José Francisco Barrinha da Cruz (fotografado por Miguel Alvarenga numa corrida na praça de Alcochete - em baixo), que ontem morreu aos 81 anos e no próximo sábado vai ser sepultado em Alcochete, onde nasceu, foi fundador dos Amadores de Alcochete em 1971, mas antes passou por outros grupos. A paixão pelos toiros vinha de miúdo, quando com apenas 9 anos assistiu pela primeira vez a uma corrida, a da despedida do célebre forcado Artur Garrett, na companhia de seu avô Valentim, que fora também afamado forcado de Alcochete. E foi mais tarde, com Artur Garrett, a sua maior referência, que muito aprendeu da arte dos toiros, como ele próprio conta neste texto que aqui publicamos - em jeito de homenagem - e que ele escreveu em 2019 na sua página da rede social Facebook. A história de José Barrinha da Cruz - contada por ele próprio.
A primeira corrida que vi como espectador foi a 12 de Outubro de 1950, tinha nove anos, pela mão do meu avô Valentim Barrinha, na despedida de Artur Garrett, e tourearam: Simão da Veiga Júnior, José Rosa Rodrigues e Manuel Conde a cavalo; Curro Caro, Carlos Arruza e Manuel dos Santos a pé. Pegaram o Grupo de Forcados Amadores de Santarém, tendo como cabo Ricardo Rhodes Sérgio e o Glorioso Grupo de Alcochete, comandados por Artur Garrett, sendo os toiros: 4 de Francisco Santos “Alfaiate” e 4 de José Pedrosa.
Foi com expectativa, entusiasmo, nervoso e sem saber o que ali ia acontecer, que o que me ficou na memória foi o voluntarismo de Simão da Veiga; o bandarilhar de Carlos Arruza; as três tentativas de Artur Garrett ao toiro que escolheu, e a saída em ombros de Carlos Arruza até a casa do seu compadre Artur Garrett. O resto, não me lembro.
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Artur Garrett com Carlos Arruza na corrida a que se refere José Barrinha |
Nesses tempos, a idade escolar era aos oito anos e, até aos doze - “chumbei” um -, só a Escola e jogar à bola (trapos) e largadas de toiros eram a minha preocupação.
Em 1954 fui para Lisboa e tive dois empregos; entrega de sapatos (paquete) e escriturário, estudando à noite na Escola Comercial e Industrial Patrício Prazeres até ao 4º ano comercial.
Com 18 anos, como não havia grupo de forcados amadores em Alcochete - só profissionais -, comecei a pegar nas largadas quando os toiros ainda eram “embolados”. Estes eram os meus treinos, só que de ano a ano.
Em 1960, por iniciativa de alguns aficionados locais, efectuavam-se garraiadas para a juventude e assim se formavam grupos de forcados sob a orientação de Gaspar Penetra (filho). Entretanto, vim a saber que o Eng. José Lupi - muito em segredo - treinava todas as semanas no “tentadero” da Barroca d’Alva - Alcochete. Assim, comecei a convidar os amigos com carro - conhecidos do Eng. - a ir até lá, e, não sendo forcados, sempre me ajudavam a sair da cara das vacas.
Fardei-me pela primeira vez a 7 de Maio de 1961 em Alcochete, cujo cartel era constituído por: José Samuel Lupi e José Barahona Núncio a cavalo (amadores); os novilheiros Litri II, António Galindo, Júlio Gomes e António do Carmo a pé; 4 toiros da Sociedade Agrícola de Rio Frio e 4 de José Joaquim da Silva Henriques, sendo os Forcados com o nome de Forcados Amadores de Alcochete, capitaneados por Gaspar Penetra (filho) que ia buscar alguns profissionais à Moita, Lisboa e V. F. Xira.
