segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Moura... e os outros! Passou meio século, mas a História é a mesma!

Miguel Alvarenga - Há quase 50 anos (que se cumprem dentro de poucos meses, em 2026), Portugal não acordara ainda completamente da revolução verificada um ano antes. Metade do país estava ou na prisão ou no exílio. Reinava "a canalha mais vil"

Em Madrid, um menino toureiro português de 16 anos, João António Romão de Moura, oriundo de uma ilustre família de ganadeiros e lavradores alentejanos, deixava a Espanha inteira a falar dele - e do cavalo branco mágico, "Ferrolho" era o seu nome e pertencera ao Mestre dos Mestre, João Núncio, de cuja ganadaria nesse dia lidava um toiro -, a falar do "niño prodígio" como nunca outro houvera, a quem até o Rei tinha feito uma vénia nessa tarde histórica de 27 de Maio de 1976, quando pela vez primeira abriu a Porta Grande de Las Ventas, a Monumental de Madrid, a Monumental de todos os sonhos, por ela saindo em ombros e em glória ante o delírio de uma praça cheia que não parava de o aclamar: "Torero! Torero!".

Exilado no Brasil há dois anos, o Prof. Marcelo Caetano, último Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, manifestava ao jornalista António Maria Zorro, que fora director da agência noticiosa ANI (que depois se chamou ANOP e agora se denomina Lusa), o seu regozijo e o seu orgulho "por haver de novo alguém que provocava que no estrangeiro voltassem a evocar o nome de Portugal pela sua grandeza e pela sua glória". Nesse tempo, recorde-se, Eusébio já não marcava golos, a diva Amália tinha sido esquecida e até acusada de "fascista" e Manuel dos Santos, outro ídolo do povo, morrera três anos antes, em 1973, num trágico acidente de automóvel.

Esta reacção do Prof. Marcelo Caetano aos ecos que lhe chegavam de Espanha pela imprensa dando conta da glória de um novo toureiro português em Espanha, foi-me mais que uma vez contada e recordada por António Maria Zorro quando mais tarde regressou a Portugal e comigo trabalhou na Redação dos semanários "A Rua" e "O Diabo".

Meio século depois, foi tudo isso que me veio outra vez à memória quando no sábado assisti, com o maior entusiasmo, eu e os milhares de aficionados que preenchiam três quartos fortes da lotação da praça "José Elias Martins" de Portalegre, a maior enchente ali verificada nos últimos vinte anos. Estavam ali todos por um toureiro e por uma História: João Moura Júnior e a epopeia gloriosa iniciada há 50 anos por seu pai, o "niño prodígio" que revolucionou o toureio a cavalo.

Naquela tempo, era João Moura e os outros. E os outros eram muitos cavaleiros da sua geração, e das gerações anteriores, que eram todos muito bons. Mas ele estava uns anos luz à frente de todos, era o melhor.

Meio século depois, a História repete-se. Evoluiu. Talvez nada já seja igual. O contexto é diferente. O mundo é outro. Mas o nome é o mesmo. Meio século depois, continua a ser João Moura, agora o Júnior, e os outros. Como seu pai, João Moura Jr. posiciona-se hoje uns bons anos luz à frente de todo o pelotão. É, ou não lhe corresse nas veias o mesmo sangue e no coração e na alma a mesma raça, um toureiro de outra galáxia. Não tem nada a ver com os demais.

Em Portalegre, pela terceira vez nesta temporada que decidiu que haveria de ser diferente e especial, João Moura Jr. encerrou-se com seis toiros. Mas não foi com uns toiros quaisquer. Foi a sério, com três toiros de Veiga Teixeira e três de Murteira Grave. Nas duas encerronas anteriores, a primeira em Março em Santarém (mais de 9 mil espectadores!) e a segunda em Agosto na Ilha Terceira (lotação esgotada!), enfrentou toiros de Palha, Teixeira, Grave, Sorraia, Brito Paes e Romão Tenório e toiros de ganadarias açoreanas - em 18 toiros, lidou só um de encaste Murube!

