segunda-feira, 12 de maio de 2025

Diego Ventura e Duarte Fernandes: a arte de bem tourear a cavalo numa dimensão muito mais além dos parâmetros ditos normais!

Miguel Alvarenga - Os bilhetes eram caros e de valor exorbitante, queixaram-se alguns, mas mais força teve ontem a exorbitância e o valor de Diego Ventura, primeira figura do toureio mundial, artista de outra galáxia, que arrastou às bancadas da Monumental do Montijo uma entusiasmada legião de aficionados que a encheram e lhe devolveram aquele recordado ambiente dos tempos antigos. Faltou vender poucos bilhetes para colocar o cartaz de lotação esgotada - mas a praça estava à cunha, as fotos (que já ontem aqui publicámos) falam por si. E são jornadas como esta que engrandecem, valorizam e dão maior esplendor à tauromaquia. 

Foi pena a corrida não se ter realizado a 12 de Abril, como estava previsto e a chuva o impediu. Foi pena o adiamento ter caído em cima do tradicional Concurso de Ganadarias de Salvaterra, que já estava anunciado e, mesmo assim, registou ontem uma entrada de três quartos. 

Mas, apesar de todas as contrariedades que afectaram várias corridas (umas adiadas, outras canceladas) neste chuvoso início de temporada, Ventura demonstrou e reafirmou ontem a sua força, enchendo a Monumental "Amadeu Augusto dos Santos", onde não actuava há muitos anos naquele que era um muito esperado regresso a Portugal, o país onde nasceu, onde não toureava há dois anos, depois de em 2023 ter esgotado a praça da Moita na corrida da alternativa de Paco Velásquez.

Valeu a pena o empenho, o esforço, a ousadia e a diferença marcada pela jovem dupla empresarial composta por Jorge Dias e Samuel Silva - que apostaram tudo neste cartel diferente, acabando por ganhar e demonstrar que estão na Festa para fazer obra e não apenas para presumir e aparecer nos retratos. As próximas organizações que anunciam, nesta e noutras praças, são disso a grande prova. A tauromaquia precisa de empresários como estes. Já cansa andarmos há tantos anos a ver sempre mais do mesmo.

Por exemplo: depois do "estrondo" de ontem, alguém tem dúvidas de que, se o Campo Pequeno anunciasse agora a corrida da alternativa de Duarte Fernandes, esgotava a praça em dois dias? Mas...

Ontem, estava todo aquele público predisposto a divertir-se e a vibrar com os bailados de maravilha protagonizados pelos fantásticos cavalos de Diego Ventura frente a toiros que o permitem (e há, como ontem se viu, espectadores para este tipo de espectáculo, contra factos não há argumentos!), embora pouco transmitam no que à emoção e ao risco, as verdadeiras e grandes essências da Festa, dizem respeito.

Faltou o toiro-toiro, o toiro de verdade, o risco, o susto e a emoção, nas duas primeiras lides de Ventura e Duarte Fernandes com, respectivamente, os exemplares de Maria Guiomar Cortes Moura e de Los Espartales, dois toiros sem agressividade, que andaram a trotar ao compasso dos cavalos sem fazer mal, permitindo que um e outro cavaleiros demonstrassem os seus bonitos bailados com as bem arranjadas montadas. Mas faltou a emoção. Tudo parecia fácil (não é assim tanto, mas parece...), dava até a impressão de que ambos estavam a treinar com a tourinha nos seus tentaderos. Faltou emoção, risco, verdade. Faltou toiro - que, como sabemos, é o elemento principal deste espectáculo

Ventura deu o seu melhor, exibiu a arte e a espectacular preparação dos seus magníficos cavalos, mas a falta de agressividade e a bondade e colaboração do bonito e suave toiro de Guiomar Moura acabou por retirar brilho e, sobretudo, importância à sua actuação. O público aplaudiu. O público gostou. Por isso, quem sou eu para dizer que aquilo não vale? Vale, sim, quando há público que gosta. Contra factos, não há possíveis argumentos que contrariem o sucesso destas lides "mansas" e destes toiros "amiguinhos"...

