42 anos depois do primeiro disco, o LP intitulado “Fado”, Nuno da Câmara Pereira lança neste mês de Julho o seu 20º disco, outra vez um LP depois dos anos do CD, que se intitula também “Fado”, como o primeiro, acrescido da referência “tal como o conheci”. Uma curiosidade: a fotografia de capa é igual à primeira, no mesmo Páteo Fradique, ao Castelo de São Jorge, em Lisboa, com os (novos) músicos a seu lado.
É um regresso ao passado, ao princípio, depois de mais de quarenta anos a viajar por outras roupagens, mas sempre com o Fado como epicentro de tudo e de mais alguma coisa. Aliás, o Nuno é o Fado e o Fado é o Nuno. Foi ele que o recolocou no seu lugar a seguir ao 25 de Abril, quando até à grande Amália chamavam “fascista”. O Nuno bateu o pé, esgotou a Aula Magna, pôs Portugal inteiro a cantar os seus fados. Por isso, haverá sempre um Fado antes e depois de Nuno da Câmara Pereira, como já havia um Fado antes e depois de João Braga. Resta o quê desse Fado? Resta tudo, resta ele. Que ainda aí está para dar e durar.
Há 42 anos sentámo-nos num café - que ainda existe - na Rua Alexandre Herculano, ali a dois passos do prédio onde era a sede do jornal “O Diabo” (no nº 7, 5º Esquerdo), e fiz-lhe a primeira entrevista. Quatro décadas depois, almoçámos em Carnide e voltou a acontecer uma entrevista, Esta.
Entrevista de Miguel Alvarenga
- Estávamos nos anos a seguir ao 25 de Abril, o Fado estava por baixo, a lei eram as baladas revolucionárias, até a Amália era “fascista”… e tu ressuscitaste o Fado! Puseste outra vez o Fado no seu lugar. Há um Fado antes e depois de Nuno da Câmara Pereira?
- Há, há. Assim como há um Fado antes e depois de João Braga. Quer queiramos, quer não. São gerações diferentes, são realidades diferentes, em tempos diferentes. O João Braga foi um expoente do Fado antes do 25 de Abril. E sou eu quem recupera o Fado depois do 25 de Abril, quando ninguém queria saber dele e, até pelo contrário, estava mal visto. Esta é a realidade.
- Alguém te agradeceu isso, Nuno, esse gesto, essa história, de teres recolocado o Fado no seu lugar?
- O público, sim. O público agradece e reconhece. Os meus colegas, nem tanto. Mas é natural, porque eu, inclusive, quando lanço o primeiro álbum, o “Fado”, já houve polémica. Como te lembras, eu cantava o “Arraial” com as guitarras de Coimbra e o fado de Lisboa não se misturava com o fado de Coimbra. E depois vim a cantar também a “Samaritana”. E os tipos de Coimbra não gostaram e os tipos de Lisboa também não gostaram. Não agradei nem a gregos, nem a troianos. E depois associei novas sonoridades no fado. Estes novos não descobriram nada, não inventaram nada. Não só não contam a verdade, como a ignoram. Introduzi o saxofone, pus o piano, a percussão, não a bateria, obviamente. E portanto abri uma Caixa de Pandora, aproximei o fado da música romântica, tornei o fado romântico. Sou eu, a par e passo com o Rão Kyao, que damos uma volta a isto tudo. A partir do meu quarto álbum, o “Mar Português”, que foi o primeiro disco de platina da música portuguesa e o Rão Kyao também ganhou o disco de platina com o “Fado Bailado”. O “Mar Português” foi o primeiro disco digital. Houve uma série de coisas que aconteceram comigo e à volta de mim…
- E levaste o Fado a todo o mundo…
- Sim, corri o mundo, dei várias voltas ao mundo!
- E, inclusivamente, trouxeste outros sons e outras músicas para o Fado.
- Fui eu que abordei pela primeira vez a morna, trouxe o cante alentejano, nunca o fado o tinha feito, trouxe a música da América Latina, trouxe a cantiga do nordeste brasileiro, como “O Luar do Sertão”, para o fado, depois cantei também coisas em espanhol, cantei com a Orquestra Sinfónica da Lituânia no Mosteiro dos Jerónimos, gravei até, é disco de prata. Resumindo, eu furei o esquema em muitos pontos que havia para furar.
- No São Luiz?
