Miguel Alvarenga - Toureiro em permanente ebulição, depois de ter sido nos dois últimos anos triunfador-maior da Feira de Santo Isidro em Madrid e de estar neste momento a conquistar saídas em ombros em quase todas as praças por onde passa (vai estar três tardes na Feira de Sevilha e outras três em Madrid), Borja Jiménez nem por isso se esquivou de vir a Portugal, de cuja temporada já tinha sido proclamado triunfador em 2024, enfrentar e dar a cara com toiros de verdade, de muita verdade mesmo.
Os exemplares do Engº Francisco Lobo de Vasconcellos (ganadaria Santa Maria) que ontem sairam à arena da Monumental de Almeirim, quase todos aplaudidos na entrada em cena, foram sete toiros dignos de Madrid, com cara, com peso, com um trapio que chegou a ser assustador em alguns deles e, nomeadamente, nos toureados a pé pelo matador sevilhano e pelo nosso Diogo Peseiro.
Ao contrário das pseudo-figuritas, espécie de ídolos com pés de barro, que aqui vêem sacar o dinheiro e enfrentar bezerros, não vá sofrerem algum desgosto e partirem um bracinho, qualquer azar que os impeça de prosseguir a temporada lá no seu país, ao contrário desses mitos de papel, Borja Jiménez veio uma vez mais ao nosso país dar a cara, com a atitude dos eleitos, com a humildade e a honestidade dos Toureiros a sério. Esteve em Almeirim como se estivesse ele em Las Ventas, na Real Maestranza ou noutra qualquer catedral de primeiro plano.
Os toiros das lides a pé, que foram quatro, tinham exactamente o mesmo trapio, a mesma presença, a mesma imponência e seriedade dos que foram toureados a cavalo, não houve qualquer diferença que elevasse os cavaleiros e diminuísse os matadores, como costuma acontecer quando por cá se apresentam figurinhas "da alta roda" que impõem trazer uns toiritos debaixo do braço, de preferência se forem dessas ganadarias espanholas que não incomodam ninguém, a não ser o público, que mesmo assim continua a comer e a calar, sem manifestar, ou mesmo ter a ousadia de protestar.
Não senhor, Borja Jiménez não veio cá fazer esse papel habitual de "sacar a massa" e dar dois passes a bezerrinhos que até metem dó. Toureou a sério. E enfrentou toiros a sério. Marcou por isso a diferença.
Mostrou o que vale e explicou porque é hoje uma das figuras em efervescência no mundo dos toiros. Toureou de capote como sempre tourearam os génios de outra dimensão. Ao segundo toiro do seu lote, tanto se lhe deu que tivesse aquela trapio imenso, aquela seriedade que arrepia, foi-se a ele e recebeu-o de joelhos em terra com uma larga afarolada que pôs logo a praça em pé. Depois recriou-se em cingidas verónicas e chicuelinas e com a muleta, como já estivera no seu primeiro toiro, esteve simplesmente enorme, mandando, templando, toureando a gosto e com arte. Foi o delírio nas bancadas.
No primeiro toiro deu duas voltas à arena, no segundo deu uma e no final foi calorosamente aplaudido na despedida. O mérito deste importante triunfo foi todo seu, mas há que reconhecer e aclamar Rui Bento, o promotor desta corrida mista, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia, pela verdade e pela seriedade com que tudo foi montado e refinado ao mais destacado pormenor.
E não me venham dizer que o público aficionado não vai às corridas mistas. Estávamos no fim de um fim-de-semana prolongado, sexta foi feriado, o Algarve estava à cunha - e, mesmo assim, a Monumental de Almeirim registou ontem uma enchente de praticamente três quartos das bancadas preenchidos.
Rui Bento trouxe uma das grandes figuras do momento - e deu oportunidade ao novo matador português, Diogo Peseiro, que se apresentou na sua terra natal aos aficionados do seu país depois de ter tomado no ano passado a alternativa no país vizinho.
Peseiro não tem toureado, está num patamar diferente e uns furos abaixo de Borja Jiménez, o que é natural. Mas nem por isso esteve "fora de combate", antes pelo contrário, bateu-se com todas as suas armas, e as bandarilhas são as principais (tércio que domina com enorme poderio e valor), pelo triunfo que também lhe viria a sorrir.
O seu primeiro toiro, outro toiro sério e de verdade, não era pera doce. Peseiro teve ontem, aliás, a má fortuna de lhe tocarem os dois piores (ou pelo menos os mais complicados) toiros de Santa Maria.
