Miguel Alvarenga - Tem 64 anos, está (não devia estar) gordo e anafado (por sua culpa exclusiva, pela falta de força de vontade para fazer a necessária dieta que todos lhe recomendam e insistem em recomendar há anos...), mas a realidade é que João Moura mantém inabalável e à prova de bala a maestria de todos os tempos, continua a tratar os toiros por tu como se aquilo tudo fosse coisa fácil e há que lhe reconhecer, no meio de todas as dificuldades, físicas e não só, o imenso mérito e a tremenda e arrepiante majestade com que continua a deitar cartas e a mandar, à sua maneira, nesta arte de que é, ainda e sempre, o primeiro.
É angustiante vê-lo actuar, não me incomoda dizê-lo, nem ao João tem que incomodar que o digamos, porque as faculdades não são as mesmas de outros tempos, porque não está hoje montado como estava nos seus épicos anos de ouro, porque a todo o momento tememos que aconteça uma queda, uma desgraça - mas a verdade é que João Moura se continua a superar a si próprio e às adversidades (físicas, sobretudo, insisto) com que se debate cada vez que entra em praça.
É, de facto, um fenómeno, um caso único de permanência no trono, sem que tenha aparecido ainda nenhum outro, por muitos bons cavaleiros que existam - e existem - capaz de fazer tudo o que ele fez e de chegar onde ele chegou.
João Moura encabeçava ontem o cartel (que não era um cartel de primeira...) da corrida que encerrou a Feira do Toiro-Toiro em Alcochete e que estava marcada sobretudo pelo anunciado confronto entre duas ganadarias duras, as de Palha e Vale de Sorraia, toiros que exigem toureiros e forcados de barba rija e terão sido um dos motivos principais para arrastar público (mais de meia casa bem preenchida) às bancadas da simpática e tão bem gerida praça de Alcochete.
O Maestro enfrentou a abrir praça um exigente toiro de Palha, com os problemas normalmente apresentados (a quem os lida) por esta histórica e tão emblemática ganadaria (exigência, seriedade, dureza). O toiro não facilitou, mas Moura impôs-lhe, com um só cavalo, a sua maestria e o seu saber, conseguindo, mercê de muito ofício e sabedora brega, ferros de emoção, muito aplaudidos. Deu uma lição, como dá sempre - porque sabe da arte como poucos e torna aparentemente fácil tudo aquilo que, afinal, é difícil. Foi uma lide à Moura - e só por ela valeu ter ido ontem a Alcochete. Olé, Maestro!
Outro destaque importante da nocturna de ontem em Alcochete foi o regresso àquela praça, depois de dezanove anos de ausência, do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa, com a particularidade de isso acontecer precisamente no dia 14 de Agosto, a data em que actuou pela primeira vez há 80 anos.
E o grupo liderado por Pedro Maria Gomes - que tinha entre tábuas, a apoiá-lo, três dos mais emblemáticos forcados que honraram esta histórica jaqueta anos a fio, José Augusto Baptista, o antigo cabo José Luis Gomes (seu pai) e António José Casaca, entre outros - marcou esta comemoração com um triunfo notável de três pegas consumadas à primeira tentativa pelos forcados Nuno Fitas, Tiago Silva e João Varanda, com o grupo a ajudar coeso e na perfeição.
Lamentavelmente, não houve um único, entre seis cavaleiros, que se lembrasse de brindar a lide ou um ferro que fosse, aos Amadores de Lisboa na noite em que estavam em Alcochete a celebrar, no dia exacto da comemoração dessa efeméride, o 80º aniversário da sua fundação pelo histórico e sempre lembrado Nuno Salvação Barreto. Coisas estranhas da nossa tauromaquiazinha...
Com os forcados da capital, repartiram cartel, como manda a tradição nesta última corrida da Feira do Toito-Toiro, os forcados do Aposento do Barrete Verde de Alcochete, outro grupo dos da frente que está, inexplicavelmente, sem corridas agendadas...
Foram forcados de cara pelo Barrete Verde os valorosos João Armando Coimbra (à primeira), o cabo Marcelo Lóia (à primeira, numa grande pega, como sempre!) e Nuno Veríssimo, que foi atropelado na primeira tentativa e acabou por consumar com brilhantismo e eficácia à segunda, havendo também a registar a excelente intervenção de todos os elementos nas ajudas para a consumação das três pegas. Já a seguir, não percam as fotos com as sequências das seis pegas ontem em Alcochete.
Sobre o confronto de ganadarias, há que destacar, como mais imponentes, com caras e um trapio irrepreensível, os três toiros da ganadaria Vale de Sorraia (segundo, terceiro e quarto), três toiros com teclas, a transmitir emoção e a exigir dos toureiros, não permitindo deslizes.
Os três de Palha, menos imponentes, na linha tradicional da divisa, foram também toiros com teclas, que metiam mudanças, a impor respeito e emoção. O mais complicado foi o último, a que o jovem praticante Diogo Oliveira deu habilmente a volta. O segundo da ordem, destinado a Gilberto Filipe, tinha pinta de poder ser bom, mas foi recolhido por visíveis problemas de locomoção. Foi pena, porque parecia bom. Gilberto lidou depois em quinto lugar o sobrero de Palha, um novilho-toiro que lhe permitiu triunfar e que tinha qualidade.