Além destas três encerronas, Moura Júnior pautou a sua temporada especial por triunfos em todas as (poucas) praças em que actuou. Toureou um mano-a-mano com João Telles no Concurso de Ganadarias de Évora, esteve no Concurso de Alcochete, em Abiul e em Coruche em cartéis de três cavaleiros e ainda foi a França sair em ombros em Bayonne. Em oito corridas, saíu em ombros em quatro, três delas em Portugal (Santarém, Angra do Heroísmo e no sábado em Portalegre). Fica no ar uma incógnita: depois de uma temporada destas, o que se poderá fazer no próximo ano?

E aqui tenho que obrigatoriamente abrir um parêntesis para bater as palmas e tirar o chapéu a Francisco Mendonça Mira, o apoderado, o amigo, o responsável por esta estratégia - que resultou triunfal. E marcante.

Volto a Portalegre.

Quando um toureiro se anuncia sózinho com seis toiros, há sempre o receio de que a coisa se torne repetitiva. Mas isso não aconteceu em nenhuma das três encerronas de João Moura Jr. nesta temporada. Houve sempre variedade, diversidade, triunfos e diferença.

Sábado em Portalegre, sairam à arena seis toiros muito sérios, a transmitirem perigo e emoção, seis toiros de duas das mais touristas ganadarias nacionais, as de Veiga Teixeira e Murteira Grave

O toureiro não procurou a comodidade dos toirinhos fáceis, dos "nhoc-nhoc" bonzinhos e amáveis que trotam sem maldade e sem pinta de agressividade ao lado dos cavalos e param à espera que os mandem continuar, quando der jeito...

João Moura Jr. rubricou seis lides distintas, demonstrando ter argumentos de sobra e "artilharia de peso" (entenda-se: uma quadra de cavalos poderosa e magistral, que veio toda à arena nas cortesias, ao início do espectáculo) para fazer frente a todo e qualquer toiro, com a consistência, a confiança e a tranquilidade que exibiu, assim como se tudo aquilo que fez - e não se vê fazer todos os dias, por mais corridas a que possamos assistir - fosse a coisa mais fácil e mais simples deste mundo.

João Moura Jr. provou que está, na realidade, uns bons anos luz à frente do pelotão da frente, fruto de muito trabalho de casa, mas fruto, acima de tudo, de uma rara intuição, a mesma do predestinado seu pai, coisas que não se explicam, que se sentem, de muitos em muitos anos aparece um toureiro assim e este João está a consolidar-se e a marcar a História como "o novo", meio século depois da História que escreveu o primeiro.

O primeiro toiro, de Murteira Grave (485 quilos) - diga-se, com toda a justiça, que os seis toiros tinham apresentação inquestionável, sem pesos exagerados, como agora, infelizmente, parece estar na moda... - foi um toiro empenhado e que serviu, sem ter um comportamento por aí além. O segundo, de Veiga Teixeira (520 quilos) foi um toiro que impôs emoção, demonstrou perigo e marcou pela seriedade. O toiro da corrida, para mim, foi o terceiro, também de Veiga Teixeira (530 quilos), um toiro bravo e poderoso, com teclas e muita pata, daqueles que põem tudo e todos em sentido, mas Moura mostrou-lhe que ali quem mandava era ele, lide de grande emoção e permanente entusiasmo, com risco, com poderio e com enorme afirmação/consagração do toureiro. O director de corrida António Santos premiou o grande espectáculo que este toiro proporcionou com a volta à arena do ganadeiro, dada pelo maioral.

Depois de um curto intervalo, João Moura Jr. toureou mais dois toiros de Murteira Grave, quarto e quinto, tendo sido este último o melhor dos três que vieram da Herdade da Galeana. O quarto foi um bom toiro, mas algo reservado e de investidas não muito claras. O quinto foi um Grave no melhor tipo da ganadaria e Moura lidou ambos com a raça e a genialidade com que esteve a tarde toda, com paixão, com entrega, com sentimento e uma enorme confiança e serenidade, como se, repito, tudo o que tão bem fez fosse a coisa mais fácil deste mundo.

O director de corrida concedeu também aqui ao ganadeiro a volta à arena, mas Joaquim Grave agradeceu a honraria e as ovações do público, optando por ficar na sua barreira, provavelmente considerando, exigente e sério como é, que, apesar de tudo, não tinha sido um toiro (veio um pouco abaixo na fase final da lide) merecedor de volta à arena. No confronto ganadeiro, o triunfo de sábado coube a Veiga Teixeira, com três toiros de nota superior.

