sábado, 7 de setembro de 2024

Campo Pequeno: a noite de todos os triunfos

Duas grandes vitórias da Tauromaquia, ontem: o Campo Pequeno
esgotado e a presença de destacados políticos na homenagem aos
Forcados de Lisboa. Em baixo, Filipe Anacoreta Correia, Telmo
Correia, Elísio Summavielle e João Soares

Miguel Alvarenga - Viveu-se, sentiu-se, como há muito não acontecia, o rebuliço, o ambiente, a aficion da Lisboa antiga das touradas, quando havia aficionados de verdade, gente entendida, público respeitador, quando a tauromaquia tinha outro glamour e uma classe muito diferente e tão distante da que hoje temos - ou não temos - nas nossas praças de toiros.  

O Campo Pequeno, esgotado com cinco dias de antecedência, coisa que acontecera pela última vez em 1995, já lá vão 29 anos, quando Pedrito de Portugal ali toureou seis toiros de Santiago Domecq, foi ontem, sobretudo, o espelho e o corolário do trabalho e do empenho de um lutador que nunca cruza os braços - Luis Miguel Pombeiro, o empresário que ontem mesmo foi reconduzido na gestão taurina da primeira praça do país, dormiu finalmente descansado, depois de muitas noites de nervos e sem sono, com o sentimento do dever cumprido. Aplausos.

Depois, o Campo Pequeno esgotado foi, que ninguém tenha dúvidas, a força de um toureiro que Portugal idolatrou desde o primeiro momento em que aqui toureou e mostrou que ia marcar a diferença - Pablo Hermoso de Mendoza, que ontem se despedia de uma vez por todas da aficion de Portugal, depois de outras despedidas (menos sucedidas) noutras praças, à excepção da primeira, em Maio, em Almeirim, com a praça também esgotada.

Outro motivo para chamar público ao Campo Pequeno foi, também não tenhamos a mínima dúvida, a comemoração do 80º aniversário dessa histórica e emblemática instituição que é o glorioso Grupo de Forcados Amadores de Lisboa - homenageado por políticos e empresários, assim como o seu antigo cabo José Luis Gomes, um Forcado que fez História.

No minuto de silêncio inicial com que se homenageou a memória do cavaleiro Manuel André Jorge, falecido esta semana com 85 anos, e também a memória de todos os Forcados que honraram a jaqueta dos Amadores de Lisboa e já não estão entre nós, causou-me algum espanto que ninguém tenha evocado a memória de Nuno Salvação Barreto

Foi referido no pequeno discurso feito por António Lúcio (desta vez, o som não se ouviu mal, nem bem, foi mais ou menos entre uma coisa e a outra, ou seja, assim-assim...), mas espantou-me que nos 80 anos do Grupo que ele fundou não tivesse havido uma homenagem mais direccionada à figura deste tão histórico Forcado e grande empresário também.

Como já aqui ficou referido, o Grupo de Forcados Amadores de Lisboa foi homenageado ao início da corrida por Filipe Anacoreta Correia, vice-Presidente da Câmara de Lisboa, em nome da autarquia; por Telmo Correia, que é membro do Governo (Secretário de Estado da Administração Interna), mas preferiu (e pediu mesmo) que o anunciassem apenas como vice-Presidente do CDS/PP; pelo antigo Secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle; e ainda por João Soares, ex-Presidente da Câmara de Lisboa. Na mesma altura, os empresários Luis Miguel Pombeiro, Jorge Dias e Samuel Silva homenagearam o antigo cabo José Luis Gomes.

Ao intervalo, e como também já aqui ficou referido, os empresários e a Direcção da APSL homenagearam Pablo Hermoso de Mendoza, referenciado não só como um grande Toureiro, mas como um verdadeiro Embaixador do Cavalo Lusitano em todo o mundo. Pablo entrou em praça ladeado por uma guarda de honra feita por cavaleiros da APSL, que momentos antes tinham feito uma bonita e breve demonstração equestre, liderados pelo conhecido equitador Miguel da Fonseca.

A corrida de ontem foi o corolário triunfal daquela que foi a melhor temporada do reinado de Luis Miguel Pombeiro, desde 2020 à frente da gestão taurina da primeira praça do país - com altos, com baixos, com momentos melhores e outros piores, mas sempre de cabeça levantada e a seguir em frente, como os heróis.

Os cartéis das quatro corridas, mantenho o que sempre aqui escrevi, foram quatro elencos iguais a muitos de outras praças, vulgares, para ser mais claro, mas a realidade é que nas quatro ocasiões houve mexidas, houve empenho na divulgação, houve muito trabalho de casa feito pelo empresário Pombeiro. E o público foi à praça. Três casas cheias e a última esgotada. Foi obra! Uma quinta corrida, no mês de Outubro, com o andamento que tiveram estas, era outra lotação esgotada - não tenho a menor dúvida.

