Miguel Alvarenga - Nos tempos do empresário visionário Manuel Gonçalves, ganhou força e consistência a fórmula do cartel de seis cavaleiros - que todos os anos, quando chegava Junho e a Feira do Ribatejo, esgotava com dias de antecedência a lotação da Monumental de Santarém nessas célebres e nunca esquecidas Corridas da Rário Renascença, onde tinha um peso incalculável a popularidade de António Sala e da Amiga Olga (Cardoso) para arrastar público à praça.
Mas não era só isso. Os tempos eram outros. E os seis cavaleiros eram todos eles diferentes uns dos outros. Moura toureava de uma maneira, Manuel Jorge de Oliveira de outra, Caetano, Bastinhas, João Telles, Rui Salvador, António Telles, Ana Batista, Rouxinol, Salgueiro, Rui Fernandes, o Vitor Ribeiro e a Sónia Matias eram distintos entre si. As corridas tinham outra animação. E outro interesse. Íamos ver seis cavaleiros e viamos mesmo seis cavaleiros. Hoje são todos tão iguais na forma como toureiam que vemos um e vemos mais cinco todos iguais, parece que é um encerrona de um só e que o toureiro é sempre o mesmo...
A (triste) realidade é mesmo esta: a maioria dos cavaleiros toureiam todos da mesma maneira. Mais brega, menos brega, ladeiam, cravam igual e depois correm desaustinados em direcção à trincheira de mão no ar e boca aberta, parece que vêm bater na gente... Credo, que até assustam...
Toureavam com outra postura os cavaleiros de antigamente. Nunca vi o Mestre Batista, o Luis Miguel da Veiga, o Zoio, o Emídio e tantos mais acabar de porem um ferro e virem de boca aberta, aos berros, em direcção do público, assim como se fossem cavalgar pela bancada acima... Ou sou mesmo eu que sou antigo, ou, na verdade, os toureiros - e as touradas - desse tempo-outro tinham outro senhorial prestígio e outro ritual de grandeza que hoje desapareceu por completo, está apenas presente em dois ou três toureiros que ainda sobrevivem nos escombros para fazer lembrar o passado.
Ontem em Santarém, tourearam seis cavaleiros daquela a que se pode chamar a nova vaga ou a nova geração. E, doa lá a quem doer, excepção feita ao António Ribeiro Telles (filho), que foi mesmo o único que toureou e lidou do princípio ao fim o mais Palha dos seis Palhas, o nº 202, com quase 600 quilos (tinha 590), um toiro de Madrid - e o ganadeiro ficou sentado na bancada, não houve ninguém, nem a directora de corrida Ana Pimenta, que se lembrasse de o distinguir com uma mais que merecida volta à arena, enfim, os tempos são outros, nada do que se passa hoje numa tourada tem a ver com a solenidade e o esplendor que nesses tempos-outros eram apanágios de uma tarde ou noite de toiros...
Num país onde tantas vezes se lidam toiritos cómodos da corda e se esquece que isto foi, em tempos, um espectáculo de risco e de emoção, quando um ganadeiro, falo de João Folque, tem a dignidade de apresentar numa corrida um curro de toiros como o de ontem, é uma tremenda injustiça e uma total e preocupante ausência de cultura taurina que se deixe o Senhor na bancada, sem o premiar com uma volta à arena. Ou duas, ou três ou mais.
Esforçou-se o valoroso Miguel Moura frente ao primeiro Palha, algo reservado, sério, mas estava ainda meio frio o público, que ontem encheu os sectores de sombra e se espalhou em menor número pelos de sol, podendo dizer-se, com jeitinho, que estava meia casa fortíssima, quase a rondar os três quartos fracos. Andou Miguel Moura com a raça costumeira, mas foi uma lide meio morna, sem explosões - nem dele, nem do público.
João Salgueiro da Costa está moralizado e está mais maduro. Foi sempre um toureiro meio incerto e algo irregular, ora estava bem, ora andava assim-assim. Agora tem outro fôlego, está em alta e vai-se aos toiros com a garra e a emoção com que sempre ia seu pai, parando os corações da malta, causando calafrios na bancada. Ontem teve ferros desses. Teve uma lide brilhante. Com a marca da casa. À Salgueiro - de verdade.
