segunda-feira, 1 de julho de 2024

Gilberto Filipe e o Triunfo da Vontade

Miguel Alvarenga - Foi o Triunfo da Vontade. Brilharam-lhe os olhos de alegria e pelo rosto vi caírem-lhe lágrimas que também expressavam, claramente, alguma revolta. Gilberto Filipe deu ontem na Monumental do Montijo um grito marcante contra a injustiça. Entendeu-o o público, que o aclamou primeiro numa volta à arena a cavalo, todos de pé, todos emocionados, depois em duas calorosas voltas à arena acompanhado do forcado José Pedro Suissas, cabo dos Amadores do Montijo, forcado de outra galáxia, que fez um pegão ao mesmo toiro com que triunfou o Gilberto, o de Murteira Grave, que sem ser bravo em demasia, foi um toiro extraordinário e acabou distinguido com o prémio de bravura que estava em disputa no Concurso de Ganadarias.

Entendeu-o o público e reconheceu-o a empresa. No final, Jorge Dias e Samuel Silva (Toiros com Arte) anunciaram que Gilberto fora contratado para voltar a esta praça na próxima corrida, a das Tertúlias, neste mês de Julho. Nada mais merecido.

Lembro-me, já aqui o escrevi mais que uma vez, do grande Fernando Camacho, taurino como ainda não apareceu outro, me ter dito um dia que "o cavaleiro que ia andar para diante", depois do aparecimento de Salgueiro, "era o miúdo do Amorim". O miúdo era o Gilberto, Amorim era o seu apoderado dos primeiros tempos, o mesmo José Carlos Amorim que ao longo de uma vida apoderou Rui Salvador.

O Gilberto não tem nome de família toureira. Não é filho de ganadeiro, nem parente de empresário. Cresceu, fez história, à conta, apenas e só, do seu imenso valor. Nem sempre o respeitaram as empresas. Nem sempre lhe deram as oportunidades que merecia. Mas nunca desanimou. Continuou de cabeça erguida, como os eleitos, a seguir em frente. O Triunfo da Vontade.

Esta temporada cumpre vinte anos de alternativa. Esqueceram-se dele no Campo Pequeno; esqueceram-se dele em Abiul, onde tem profundas raízes. Esqueceram-se dele em muitos lugares no anos do 20º aniversário da alternativa. Mas houve quem lhe rendesse o respeito e o tributo que o Gilberto merece.

Os gestores da praça de Paio Pires (vi lá ontem na bancada o António José Casaca) contrataram-no para a corrida de Agosto. Os novos empresários do Montijo, Jorge Dias e Samuel Silva, promoveram ontem a corrida comemorativa dos vinte anos de profissionalismo de Gilberto Filipe e no final, depois do seu grande triunfo, anunciaram que o repetiam em Julho na Corrida das Tertúlias. Era assim que operavam as empresas de antigamente - dando lugares aos que triunfavam. Parabéns à Toiros com Arte pelo gesto - à maneira antiga. Assim se promove a Festa.

A corrida de ontem, adiada de sexta-feira pela chuva, ia ter muito pouco púbico, vaticinavam os costumeiros profetas da desgraça. Havia futebol (mas agora há sempre futebol...), já ninguém tem pachorra para os cartéis das famílias com pais e filhos, etc. e etc., mas a realidade é que a Monumental quase encheu, apresentava uma ocupação das bancadas com mais de três quartos - e a corrida foi espectacular, daquelas que não se esquecem, muito provavelmente uma das melhores a que assistimos até aqui nesta temporada de 2024.

Houve de tudo - e para todos os gostos. Actuaram sete cavaleiros, o Gilberto e três pais com três filhos (Moura, Telles e Rouxinol), pegaram os dois grupos do Montijo (de que já aqui falei em pormenor) e lidaram-se em concurso toiros de sete ganadarias a sério, sem facilidades, sem babosas daquelas que parecem tourinhas e roubam à Festa toda a emoção que é a sua essência. Foi coisa a sério. E assim vale a pena ir aos toiros. Nascem novos aficionados, consolidam-se os antigos, recuperam-se os descontentes.

Vou ser muito breve, porque a crónica já vai longa e o que tenho para dizer diz-se em poucas palavras.

Os três Maestros estiveram no seu plano habitual, mostrando, demonstrando a arte, o saber, a experiente maestria com que dão a volta aos toiros e os tratam por tu, como se todos fossem fáceis.

João Moura esteve "à Moura" com o exemplar de Cunhal Patrício, colaborante e sem pedir contas demais, à medida. Brega perfeita, entradas temerárias "à antiga", ferros com verdade e a emoção mourista de sempre. Moura igual a ele próprio, sempre o primeiro, mesmo sem a dieta que todos desejávamos que ele um dia fizesse...