Depois de recolhido aquele que era o segundo toiro da noite, entrou em cena o terceiro cavaleiro do elenco, mais propriamente rejoneador, o mexicano Emiliano Gamero, a quem tocou o primeiro (assustador) toiro de Vale de Sorraia.
Valente, mas irregular na cravagem dos compridos, Gamero viria depois a compor as coisas com uma lide de valor, apesar de algum desacerto inicial, mas que não comprometeu e teve até o condão de animar o público, que, como sempre, se entregou à raça - e à graça - do toureiro azteca. Era um toiro difícil e complicado e Emiliano Gamero acabou por estar à altura das circunstâncias, honrando desta feita o brinde que fez a João Moura. O público esteve com ele, entusiasmou-se e aclamou-o numa aplaudida volta à arena com o forcado.
Em terceiro lugar, também com um toiro sério e exigente de Vale de Sorraia, toureou João Salgueiro da Costa, que à tarde actuara em Messejana e por isso não chegara a tempo de participar em Alcochete nas cortesias.
Acompanhado pelos bandarilheiros da sua quadrilha e por José Manuel Ferreira Paulo "Cachapim", que deixara de ser seu apoderado, mas pelos vistos está a novo a seu lado, Salgueiro da Costa tinha tido uma tarde de êxito no Alentejo e chegou aqui disposto a manter alta a fasquia, alcançando mais um clamoroso triunfo.
Não era toiro fácil o exemplar de Vale de Sorraia, mas Salgueiro pisou a linha de risco, foi-lhe à cara em emotivas sortes ao píton contrário e os ferros resultaram de muita emoção, galvanizando o público.
A corrida, aliás, decorreu em muito bom ritmo, com estilos para todos os gostos e com os seis cavaleiros e os dois grupos de forcados a darem a cara frente e toiros difíceis.
Depois de um curto intervalo, com mais um toiro imponente, de apresentação e cara, da ganadaria Vale de Sorraia, actuou o cavaleiro David Gomes, um toureio que está moralizado e embalado pelos triunfos recentes que tem alcançado e lhe deram um novo fôlego e o direito a estar em cartéis de qualidade e de competição - hoje toureia em Reguengos, amanhã em Póvoa e Meadas (com Moura e Ana Batista) e no sábado em Arruda dos Vinhos.
Senhor da situação, impondo a sua serenidade à seriedade do exigente oponente de Vale de Sorraia, David Gomes recebeu o toiro com uma emotiva sorte de gaiola e depois desenvolveu uma lide perfeita e de alto nível, lidando e cravando com emoção e atitude.
Estava o público com ele e o toiro em perfeitas condições para mais, mas o director de corrida "cortou as pernas" a um final apoteótico não permitindo a David que cravasse, a terminar, um par de bandarilhas, sorte de que é um excelente intérprete. Foi pena.
Em quinto lugar, Gilberto Filipe lidou o novilho sobrero da ganadaria Palha, que também não era pêra doce e a que impôs a sua experiência e os seus extraordinários dotes de grande equitador e apurado toureiro, conseguindo entusiasmar o púbico com ferros que resultaram perfeitos e emotivos. Terminou com um "violino" e ainda um ferro muito aplaudido depois de tirar a cabeçada ao cavalo.
Ao início da corrida, Gilberto fora homenageado na arena pelo presidente da Câmara de Alcochete, Fernando Pinto, que lhe entregou uma lembrança alusiva à comemoração dos seus vinte anos de alternativa.
Fechou a corrida o ousado cavaleiro praticante Diogo Oliveira, que cria desde logo uma grande empatia com o público e não deixa ninguém indiferente ao seu labor. O toiro de Palha foi o mais complicado da noite, reservado e exigente, de investidas pouco claras e perigosas. Diogo recebeu-o com uma sorte de gaiola de muita emoção, evidenciando atitude e vontade de se afirmar.
Diogo demonstrou ofício e valor, apenas com um senão, algum excesso de velocidade. Com mais calma, teria atingido a perfeição. Mas vai no caminho certo. E continua a evidenciar bons progressos. A meu ver, pode abalançar-se à alternativa já na próxima temporada. Reúne atributos de sobra para não ser só mais um.
Entre os muitos bandarilheiros que intervieram ontem nesta dura corrida em Alcochete, destaque para Duarte Alegrete, para António Telles Bastos, Nuno Silva "Rubio", Francisco Marques, Duarte Silva, João Goilão e Manuel dos Santos "Becas", também para a reaparição de João Pedro "Juca", que não toureava há alguns anos e ontem integrou a quadrilha de Diogo Oliveira. E para a revelação que está a ser Miguel Gomes, jovem bandarilheiro praticante, primo do cavaleiro David Gomes, que já deixou provas de que vai chegar longe.
Por último, uma palavra para a direcção do antigo forcado Ricardo Dias, que esteve diligente e rigoroso, pecando apenas por não ter permitido mais um (par) ferro a David Gomes. Esteve assessorado pelo competente médico veterinário Jorge Moreira da Silva.
E assim acabou mais uma triunfal Feira do Toiro-Toiro em Alcochete - onde a Festa tem, de facto, um sabor diferente.
Fotos M. Alvarenga
| Moura sempre Moura! E o resto são cantigas... |
| O toiro de Palha lidado por Salgueiro da Costa em terceiro lugar |
| O imponente toiro de Vale de Sorraia superiormente lidado em quatro lugar pelo cavaleiro David Gomes |