Duarte Fernandes, por seu turno, acusou algum nervosismo, compreensível, na primeira actuação, frente ao também muito colaborante e bonzinho toiro de Los Espartales, bem apresentado, mas sem transmissão e também sem agressividade. Duarte andou apenas bem, sem deslumbrar. E falhou alguns ferros. Demonstrou disposição, mas também ele não teve neste toiro matéria possível para brilhar. Mesmo assim, ouviu música e deu aplaudida volta à arena com o forcado.

Poderá concluir-se que este novo público que vai às praças e as enche, não é entendido, não é exigente, come o que lhe dão sem protestar, aceita toiros assim, não gosta de se emocionar e de se assustar com toiros a sério? Acho que o caso não é esse. Há é público para isto e público para aquilo. E os dois espectáculos são válidos e têm clientela.

E como as pessoas compram o bilhete e aplaudem e se divertem, porque razão havemos de passar a vida inteira a dizer que estes toiros - que um dia João Salgueiro baptizou de "nhoc-nhoc's", lembram-se? - não servem e que só prestam os toiros sérios, exigentes e agressivos, como foram, por exemplo, os dois que se seguiram, ambos da ganadaria Veiga Teixeira, a que tira o sono aos toureiros e aos forcados?

E foi precisamente nos toiros de Veiga Teixeira que mais se destacaram ontem Ventura e o jovem Fernandes, o que comprova que são ambos toureiros "para todos os toiros" e que podem com eles todos. Ventura resfirmou o que todos já sabíamos há muito temo: é um monstro e um génio especial do toureio a cavalo. Duarte Fernandes, por seu turno, deixou bem claro que é uma figura em ebulição, o melhor dos novos, deu a dimensão perfeita do que é e do que vai ser. Tal e qual como seu tio Rui o fez há uns trinta anos quando aqui apareceu.

Diego Ventura esteve enorme, magistral, frente ao terceiro toiro da corrida, segundo do seu lote, o de Veiga Teixeira, um toiro que exigia, que impunha respeito, que pedia contas e que "metia mudanças". Demonstrou Ventura que tanto brilha frente a um toiro destes novos encastes pouco agressivos, como diante de um toiro a sério, como o eram os de antigamente, como o são os de várias ganadarias felizmente ainda existentes, como é o caso da de Veiga Teixeira.

Lidou, toureou, cravou, pisou os terrenos da verdade, recriou-se em bonitos e artísticos remates a ladear e foi precisamente neste toiro que fez o sempre arriscado número de retirar a cabeçada ao cavalo e entusiasmar tudo e todos com um grande ferro de frente e ainda um colossal par de bandarilhas. Delírio absoluto nas bancadas, púbico de pé, em grande entusiasmo, a aclamar com calorosa ovação o número-um do toureio a cavalo.

O quinto toiro da ordem, terceiro e último do lote de Ventura, foi um exemplar de Los Espartales, imponente, com 555 quilos, mas mansote, de investidas pouco claras, com o qual esteve Diego em excelente plano, ultrapassando as dificuldades causadas pela pouca qualidade do oponente, mas acabando por sofrer uma aparatosa queda quando o cavalo "Nómada" fazia uma arriscada pirueta na cara do toiro. O cavalo nada sofreu, Ventura ainda se voltou a montar e terminou a lide com dois ferros muito aplaudidos, mas depois já não conseguiu dar a volta à arena e recolheu ao Hospital do Barreiro, onde se confirmou, como ontem aqui noticiámos, que partira quatro dedos do pé esquerdo. Fim de festa trágico e lamentável numa tarde de sonho que vai ficar na história desta temporada.

Duarte Fernandes, ultrapassado o nervosismo patente na sua primeira exibição, voltou à praça decidido a também ele marcar esta tarde e deixar claro, para que não restem dúvidas, do patamar em que se encontra, muitos pontos acima do pelotão da chamada nova vaga. Ontem, deu a verdadeira dimensão da sua arte, do seu valor, da grandeza da prometedora história que está pronto a escrever nos anais da tauromaquia mundial.

Toureia pouco em Portugal, não está, por exemplo, na mini-temporada do Campo Pequeno, onde se impunha que estivesse, mas isso apenas acontece porque Duarte e os seus mentores não embarcam nas "novas regras" da "loja do chinês" com que a maioria dos empresários contratam e pagam (ou não pagam) aos toureiros. Os tempos mudaram. Mas ainda há, felizmente, toureiros que se regem pelas leis dos tempos antigos. Dos tempos em que isto era um meio de respeito e de solenidade.