No sexto toiro, o último Veiga Teixeira, outro toiro de nota alta, Moura Jr. cravou os compridos e depois fez questão de repartir a lide com seu pai, alvo de uma estrondosa ovação quando entrou em praça, como o fora já quando o forcado Bernardo Bento, dos Amadores de Santarém, lhe fora brindar a quinta pega, no toiro anterior.

Pese embora a preocupante condição física - desculpa lá, João, mas não me canso de aqui pregar para que faças rapidamente uma dieta, necessária e urgente para teu bem e para evitar uma mais que eminente tragédia um dia destes... -, o Maestro recordou, meio século depois, que ainda se lembra. E bem. Três grandes ferros!

A corrida acabou com João Moura Jr. em ombros, como não podia deixar de ser, rodeado por toda a sua equipa e com o público de pé a aclamá-lo. Ainda houve uma tentativa de também levar o Maestro em ombros, quanto mais não fosse em nome da sua trajectória única e do facto de ter já três sucessores a marcar a continuidade da dinastia (João, Miguel, que no mesmo dia toureava em Moura, e o jovem Tomás, que acabou de fazer a prova de praticante e na próxima corrida será o quarto Moura a apresentar-se de casaca e tricórnio), mas João Moura esquivou-se, correndo a fugir em direcção à porta de saída, para que o triunfo fosse exclusivo de seu filho.

João Moura Jr. brindou a primeira lide ao público; a segunda ao Secretário de Estado da Agricultura, João Moura, que integrava a Comissão de Honra desta encerrona; aos empresários Samuel Silva e Jorge Dias (Toiros com Arte), adjudicatários da praça de Portalegre e promotores desta histórica corrida; ao seu colaborador Carlos Barreto, emblemática e dedicada figura da Casa Moura há mais de 50 anos; a toda a sua equipa, apoderado, bandarilheiros, moço de espadas, tratadores de cavalos; e brindou a última lide aos céus, em homenagem aos familiares já falecidos, entre os quais seu avô João Moura pai e seu tio Benito Moura.

Brilhante e discreta intervenção dos seis bandarilheiros que acompanharam Moura nesta tarde, havendo que registar e aplaudir o facto de os seis toiros terem sido todos recebidos pelo cavaleiro, com a agilidade das suas montadas como se de capotes se tratassem, sem recorrer aos coadjuvantes - que se empenharam em especial na colocação dos toiros para os forcados, pouco intervindo no decorrer das lides de Moura Júnior. Estiveram em praça, com a arte e a classe que os caracteriza, José Franco "Grenho", Duarte Alegrete, João Ganhão, Benito Moura, António Telles Bastos e o promissor José Maria Maldonado Cortes.

Nas pegas aos seis toiros que também aos forcados pediram contas, estiveram os Amadores de Santarém e os anfitriões de Portalegre, respectivamente capitaneados por Francisco Graciosa e Gonçalo Louro.

Por Santarém pegaram João Faro ao primeiro intento; José Carrilho e Francisco Paulos numa fabulosa e emotiva cernelha ao terceiro toiro da corrida, o melhor dos seus, de Veiga Teixeira, pega concretizada de modo magistral à segunda tentativa e que foi brindada ao antigo e recordado forcado José Carrilho, pai do cernelheiro; e Bernardo Bento, forcado da terra, com uma fortíssima falange de simpatizantes na bancada, que fez uma das duas pegas da tarde (a outra foi de um forcado do Grupo de Portalegre), brindada ao Maestro Moura e que contou com uma primeira-ajuda espectacular (como sempre!) do poderoso e eficiente Francisco Lopes, que o acompanhou na volta à arena. Destaque para o regresso de David Romão, que já se despedira, mas pelos vistos voltou, a rabejar - como nos tempos antigos.

Pelo excelente trabalho ao longo da tarde, os campinos foram muito meritoriamente chamados a também dar a volta à arena com os forcados (pega de cernelha) e com o cavaleiro no terceiro toiro.

Pelo grupo anfitrião pegaram Gonçalo Costa, ao quarto intento, que depois se despediu das arenas; Filipe Rodrigues (quarto toiro) à primeira tentativa, com uma grande pega, cheio de poderio e técnica, com os companheiros a ajudarem na perfeição; e Ricardo Almeida, na última pega da corrida, à terceira tentativa e depois de um momento de perigo motivado pelo facto de o toiro ter arrancado as tábuas da trincheira, só por sorte não entrando por ali dentro.

