhar o segundo toiro de Morante.
Finda a corrida - bem dirigida por Lara Gregório de Oliveira (assessorada pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva), que pecou apenas pelo excesso de zelo e de exigência a dar música, sobretudo aos cavaleiros (bem sabemos que Vila Franca é uma praça de primeira, mas a directora ontem foi exigente em demasia) -, o público aplaudiu de pé os quatro toureiros e os forcados na despedida.
Há muitos anos que não se via uma tão empolgante corrida do Colete Encarnado.
Fotos M. Alvarenga
Triunfo apoteótico de João Telles ontem em Vila Franca |
Digna passagem de Telles Bastos pela "Palha Blanco", sem toiros para o êxito |
Público encantado com a raça de Tomás Bastos |