- Não, no Coliseu. E com outros. E quantos cantores de Fado podem dizer hoje que foram várias vezes ao Coliseu sózinhos?...
- Este novo disco é um regresso ao passado?
- É um regresso ao princípio. Eu posso dizer que já vou no 20º disco editado…
- É um disco ou é um cd?
- É um disco, é vinil. O cd já acabou. Tenho umas cópias em cd para dar aos profissionais, aos jornalistas, mas o que vai estar à venda é um disco de vinil, como os de antigamente, Voltou-se ao vinil, acabou o cd. Os gira-discos que se vendem hoje tem uma porta USB, pode-se pôr uma pen e gravar o disco e depois ouvir no automóvel…
- Disseste 20 discos, não foram mais?
- Não, desde o primeiro, em 1982, este é precisamente o 20º disco. Fiz este disco exactamente com a capa igual ao primeiro, o mesmo tipo de letra, a foto a preto e branco no mesmo Páteo Fradique do Palácio Belmonte, um palácio de família onde eu fiz questão de começar a minha vida profissional, e hoje voltei outra vez, que fica em Lisboa, próximo do Castelo de São Jorge, o disco chama-se outra vez “Fado”, mas acrescentei-lhe “tal como o conheci”. Mas a capa é igualzinha à do meu primeiro disco. Tem dois fados de Coimbra, tem dois clássicos, “O Marquês de Linda-a-Velha” e “A Última Tourada em Salvaterra”, tem um tema dedicado ao meu filho pequenino (tem dois anos e meio), com letra minha e música do Custódio Castelo, e tem outros temas feitos em parceria com o Custódio Castelo.
O mesmo título, a mesma foto, o mesmo Páteo. 42 anos separam as capas destes dois discos |
- Não será concerteza o último disco?
- O futuro só a Deus pertence. Não me preocupa o dia de amanhã. Preocupa-me o dia de hoje e aquilo que estou a fazer.
- E quando sai o disco?
- Vai sair à venda já em Julho. Está agora a sair a parte digital na internet e em breve, digamos assim, sai a parte física, sai o disco.
- E vamos ter alguns concertos de promoção?
- Conforme a aceitação do disco, mas sim, penso fazer alguns espectáculos para promoção do novo disco. Haverá ou não, consoante o êxito do disco.
- Um regresso à Aula Magna, onde tudo começou há quase 50 anos?
- A Aula Magna foi, de facto, marcante no arranque da minha carreira.
- Era bonito um regresso à Aula Magna…
- Era. O tempo não volta para trás, mas se calhar a gente consegue fazê-lo (voltar para trás).
- 50 anos de carreira, quais os melhores momentos, os momentos mais bonitos que recordas?
- Olha, recordo precisamente a Aula Magna. Sem dúvida. Estive uma semana inteira na Aula Magna, onde nós (fadistas) não íamos, sequer. Era para fazer um espectáculo e acabei por fazer uma semana, sózinho, a cantar. Foi uma coisa incrível, são coisas que não se esquecem. Era o princípio da minha carreira, era o êxito total, era a loucura. E tenho outras cenas maravilhosas. Cheguei a ter que cantar com segurança, porque muitas vezes fui “raptado” do palco, “esgatanhado”, arranhado… e por aí fora. Era a loucura total, ninguém imaginaria que isso poderia acontecer com o fado em Portugal. E foi com o fado, não foi com o rock. E também no estrangeiro. Quando fui cantar a Nápoles, parou o trânsito todo no centro da cidade, foi outra loucura.
- E o fado hoje em dia como é que está, Nuno?
- O fado está de boa saúde, cheio de eventos, cheio de gente a cantar. Se isso traduz qualidade, já é muito subjectivo, porque depende da maneira como abordas e vês o fado. Se vires o fado como uma música como as outras, nem há resposta a dar. Esta juventude de hoje aborda o fado com um conceito completamente diferente, já se mistura o fado com tudo, com uma “rockalhada”, é o que é. Por isso, concluindo, eu diria que o fado está cheio de saúde, está cheio de vida, mas é muito subjectiva essa vitalidade, é o que eu posso dizer, mas quem sou eu para falar não positivamente sobre o fado de hoje? Mas tenho esse direito!
Fotos D.R.
Um momento da gravação do novo disco. E em baixo, "para aí em 1986", com Amália e Fernando Maurício |