sexta-feira, 22 de julho de 2022

Campo Pequeno: uma noite para a História!

Miguel Alvarenga - Há praticamente um ano, desde a apoteótica corrida dos Moura, que o Campo Pequeno não tinha um ambiente tão caloroso, tão solene e tão taurino como aquele que ontem se viveu na Catedral naquela que era a primeira corrida da mais pequena temporada de todos os tempos na capital (quatro corridas apenas) e que, até à hora, constituía uma verdadeira caixinha de surpresas para todos nós. 

Se enchesse (encheu, estavam mais de três quartos da lotação preenchidos), seria uma importante vitória para a Tauromaquia, para Lisboa e, justiça seja feita, para o empresário Luis Miguel Pombeiro, que comeu o pão que o diabo amassou em dois anos complicadíssimos de pandemia - e já merecia uma noite assim!

Se não enchesse (as dúvidas eram mais que muitas), teria constituído uma machadada fatal na Festa e, sobretudo, no Campo Pequeno. Mas, graças a Deus, isso não aconteceu. Confesso que tive medo. Deste público e desta aficion, tudo é de esperar... Mas a realidade é que o público compareceu, entendeu a importância que tinha manifestarmos a nossa força e afirmarmos que o Campo Pequeno precisa de todos nós e todos nós precisamos do Campo Pequeno. Esta praça tem História, caramba! História que celebra este ano o seu 130º aniversário! Acreditei que não a íamos deixar cair, mas só fiquei tranquilo quando vi a praça cheia. Ver para crer, como o velho São Tomé!

Encheu porque era necessário e urgente encher. Mas encheu sobretudo porque o cartel era muito bom - se não fosse, não podíamos estar agora a culpar o público, mas somente o empresário, por um fracasso de bilheteira. É importante que se entenda: às grandes corridas com bons cartéis, os aficionados vão. Não atirem a culpa para cima do público quando não comparece por os elencos serem "mais do mesmo". Este não era.

Estavam em praça as três mais antigas dinastias do toureio a cavalo a nível mundial. E a corrida teve interesse por muitos motivos. Os "velhos" (velhos são os trapos, eles são apenas... antigos, veteranos), falo do António Telles e do João Salgueiro, mostraram que ainda aqui estão para as curvas. E os novos demonstraram que as dinastias têm continuidade e a Festa não acaba.

De apresentação irrepreensível, os toiros da ganadaria de António Raul Brito Paes colaboraram no triunfo de toureiros e forcados. Não foram toiros fáceis, foram toiros que pediram contas, que exigiram, que transmitiram emoção e que deram que fazer. Gostei menos do segundo, superiormente lidado pela maestria do António Telles, um toiro que parecia não servir e que o Maestro entendeu na perfeição - chama-se a isso sabedoria, experiência e suprema maestria - toureando-o como só ele sabe. O toiro veio a mais, cresceu graças à lide do Mestre dos Mestres. Uma actuação histórica, que começou com o António comovido no centro da arena e o público todo de pé, a Banda a tocar-lhe os Parabéns por nesta mesma noite comemorar 39 anos de alternativa, recebida nesta praça, das mãos de seu Pai, o eterno Mestre David. Uma actuação importantíssima! Das que nos enchem as medidas!

Menos bom, também, reservado, a complicar e a adiantar-se, foi o quinto, com o qual João Salgueiro da Costa esteve ousado e com a emoção de sempre, numa lide que chegou ao público pela verdade que ele impôs nas sortes, mas que se ficou algo além do seu melhor.

Os outros quatro toiros foram de nota alta. Talvez as demoradas tentativas para pegar o último toiro, que na recta final retiraram o fantástico ritmo que a corrida tinha tido, tivessem provocado o esquecimento da directora de corrida Lara Gregório de Oliveira de premiar o ganadeiro António Raul Brito Paes com a mais que merecida volta à arena...

Joaquim Brito Paes é um dos grandes casos da nova lufada de ar puro que chegou à Festa com a última geração de cavaleiros - e não tenho a mínima dúvida de que reúne todas as qualidades para chegar a primeira figura. Aposto tudo nele desde a primeira hora.

A noite da alternativa é sempre uma noite de nervos e Joaquim acusou o peso da responsabilidade - e da praça em que estava. Começou bem, com dois ferros compridos de valor e vistosos remates. Depois foi buscar o cavalo "Lume", a estrela dos "quiebros" e a praça explodiu com o primeiro e o segundo. Nesse momento, deveria ter trocado de cavalo e trazido o "Êxito", com que no fim cravou um fantástico ferro de frente, mas insistiu nos "quiebros" e os dois últimos já não tiveram o impacto dos primeiros. Digo-o como crítica construtiva. Mas nem por isso a sua alternativa deixou de ser triunfal. Força, Joaquim!