António Telles toureou e lidou com suprema maestria, também, o bom toiro de Canas Vigouroux, legítimo vencedor do prémio de apresentação (uma estampa!), um toiro de nota alta e excelente comportamento ao longo da lide, sempre a ir a mais. Actuação premiada com música, como a de Moura, e com aplaudida volta à arena, António em grande!

Luis Rouxinol brindou aos céus à memória de seu Pai. Lide emotiva, com os nervos à flor da pele e a lembrança permanente daquele que pela primeira vez não estava ali, entusiasmado e a torcer pelo filho, na trincheira. Muito bem apresentado, com cara impressionante, o toiro de Dr. António Silva foi-se desinteressando da luta, cedo procurou o refúgio nas tábuas - e Rouxinol teve que "dar corda aos sapatos", lide esforçada, sem momentos mortos, com a experiência e o saber que lhe reconhecemos, para levar o barco a bom porto. Música e volta à arena.

O quarto toiro era o de Murteira Grave. Sem ser propriamente um toiro bravo, foi um toiro que se arrancou com alegria de todos os terrenos, que teve comportamento notável e que proporcionou a Gilberto Filipe uma lide memorável, em que deu a dimensão do seu real valor, onde tudo foi bem feito e onde tudo resultou em pleno. Brega perfeita, cites emotivos, ferros en su sítio com verdade e a pisar a linha vermelha de risco. Terminou com um grande ferro com o cavalo sem cabeçada. Público de pé a aplaudir.

Talvez uma das melhores actuações que todos vimos a Gilberto Filipe nos últimos tempos - um verdadeiro grito contra a injustiça, pelo valor, pela raça, como bem clamou o meu querido amigo Paco Duarte, entusiasmado, a aplaudi-lo de pé. Deu uma volta à arena a cavalo e duas a pé com o forcado, como antes referi. Um triunfo importante. O Triunfo da Vontade. Que os senhores empresários deveriam ter em conta... em vez de nos darem todos os dias cartéis com mais do mesmo...

Depois vieram os filhos. Miguel Moura enfrentou em quinto lugar um complicado exemplar de Sommer d'Andrade, reservado, perigoso, com teclas. E ele tocou-as todas. Recebeu-o com uma emotiva sorte de gaiola, depois desenvolveu uma lide de alto nível e muita entrega frente a um oponente sem grandes opções. Esforçou-se Miguel e foi recompensado com música pelo director de corrida e com vibrantes aplausos de apoio pelo público.

Luis Rouxinol Júnior trazia também às costas, como seu Pai, uma carga grande de emoção e saudade nesta corrida, a primeira em que estava na sua praça do Montijo sem a presença e sem o apoio do seu querido Avô Alfredo. Brindou-lhe a lide, olhando a sorrir os céus, e deixou na arena uma rosa branca, que ali ficou sem ninguém a pisar até ao final da actuação. Quando dava a volta à arena, apanhou-a, levou-a consigo e voltou a sorrir quando olhou a imensidão do céu e sentiu a imensidão da saudade.

Dedicou Luis ao Avô e a todos nós, ao Gilberto também, a quem dedicou igualmente o seu brinde, uma lide plena de emoção e de atitude, frente a um toiro de Manuel Veiga algo reservado e sem facilitar, com complicações que o jovem cavaleiro superou com a garra e a intuição rara que herdou do pai. Terminou com um par imponente de bandarilhas e ainda um ferro de palmo. A afirmar-se, a não querer perder nem a feijões.

O sétimo toiro era da ganadaria São Martinho, toiro de nota altíssima, que todos esperavam fosse contemplado com o prémio de bravura, mas...

Lidou-o António Telles Filho com muita cabeça, com muito coração, com muito sentimento, com imensa alma. Está um Toureiro e pêras, no caminho certo que leva os eleitos aos altares das primeiras figuras. "Gostava de fazer dele uma figura!", disse-me António, o Mestre. E é para lá que ele caminha, respondi-lhe sem hesitar.

António desenhou uma lide em que tudo foi perfeito, em que nada houve a apontar, com uma raça, com uma alegria e com uma verdade que, não tenho dúvidas, depressa o hão-de levar ao patamar da frente. Foi importante para ele. E foi importante para dar ânimo aos aficionados para que acorram esta quinta-feira ao Campo Pequeno, onde o António vai estar com os toiros de Murteira Grave, em competição com os consagrados Moura Júnior e Bastinhas.