Luis Rouxinol Júnior foi o terceiro cavaleiro em praça. Ontem não teve a seu lado o apoderado Rui Bento e houve logo quem levantasse suspeitas para justificar a ausência. Sempre largou os Rouxinóis depois da história do piso alegadamente impróprio que cancelou a corrida de Maio na "Palha Blanco"? Não pensem maldades. Estava lá o filho do Rui, na trincheira, com Rouxinol - que esteve bem, com um Palha de emoção, ao seu melhor estilo, alegre, movimentado, emotivo, a terminar com um arrojado par de bandarilhas.
Depois do intervalo, curtinho, para que o Grupo de Forcados de Santarém tirasse a foto da praxe na trincheira, a assinalar os seus 110 anos de muita glória, entrou em cena Joaquim Brito Paes. Enfrentou um Palha que pedia contas, como todos pediram, mas este pedia mais, e andou meio perdido e desconcentrado, falhando alguns ferros. Foi o único que não toureou ao som da música. Encastou-se na fase final, mas já era tarde. Terminou com dois bons curtos e alguns rasgos de entusiasmo, mas esta sua passagem por Santarém não fica na história. Há que não desanimar e Joaquim já vinha desanimado de uma presença menos boa em Coruche na semana anterior. A vida é uma história de altos e baixos. Força, Toureiro!
Não há quinto mau, diz a sabedoria popular. E não houve. O quinto Palha foi, como disse atrás, um toiro de eleição. Um toiro de presença incrível, com uma apresentação e um trapio dignos de Madrid, bravo, com comportamento fabuloso, a investir com alegria e a arrancar-se que nem um comboio de todos os terrenos.
António Ribeiro Telles (filho) foi o toureiro - e o lidador - da tarde. Já na véspera, em Paio Pires, deixara bem claro que esta vai ser a sua temporada. Está António um toureiro maduro, senhor de qualquer e toda situação, lidador nato, a fazer tudo com classe, com arte e, sobretudo, com um valor que começa muito seriamente a distanciá-lo dos demais.
António não se limitou a cravar ferros e a vir a correr para o público. Aliás, nem é toureiro de fazer essas figuras. Tem classe. Toureou de verdade, lidou com a seriedade e o saber que aprendeu com seu pai, o Mestre - e por isso, foi ele o cavaleiro triunfador e foi ele o toureiro que marcou ontem a diferença em Santarém. Ele e o seu dedicado peão de brega João Ribeiro, o valente "Curro", que não me canso de aplaudir e que ontem se fez ao toiro de Palha como se fosse um jovem em princípio de carreira, ali deixando a sua arte e o seu tão grande valor com a sabedoria e a importância de quem cá anda há tantos anos sempre da fila da frente. Olé!
António triunfou rotundamente, mas teve o primo "à perna". A seguir veio Tristão Ribeiro Telles Queiroz. Veio embalado pelos triunfos recentes na Moita e em Vila Franca. Veio animado e com a moral em alta. E foi, como tem sido nas suas últimas corridas, um verdadeiro furacão de alegria e contagiante empatia com os aficionados.
Tristão esteve valente, pôs a carne no assador, pisou terrenos de grande compromisso, reafirmou que não anda nesta vida para procurar coisas fáceis e conquistar triunfos pelo caminho da comodidade. Como tantos aí andam. Tristão é um toureiro de raça, um toureiro que se tem vindo a impor e que cresce de dia para dia, agiganta-se em praça, superioriza-se a ele próprio. E com uma particularidade: ninguém move a juventude como ele o consegue fazer. Ontem, depois do êxito, foram muitos os miúdos que saltaram à arena e o acompanharam numa empolgante volta à arena.
Tarde de grande triunfo para os gloriosos Forcados Amadores de Santarém, com algumas antigas glórias fardadas, casos do enorme e único Nuno Megre, do antigo cabo Pedro Graciosa, do grande rabejador David Romão e de outros mais, na comemoração do seu 110º aniversário. Manchado apenas pelas lesões (felizmente não muito graves) sofridas pelos forcados Joaquim Grave, José Fialho e João Manoel, que recolheram ao hospital para ficarem em observação. Grave sofreu uma lesão pulmonar, Fialho partiu um braço e João Manoel, que sofreu convulsões ainda na arena, não tem nenhuma lesão de maior gravidade.