Em 1962, ainda fiz uma corrida pelo Grupo de Forcados do Alentejo, do qual também faziam parte mais dois alcochetanos. É neste ano, nos costumados treinos no Eng. Lupi, que, ao tentar pegar uma vaca, sofro uma “bolada” violenta que me parte duas costelas e me causa um pneumotórax no pulmão esquerdo, que me vai inutilizar até 1966. Infelizmente, em 1973, tive um acidente de viação do qual resultou outro pneumotórax no mesmo pulmão; fractura de quatro costelas, clavícula, omoplata, traumatismo craniano e oito dias em estado de coma.
Nada disto me impediu de voltar aos toiros em 1974. É nesse período - 1962 a 1966 - que tomo contacto quase que diário com dois homens que muito estimei e com quem muito aprendi; Manuel Alemão, peão de confiança de José Rosa Rodrigues e Artur Garrett, um dos maiores Forcados de sempre.
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José Barrinha em sua casa, no seu recanto taurino |
Devo dizer que na época de 1962 me fardei pelo Grupo de Forcados Amadores do Alentejo (com António Luís Penetra); em 1967 e 68 no Grupo Forcados da Tertúlia do Montijo; em 1969 e 1970 no Grupo Forcados do Aposento Barrete Verde de Alcochete, e em 1971 fui um dos fundadores dos Amadores de Alcochete, no qual me mantive até 1981.
É com Artur Garrett (nascido a 22 de Fevereiro de 1905 e falecido a 7 de Março de 1983), tanto nas mesas de café de Alcochete e Badajoz, como nas nossas viagens para o Campo Pequeno, ou ainda no Aposento do Barrete Verde de Alcochete, que começo a ficar atento a tudo que ele falava com os amigos, e o que me contava a sós.
Encantavam-me os seus conhecimentos e as "estórias" que contava. Elas deambulavam pelos seus cavaleiros preferidos, toureiros, toiros e antigos companheiros de tantos anos de forcado: António Mariano de Carvalho, Cabeça Ramos, Manuel Esteves, Manuel Matias “Leiteiro”, António Abreu, João Soeiro, Edmundo de Oliveira, Ricardo Rhodes Sérgio, Manuel Burrico, Fortunato Simões, José Luís Valentim, “Sequeirinha” e esse fabuloso cernelheiro – dizia-me - de nome António Rodrigues “Calmeirão”.
As peripécias por Casablanca (Marrocos), Santander, Funchal, Madrid, Nazaré e outras; as complicações com as viagens atribuladas; o conseguir agrupar oito homens de diversas localidades; os problemas com os empresários; os toiros “corridos” e com idade; o dinheiro a distribuir …eu sei lá!
Muitas vezes me lembro deste homem de excepcional valor, valentia e pundonor! Quando me deslocava com ele até ao Campo Pequeno - era uma coisa que me espantava -…retirado dos toiros há 16 anos, não havia ninguém que não o cumprimentasse. Sentados na velha Praça de San Juan, em Badajoz, nos anos sessenta, a saudação dos aficionados que passavam eram contínuas, deixando-me orgulhoso de estar sentado na mesa deste alcochetano de tanto valor e ainda reconhecido em qualquer lugar que estivesse! Sabia muito de toiros, quer a cavalo quer a pé! Todos os anos - enquanto fisicamente pôde – lá ia ele para as Feiras de Badajoz, Sevilha e Madrid!
Tinha para ele, como melhor cavaleiro do seu tempo, António Luís Lopes e admirava José Mestre Baptista. Contava-me que António Luís Lopes gostava de enfrentar toiros grandes - o que outros não faziam. Durante os anos que toureou, todo o seu toureio era de verdade; “cara a cara”, “poder a poder”, dando vantagens, aguentando, partindo para a “cara” dos toiros; não os temia, fossem grandes ou pequenos; entusiasmava; as bancadas deliravam com um toureio frontal, rectilíneo; não havia preciosismo e conservadorismo… era outra forma de tourear! Os cavaleiros têm que correr perigo, enfrentar, dar vantagens e não ter medo, porque sem isso, não há verdade. A corrida torna-se monótona e sem sabor… dizia-me.
José Barrinha da Cruz/2019