Aplausos para os bandarilheiros das quadrilhas dos sete cavaleiros, em particular pelo trabalho que desempenharam a colocar os toiros (toiros a sério!) para os forcados. Os meus respeitosos olés, com admiração, para Francisco Marques e Pedro Noronha (quadrilha de João Moura); João Ribeiro "Curro" e António Telles Bastos (António Telles); Manuel dos Santos "Becas" e João Bretes (Rouxinol); Nuno Oliveira e Duarte Alegrete (Gilberto Filipe); Jorge Alegrias e Paulo Sérgio (Miguel Moura); Ricardo Alves e João Martins (Rouxinol Jr.); Miguel Maltinha e Filipe Fetal (António Telles).

A corrida do Montijo terminou em beleza. E em grande. O público saíu satisfeito, a comentar as incidências no exterior da praça, Houve um ambiente enorme. Como faz falta.

Os empenhados empresários Jorge Dias e Samuel Silva andavam desanimados, e com razão, com os adiamentos e cancelamos provocados pela chuva, com as praças menos cheias por esta e aquela razão, há muito que mereciam uma casa assim, com o sucesso que todos aplaudimos ontem no Montijo. Foi bom para eles - e foi animador para a tauromaquia.

Presidiu à corrida a nova presidente da Câmara do Montijo, Maria Clara Silva, que era vice e esta semana sucedeu a Nuno Canta, que deixou o município para integrar a Comissão Executiva da Amarsul, Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos, empresa concessionária do tratamento e valorização dos resíduos urbanos dos nove municípios da Península de Setúbal.

Presença honrosa, também, a do provedor da Santa Casa da Misericórdia, Ilídio Massacote; e entre o público vimos também José Manuel Santos, o aficionado vereador da Cultura do município montijense. Nas bancadas, muitas caras famosas e muitos toureiros e forcados e ganadeiros.

A corrida foi muito bem dirigida, com rigor e exigência, concedendo música a todos, mas só no momento certo, por Tiago Tavares, que esteve assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

Ao início foi guardado um respeitoso minuto de silêncio em memória de Alfredo Vicente, saudoso patriarca da Família Rouxinol; e depois das cortesias, Gilberto Filipe atravessou a arena para ser presenteado pela presidente da Câmara, pelo provedor da Santa Casa, pelos empresários da Toiros com Arte e pelos cabos dos dois grupos de forcados montijenses - pela comemoração dos seus vinte anos de alternativa.

Como já aqui referimos, a empresa anunciou no final da corrida que Gilberto Filipe foi contratado para regressar em Julho a esta praça na Corrida das Tertúlias. Assim se engrandece a Festa, assim se promove a competição, repetindo quem triunfa. Jorge e Samuel, novos empresários, deram uma lição. Como faziam os antigos.

Por fim, os prémios. Vou terminar dizendo de minha justiça.

Os antigos forcados Hugo Branquinho e João Vilaverde e o cronista Miguel Ortega Cláudio compunham o júri para o prémio da melhor pega. Foi outorgado a José Pedro Suissas, cabo dos Amadores do Montijo (quarta pega), porque se o não fosse tinha caído o Carmo e a Trindade e o que mais houvesse para tombar. Não foi uma pega ortodoxa. Foi feita por um só forcado, sem ajudas e até com um cavaleiro de casa e tricórnio a rabejar o toiro. Enfim... Mas foi, de todas, a mais emotiva. E aquela que fez explodir o público.

O júri para a melhor lide a cavalo era composto pelo aficionado João Samuel Lupi, pelo empresário João Pedro Bolota e pelo ganadeiro João Folque (Palha). O prémio foi atribuído a Gilberto Filipe. Ninguém protestou, mas... também poderia ter sido outorgado, com toda a justiça e todo o merecimento, a António Telles Filho. Entende-se a distinção feira a Gilberto, em tarde de celebração dos vinte anos de alternativa e na sua praça. Mas podia - digo mais: devia - ter sido atribuído ex-aequo também a Telles.

Os prémios de bravura e apresentação do Concurso de Ganadarias foram decididos por outro júri formado pelos críticos Vasco Lucas e José Cáceres, pelo ganadeiro Lourenço Vinhas e pelo antigo forcado António Sécio. Prémio de apresentação outorgado ao toiro de Canas Vigouroux - mas também podia ter ido para o toiro de Dr. António Silva. Prémio de bravura atribuído ao toiro de Murteira Grave, mas também merecia ter sido ganho pelo de São Martinho.

Em suma, nunca se pode agradar a gregos e a troianos. Mas também, ninguém protestou, por isso sairam todos contentes. E é isso que faz falta. Na foto de baixo, os quatro premiados: Joaquim Grave, Gilberto Filipe, José Pedro Suissas e Pedro Canas Vigouroux.

Fotos M. Alvarenga