Com o terceiro toiro da corrida, de Veiga Teixeira, com 505 quilos, Duarte Fernandes deixou bem patente o valor e a força da sua raça, do seu toureio, da sua forma de ser diferente. Arriscou, pôs a carne no assador, afirmou-se e impôs-se numa tarde de muita responsabilidade, numa prova de fogo séria e verdadeira, arriscada e ousada, numa tarde em que media forças com o primeiro de todos. Esteve grande, como os eleitos.

O último toiro da corrida era da ganadaria de Armando João Moura (Maria Guiomar Cortes de Moura), muito bem apresentado, com 560 quilos, bonito e a demonstrar bravura, de qualidade muito superior ao da mesma divisa que abriu praça com Ventura. O toiro impunha respeito e pedia contas. Duarte agigantou-se, recebeu-o com uma empolgante sorte de gaiola, pôs tudo e todos em delírio, pisou terrenos de alto compromisso, causou depois grande alvoroço com cingidas e arriscadas piruetas (três seguidas de cada vez!), chegando a sofrer um susto junto às tábuas quando o cavalo escorregou, mas depressa se recompôs. Terminou com dois "violinos" e com o conclave todo de pé a aclamá-lo como incontestado número-um da nova geração de cavaleiros nacionais. Tarde de consagração - que foi também, na sua ainda jovem carreira, um importante grito de afirmação.

Um toureiro assim faz falta nas grandes praças e nas maiores competições. Só não o percebem os empresários que (não) temos e que continuam a montar elencos mais do mesmo. Aqui, Jorge Dias e Samuel Silva marcaram, de facto, a diferença. 

Os seis toiros foram pegados por uma fantástica Selecção de Forcados - que alguns Velhos do Restelo contestaram quando foi anunciada... - sob o comando do experiente João José Comenda - que é justo que se aplauda pela forma como conduziu este grupo formado por elementos de muitos grupos, acertando em cheio nas composições que formou e elegeu para pegar cada toiro. Comenda brilhante, como sempre. 

Houve uma só pega ao segundo intento, a primeira, de Bernardo Belerique (forcado do Grupo da Tertúlia Tauromáquica Terceirense); e cinco consumadas à primeira - por Rafael Costa (Amadores do Ribatejo), João Parreira (Amadores de Turlock, da Califórnia), Duarte Mira (Amadores de Lisboa), Ricardo Parracho (Amadores do Montijo) e Nuno Veríssimo (Amadores do Aposento do Aposento do Barrete Verde de Alcochete). Muitíssimo bem todos eles a receber os toiros, a templar as investidas, a fechar-se com decisão e a contar cm excelentes ajudas dos companheiros. 

Intervieram nas seis pegas forcados dos diversos grupos que integravam a Selecção, a maioria já retirados, e todos estiveram à altura, bem a ajudar, havendo que destacar três grandes rabejadores, sem desprimor por nenhum dos outros - o próprio cabo da Selecção, João José Comenda; o grande forcado Tiago Ribeiro, ex-cabo do Grupo do Aposento da Moita; e Francisco Godinho, a recordada estrela do Grupo de Montemor.

Bem estiveram todos os bandarilheiros em praça, muito em particular Miguel Batista e Pedro Noronha, Joaquim Oliveira, Jorge Alegrias e o valoroso praticante Miguel Gomes.

Ao início da corrida, Diego Ventura, Duarte Fernandes e a Selecção de Forcados, na pessoa do cabo João José Comenda, bem como o Provedor da Santa Casa da Misericórdia, Ilídio Massacote, foram presenteados pelos empresários Jorge Dias e Samuel Silva com uma lembrança alusiva a esta importante corrida.

Nota alta para a direcção de Ricardo Dias, que esteve ontem assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

É tudo, de uma corrida que foi, na realidade, diferente. E que marca esta temporada, sem sombra de quaisquer dúvidas. Ventura e o novo Fernandes protagonizaram a arte de bem tourear a cavalo numa dimensão muito mais além dos parâmetros ditos normais! Essa é que é essa! O resto, são conversas...

Fotos M. Alvarenga