Pombeiro levou o público e os aficionados a reencontrarem-se e a reaproximarem-se da sua praça. Falou do glamour, fartou-se de falar da classe de ir aos toiros a Lisboa. E o público foi. A obra é dele. "Campo Pequeno-Sempre!", fartou-se de apregoar. E todos disseram: Presente!

Artisticamente, a corrida de ontem só não foi melhor porque faltou a emoção do toiro. Comparada com a corrida de Dr. António Silva na penúltima noite da temporada lisboeta, a de ontem, com toiros da ganadaria Charrua, marca uma diferença como do dia para a noite.

Quem vai à tourada (eu digo e direi sempre tourada, porque era assim que se dizia antigamente e cresci a ouvir falar de toiros e touradas), tem que sentir o risco, o perigo, tem que se assustar, gritar "ais". E isso não aconteceu.

Bonitos, verdadeiras estampas, com alguma mobilidade, mas com pesos excessivos (todos, menos um, acima dos 600 quilos!...), os toiros de Charrua foram bonzinhos e dóceis, sem grande agressividade, não dificultaram, antes pelo contrário, o labor triunfal dos cavaleiros e não fizeram mal algum aos forcados, foram pelo seu caminho, com nobreza e bondade, sem derrotar, sem fazer maldades, sem muita força.

Estes toiros não são escandalosamente "nhoc-nhoc", como aqueles de que um dia falou - e bem - João Salgueiro. A ganadaria Charrua é uma ganadaria de excelência, com triunfos notáveis. Mas a menor agressividade e a demasiada bondade dos toiros retira emoção ao espectáculo e brilho à entrega dos artistas. 

Quando os toiros são assim, não há emoção que valha. Podem-se fazer coisas bonitas, como as que faz Pablo com os seus belos cavalos, vira para a esquerda, volta para a direita (a chamada "hermosina"), mas não se sente o perigo e muito menos o risco. 

Estes toiros aceitam-se e a verdade é que o público não protestou uma única vez. Dão espectáculo, permitem um show diferente. Mas entre isto e uma corrida de toiros a sério, com emoção, com risco, com suspiros, como foi a de Dr. António Silva na corrida anterior, vai uma distância quase tão grande como a que separa a Terra da Lua.

Adiante.

António Ribeiro Telles e Luis Rouxinol são toureiros de outros toiros. De outro campeonato. Mas ontem agigantaram-se, como que a dizer "vieram cá despedir-se do Pablo, mas nós também estamos aqui!".

A corrida teve dois filmes distintos. Os três cavaleiros limitaram-se a estar bem, sem terem estado muito bem, nos seus primeiros toiros, mas mesmo assim Rouxinol foi o que esteve em melhor nível nos dois toiros; e nos segundos, superaram-se a eles próprios e proporcionaram uma segunda corrida espectacular. Inesquecível.

António Telles, apenas regular no primeiro toiro da noite - um Charrua com qualidade e claro nas investidas -, parecia depois um gaiato a querer afirmar-se, no quarto toiro da ordem, em que brindou a Pablo Hermoso uma lide de sonho, à antiga, recriando-se, toureando a gosto, bregando e lidando com a classe e a raça de sempre, empolgando o público - que não parou de o aclamar.

Uma lição de cátedra do Mestre dos Mestres, que até vi João Moura, num burladero, a aplaudir com entusiasmo. Deu uma volta com o forcado e foi ainda chamado ao centro da arena para o despedirem com uma ovação estrondosa - de entusiasmo, de admiração e de respeito. Grande António!

Luis Rouxinol não deixou ontem os seus créditos por triunfos alheios. Parecia ele também um miúdo com sede de afirmação. Inspiração divina nas duas lides proporcionou ao valoroso cavaleiro um importante e muito aplaudido triunfo nesta sua passagem pelo Campo Pequeno na temporada de todos os êxitos. 

Esteve Luis igual a si próprio com dois toiros que não são propriamente os da sua praia. Rouxinol é toureiro de toiros agressivos e que emocionem. Ontem demonstrou, como já o fizera em outras ocasiões, que é toureiro, e tem cavalos, para todos os toiros. 

As duas actuações resultaram brilhantes, empolgantes, com ritmo e a criar euforia e entusiasmo nas bancadas. Luis Rouxinol aproveitou todo o sumo que os dois toiros deixaram espremer, lidou-os com inteligência e com saber, pôs o público em alvoroço. Noite grande - para lembrar. 