Os seis valentes Palhas - um curro de toiros de verdade, dos que dão emoção e repõem a importância que tantas outros vezes têm retirado a este espectáculo - foram pegados com a raça e o valor de mais de cem anos de glória pelos Forcados Amadores de Santarém.
Abriu a tarde o valente cabo Francisco Graciosa, com a técnica e a decisão usuais, consumando ao primeiro intento com o grupo a intervir em grande e uma primeira-ajuda fabulosa de Francisco Luis Lopes, um forcadão que se tem vindo a revelar entre os melhores.
Pegaram a seguir Salvador Ribeiro de Almeida, muito bem a recuar e a fechar-se com toda a decisão, à primeira, com os companheiros a ajudarem muito bem; Caetano Gallego também à primeira, outra grande pega; o heróico Francisco Cabaço à segunda, depois de na primeira tentativa se ter mantido na cara do toiro uma eternidade até lhe ser possível, com uma primeira ajuda muito boa de Nuno Rosário na segunda intervenção; Joaquim Grave (filho do antigo cabo Carlos Grave, que ontem fazia anos e a quem seu filho brindou), numa pega brutal e enorme ao quinto Grave de Madrid, ao terceiro intento, dando a volta à arena com o triunfador António Telles e recolhendo depois à enfermaria e ao hospital, onde me informam de que lhe foi diagnosticada uma lesão pulmonar (as melhoras!); e por fim José Faro, que pegou com galhardia e brilhantismo o último Palha, brindando aos grandes do Rugby de Santarém, que subiu à primeira divisão e tem nas suas fileiras muitos forcados.
Esta foi a Corrida dos Agricultores, a celebrar também o aniversário da CAP (já lá vão cinquenta anos!) e numa barreira estiveram a assistir o presidente e o secretário-geral da confederação, respectivamente Embaixador Álvaro Mendonça e Moura e Luis Mira, aos quais nenhum cavaleiro se lembrou de brindar, só os Forcados de Santarém o fizeram na segunda pega... Coisas (e lapsos) que noutros tempos também não se passavam...
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Foto D.R. |
Há 45 anos, recordo esse momento nesta foto que aqui republico, na tarde de 15 de Junho de 1980, o então primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro assistiu à corrida (foi a da alternativa de Paulo Caetano) e ao intervalo desceu à arena, acompanhado pelo Presidente da Assembleia da República, Leonardo Ribeiro de Almeida, para cumprimentar os artistas. Foi o único primeiro-ministro e foi também o único Presidente do Parlamento, segunda figura do Estado, que algum dia o fizeram. Os políticos destes tempos modernos, mais politiqueiros que propriamente políticos a sério, como o eram os daquele tempo-outro, não se dignam sequer marcar presença numa praça de toiros. Lamentável. Ontem estava numa das filas da frente Pedro Correia, deputado do Chega eleito por Santarém. Mais nenhum... ou se estava mais algum, estaria escondido dos olhares públicos. Assim vai a nossa Festarola e assim se vê o respeito que os que mandam têm por ela...
Ana Pimenta foi ontem a directora de corrida, desempenhando com seriedade e bom senso a sua missão. Esteve assessorada pelo reputado médico veterinário José Luis da Cruz e José Henriques voltou a ser aplaudido pelo público pela arte dos seus toques de cornetim.
Santarém tem desde há vários anos e graças ao grande e motivante empenho desta dinâmica Associação Sector 9, um esplendor especial. Com o Campo Pequeno adormecido e envolto em vergonhosos escândalos de meia-tijela, assume-se esta Monumental "Celestino Graça", com cada vez maior justificação, como a primeira grande praça deste país.
E na terça-feira lá estaremos todos outra vez!
Fotos M. Alvarenga
Miguel Moura |
João Salgueiro da Costa |
Luis Rouxinol Jr. |
Joaquim Brito Paes |
Tristão Telles Queiroz |
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Foto José Canhoto |
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A corrida acabou assim! A juventude na arena, à volta de Tristão Foto Frederico Henriques |