Já falei do Maestro António e da sua lide de sonho. Veio depois João Salgueiro, o génio que está de volta. A sua arte tem o mesmo sabor diferente de sempre. Marca. Empolga. Deita qualquer praça abaixo. O terceiro toiro tinha teclas, exigia. Salgueiro fez recordar o passado. Sóbrio, sereno, tranquilo como sempre, abriu o livro, mostrou como se toureia. E quando João abre o livro, tudo marca a diferença. Os "velhos" marcaram a noite. Disseram que ainda cá estão para as curvas. Para dar e durar!

António Maria Brito Paes não é propriamente um "velho". E ontem, no quarto toiro, que tinha investidas francas, deixou um ar da sua muita graça. Pode ter sido o último. Confessou-me no fim que ia deixar de tourear. Sem se retirar, continua para actuar em alguns festivais, mas esta pode ter sido a sua última lide numa corrida formal. Fica para trás a trajectória digna de um toureiro clássico a quem nem sempre as empresas deram a importância e reconheceram o valor que teve. Até já, António Maria!

O jovem António Telles teve uma estreia gloriosa no Campo Pequeno. Tem "gancho", como dizem nuestros hermanos, chega ao público, galvaniza - e toureia muitíssimo bem. Lide perfeita, com o toiro mais majestoso da corrida (660 quilos!), que transmitiu seriedade, teve mobilidade e raça e que António lidou e toureou como os maiores. António é um caso sério e está em momento de verdadeira ebulição, não há quem o trave e ainda sem alternativa (será para o ano!), já se tornou um fenómeno. Ontem em Lisboa somou pontos importantíssimos.

Da noite grande dos forcados de Montemor e de Lisboa já aqui disse tudo anteriormente. Forcados a sério são outra música!

Nota alta para todos os bandarilheiros que ontem coadjuvaram as lides dos seis cavaleiros, sem exageros de capotazos.

Todos os cavaleiros brindaram as suas lides ao jovem Joaquim, assim como o fizeram os dois grupos de forcados e entre a forcadagem houve brindes dos Amadores de Montemor a antigas glórias do grupo, como Carlos Pegado e Luis Borges e depois a Pedro Freixo.

Nota altíssima para a presença de destacados políticos, deputados nacionais e municipais, presidentes de Câmaras e de Juntas de Freguesia, representando o PS, o PSD, o CDS, o PCP e o Chega, unidos e a darem a cara em defesa da Tauromaquia. Os forcados de Lisboa brindaram a última pega aos que estavam no camarote vip com Hélder Milheiro, da Federação ProToiro, e o público levantou-se, tributando-lhe uma das maiores ovações da noite.

Lara Gregório de Oliveira, assessorada pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva, dirigiu a primeira corrida do ano em Lisboa com rigor e competência. Faltou o prémio da volta à arena ao ganadeiro, só isso.

Ao início da corrida, compreendeu-se mais ou menos... que a aparelhagem sonora do Campo Pequeno continua um caos, guardou-se um minuto de silêncio em memória de Carlos Serra, histórico forcado dos Amadores de Lisboa, falecido há dias. 

Podia-se ter evocado também o nome de outras saudosas personalidades que nos deixaram neste Inverno, casos do cavaleiro José Samuel Lupi, do jornalista Manuel Andrade Guerra, do também forcado Eurico Lampreia e de tantos mais. Tinha sido bonito. E merecido. Mas compreendo que a noite era de festa e que a vida continua. The show must go on!

Em suma, uma importantíssima jornada de enaltecimento da Tauromaquia, da importância da Catedral do Campo Pequeno, do fulgor da Festa. Um ambiente de sonho. Uma corrida que fica na História. A que nem faltou a intervenção de um anti-taurino com o corpinho pintado de frases provocatórias - desta vez não era o tal holandês... - que depressa foi retirado da arena por dois bandarilheiros e detido pela PSP para identificação. 

Fotos M. Alvarenga

Antonio Telles, cabeça de cartaz, pediu autorização à directora
de corrida e cedeu o ferro a António Maria Brito Paes para que
fosse ele a conceder a alternativa a seu irmão Joaquim. Momento
de emoção, com o jovem toureiro comovido, sendo depois 
saudado pelos restantes companheiros de cartel (fotos de
baixo), António Telles, João Salgueiro, João Salgueiro da
Costa e António Telles (filho)