No final, ergueu o tricórnio e o olhar aos Céus, era esta a primeira vez que toureava em Lisboa depois da morte de "Ti" Alfredo, seu sempre lembrado Pai - que, esteja onde estiver, há-de estar orgulhoso por mais este grito de afirmação e de consagração do Luis. Olé, Toureiro!

Pablo Hermoso de Mendoza era ontem o centro de todas as atenções. Foi ídolo em Portugal. Revolucionou, aprendeu e até aperfeiçoou pormenores do Compêndio Mourista, criou escola, deixa obra feita e deixa sucessor, o jovem Guillermo, que ontem mesmo toureou e triunfou em Espanha, mas depois rumou a Lisboa para estar ao lado do pai em noite tão importante.

Tocou-lhe o pior lote de toiros. Mas mesmo assim, Pablo superou as dificuldades, esteve por cima e marcou a noite da sua despedida com um triunfo memorável e com uma muito aplaudida saída em ombros pela Porta Grande, aos ombros de Francisco Palha (bonito gesto de um Senhor!), ladeado pelo Maestro Moura, por António Telles e Rouxinol, por João Telles, por António Telles Filho e por Luis Rouxinol Júnior.

O seu primeiro toiro, terceiro da noite, era reservado, manso, dava "arreões" e chegou mesmo a tocar com violência num cavalo. 

O último da noite foi, pela manifesta falta de forças, o pior toiro para um cavaleiro triunfar e chegar ao público. Pablo deu a volta à situação, esforçou-se, entusiasmou com "ladeios" e extraordinária brega, mas o toiro caíu variadas vezes no momento da reunião e deixou-o com o ferro na mão, retirando brilho ao seu labor, à sua entrega. Mas ninguém protestou, ninguém assobiou. Quem estava ontem no Campo Pequeno, estava ali para homenagear e louvar a carreira de glória de um Grande Toureiro.

Não se pode assim dizer que tenha sido a despedida com que todos sonhávamos - e com que Pablo, certamente, também sonhava. Mas foi uma última noite bonita. Com o público a aplaudi-lo de pé, em respeito por tantos anos de glória, por tantos triunfos e tantas alegrias dadas aos aficionados deste país.

Nada de exageros nas intervenções, antes pelo contrário, dos bandarilheiros João Ribeiro "Curro" e António Telles Bastos, Manuel dos Santos "Becas" e João Bretes, José Franco "Grenho" e Benito Moura. Estiveram todos bem e sem trabalho demasiado com toiros que não criaram grandes dificuldades a ninguém. Nem aos campinos. Entraram sempre sem problemas nos currais. 

Noite grande, também - de que falarei em pormenor já a seguir -, dos Forcados Amadores de Lisboa na celebração oficial dos seus 80 anos. Cinco pegas à primeira por intermédio do Nuno Fitas, Tiago Silva, Miguel Santos, João Varanda e Duarte Mira; e uma à segunda, a última, consumada pelo cabo Pedro Maria Gomes.

Os toiros não fizeram mal algum aos forcados - mas há que enaltecer o triunfo do Grupo de Lisboa pela coesão nas ajudas, pela perfeição com que pegaram todos os forcados de cara, a reafirmar um momento alto e uma forma excelente.

No final, o Grupo deu aclamada volta à arena e saíu também em glória, como Pablo, pela Porta Grande do Campo Pequeno.

A corrida foi dirigida com seriedade e rigor por Ricardo Dias (Lisboa é Lisboa, solene e respeitável, não se pode conceder música 'por dá cá aquele palha' e o director concedeu-a só no momento exacto e merecido, apesar dos pedidos de alguns espectadores mais folclóricos...), que esteve assessorado, como é costume nesta praça, pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

Houve, desta vez - mais vale tarde que nunca... -, alguma preocupação com o piso da arena, que já não levantou a poeirada das corridas anteriores. O som, esse já conheceu melhores dias e continua a ser uma espécie de escândalo num recinto onde isso não se deveria passar...

Por fim, só uma nota negativa para o esquecimento, no minuto de silêncio inicial, da figura de Tito Magalhães Basto, que foi empresário desta praça e morreu esta semana com 85 anos. Memória curta, paciência...

Fotos M. Alvarenga

Rouxinol, Telles e Hermoso: o fantástico trio da última noite da
temporada do Campo Pequeno


O regresso das antigas glórias na homenagem aos 80 anos do
GFA de Lisboa. Na foto de cima, o Cabo Pedro Maria Gomes e o
ex-cabo, seu pai, José Luis Gomes