Houve brindes dos forcados dos dois grupos a João Moura Jr.; a José Carrilho, antigo e valoroso elemento do Grupo de Santarém, como já atrás se referiu; um outro brinde dos Amadores de Portalegre à Presidente da Câmara, Fermelinda Carvalho, e à Presidente da Junta de Freguesia, Raquel Carita; outro do Grupo de Santarém, por Bernardo Bento, ao Maestro João Moura: e o último, de Ricardo Almeida, do Grupo de Portalegre, aos empresários Samuel Silva e Jorge Dias.

Teve alguns pontos de polémica a direcção de corrida desempenhada pelo delegado eborense António Santos, mas se isso aconteceu, terá sido única e exclusivamente por excesso de zelo (e pouco bom senso) de quem assim o considerou e o acusou.

António Santos pecou apenas, no segundo toiro, por ter dado o dito por não dito e permitido que o forcado Gonçalo Costa, do Grupo de Portalegre, acabasse por dar duas voltas à arena, a primeira com Moura Júnior e a segunda sózinho depois de se despedir e entregar a jaqueta ao cabo, quando não tinha sequer colocado o lenço a autorizá-lo a pisar a arena...

Gonçalo Costa não esteve bem, de facto, frente ao segundo toiro da corrida, de Veiga Teixeira, nas quatro tentativas que fez para o pegar (concretizando na última), pelo que se entende (e se aplaude) a decisão do director de corrida de não lhe permitir dar a volta à arena. Houve depois grande petição do público, uma vez que (o director certamente era desconhecedor deste facto) Gonçalo Costa tinha feito, boa ou má, a sua derradeira pega e se despedia ali das arenas.

Face à petição popular - o povo é quem mais ordena... -, o director António Santos acabou por condescender e não se opôs a autorizar o que antes não tinha permitido: que o forcado acompanhasse o cavaleiro na volta à arena. Não veio daí nenhum mal ao mundo. E teria sido triste que um forcado tivesse deixado as arenas sem o destaque que o director acabou por autorizar a Gonçalo Costa. Há casos e casos. Este é preciso entendê-lo. Há coisas bem piores na nossa Festa a que ninguém liga...

O segundo caso (não caso, digo eu) da criticada actuação de António Santos diz respeito ao facto de ter concedido música a Moura Jr. numa das lides logo ao segundo ferro comprido (foi justíssimo e merecido, digo eu!) e, sobretudo, o facto de, no último toiro, ter mandado a Banda (que era a de Alter do Chão e teve um desempenho brilhante ao longo de toda a tarde) tocar quando ainda nem o toiro tinha entrado na arena. 

Foi um gesto de sentimento (também é preciso ter sentimento) do director e foi, sobretudo, um prémio de reconhecimento, justíssimo e merecido, repito, pela forma triunfal com que a tarde tinha corrido. Apoio a duzentos por cento o director António Santos. Também é preciso ter sentimento e aficion para estar sentado na cadeira do "inteligente". E António Santos provou ter esses atributos. Doa lá a quem doer, os meus aplausos ao director de corrida.

O director de corrida esteve assessorado pela médica veterinária Ana Gomes.

Ao início da corrida, a empresa Toiros com Arte homenageou João Moura Jr. e o Grupo de Forcados de Santarém (que comemora o 110º aniversário) e houve ainda outras homenagens ao cavaleiro, nomeadamente por parte de Fermelinda Carvalho, Presidente da Câmara de Portalegre, e de Raquel Carita, Presidente da Junta de Freguesia. Também o Grupo de Portalegre entregou uma lembrança ao Grupo de Santarém pela celebração dos seus 110 anos.

Resumindo e concluindo: foi uma das grandes corridas do ano. Só não foi a corrida do ano, porque houve outras importantíssimas que não podemos esquecer. Foi a tarde de consagração máxima de João Moura Júnior como a maior figura do toureio a cavalo deste novo século. 50 anos depois de seu pai. A cumprir a continuidade de uma História e de uma Revolução com meio século de muita Glória.

50 anos depois, há outra vez um João Moura na frente. E os outros. Quer dizer: passou meio século. Mas está tudo na mesma. 

Fotos M. Alvarenga e Enrique/D.R.