Nesse primeiro procurou superar as dificuldades, mas a matéria prima não ajudou. Diogo sacou ao toiro todos os passes que ele tinha, fez os possíveis e os impossíveis, não tinha vindo mal nenhum ao mundo se o director de corrida Marco Cardoso o tivesse brindado com um pasodoble, mas a banda esteve em silêncio toda a faena. Marco Cardoso é um director exigente e sério - e a realidade é que o esforço de Peseiro naquela faena de luta, cheio de atitude e de valor, foi mais uma sinfonia de valentia e de raça do que propriamente um bailado que se justificasse ter sido festejado com música.
O seu segundo toiro foi outro oponente pouco claro, exigente, reservado, que o procurou colher mais que uma vez, provocando-lhe dois sustos, mas Peseiro esteve valente e decidido, deu-lha a volta com muito sangue frio, arriscando, ousado e valentão. E com arte. Deu volta à arena nos dois toiros.
A cavalo, andaram com a costumeira classe os primos Manuel Telles Bastos e João Ribeiro Telles, havendo a registar bons ferros de ambos nas lides a sós, apesar de nenhuma delas ter sido uma lide rematada pelo êxito, estiveram bem, sem espaventos.
Manuel fez alarde do seu estilo clássico e dessa maneira bonita de tourear como faziam os antigos; João pisou a linha de risco e com o cavalo "Ilusionista" esteve no patamar dos eleitos, como sempre costuma acontecer.
A lide a duo, que protagonizavam pela primeira vez, foi animada e estiveram em total sintonia, resultando triunfal. E foi nesse dueto que Manuel Telles Bastos cravou aquele que foi, sem sombra de dúvidas, o maior ferro da tarde. Estava ontem o Manuel muito inspirado.
Não houve capotazos a mais nas lides a cavalo, bem estiveram todos os bandarilheiros, mas muito em especial esses grandes Duarte Alegrete, António Telles Bastos e Jorge Alegrias. E muito bem se exibiram também os três bandarilheiros da quadrilha de Peseiro, que eram ontem Joaquim de Oliveira, Pedro Paulino e João Martins. Nota alta também para a quadrilha de Borja Jiménez com as bandarilhas, tércio que cumpriram com destreza e valorosas intervenções nos dois toiros.
Os três toiros lidados a cavalo foram pegados, com o brilhantismo habitual, pelos Forcados do Aposento da Moita, que este ano comemoram o seu 50º aniversário. Foram forcados de cara João Freitas (à segunda), pega brindada ao Provedor da Santa Casa, Engº José Lobo de Vasconcellos; André Silva, também à segunda; e Luis Canto Moniz, o futuro cabo do grupo, que brindou a Rui Bento e fez a maior pega da tarde ao toiro da lide a duo, com 620 quilos!
Como acima referi, a corrida foi dirigida, muito bem dirigida, como é costume, pelo competente Marco Cardoso, que esteve assessorado pelo reputado médico veterinário José Luis da Cruz.
Foi uma corrida com história. E com muitas lições e ilações para dali se tirarem.
Primeira: quando as coisas são bem feitas e bem promovidas, e nisso Rui Bento é ainda o maior dos mestres, o público corresponde, vai à praça.
Segunda: é mentira que a corrida mista seja um formato a evitar ou em decadência. O que devíamos todos evitar era a existência, nos dias que correm, de muitos pseudo-empresários que querem convencer-se a eles próprios de que este formato com matadores, como eram todas as corridas de antigamente, está passado e ultrapassado. É mentira, como ontem se viu.
E terceira: Borja Jiménez é uma Figura do Toureio a sério. Almeirim foi uma "corrida de Madrid". E a Festa precisa de jornadas de seriedade - e grandeza - como esta foi.
Já no final da corrida foi anunciado que, depois de cumpridas todas as despesas, sobrou 2.705€ para a obra social da Santa Casa.
Fotos M. Alvarenga
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Casa muito bem composta |
A sublime magia de Borja Jiménez |
Louvor e distinção: público premiou com fortes aplausos a raça e a entrega de Diogo Peseiro |
Manuel Telles Bastos muito inspirado ontem em Almeirim |
Arte, emoção e risco: João Ribeiro Telles |
Harmonia e perfeita sintonia na lide a duo - pela primeira vez |
Forcados do Aposento da Moita (fotografados com o antigo cabo João Simões com o seu neto ao colo) - 50 anos de glória |