quinta-feira, 6 de abril de 2023

A história de José Barrinha da Cruz - contada por ele próprio

José Francisco Barrinha da Cruz (fotografado por Miguel Alvarenga numa corrida na praça de Alcochete - em baixo), que ontem morreu aos 81 anos e no próximo sábado vai ser sepultado em Alcochete, onde nasceu, foi fundador dos Amadores de Alcochete em 1971, mas antes passou por outros grupos. A paixão pelos toiros vinha de miúdo, quando com apenas 9 anos assistiu pela primeira vez a uma corrida, a da despedida do célebre forcado Artur Garrett, na companhia de seu avô Valentim, que fora também afamado forcado de Alcochete. E foi mais tarde, com Artur Garrett, a sua maior referência, que muito aprendeu da arte dos toiros, como ele próprio conta neste texto que aqui publicamos - em jeito de homenagem - e que ele escreveu em 2019 na sua página da rede social Facebook. A história de José Barrinha da Cruz - contada por ele próprio.

A primeira corrida que vi como espectador foi a 12 de Outubro de 1950, tinha nove anos, pela mão do meu avô Valentim Barrinha, na despedida de Artur Garrett, e tourearam: Simão da Veiga Júnior, José Rosa Rodrigues e Manuel Conde a cavalo; Curro Caro, Carlos Arruza e Manuel dos Santos a pé. Pegaram o Grupo de Forcados Amadores de Santarém, tendo como cabo Ricardo Rhodes Sérgio e o Glorioso Grupo de Alcochete, comandados por Artur Garrett, sendo os toiros: 4 de Francisco Santos “Alfaiate” e 4 de José Pedrosa.

Foi com expectativa, entusiasmo, nervoso e sem saber o que ali ia acontecer, que o que me ficou na memória foi o voluntarismo de Simão da Veiga; o bandarilhar de Carlos Arruza; as três tentativas de Artur Garrett ao toiro que escolheu, e a saída em ombros de Carlos Arruza até a casa do seu compadre Artur Garrett. O resto, não me lembro.

Artur Garrett com Carlos Arruza na
corrida a que se refere José Barrinha


Nesses tempos, a idade escolar era aos oito anos e, até aos doze - “chumbei” um -, só a Escola e jogar à bola (trapos) e largadas de toiros eram a minha preocupação.


Em 1954 fui para Lisboa e tive dois empregos; entrega de sapatos (paquete) e escriturário, estudando à noite na Escola Comercial e Industrial Patrício Prazeres até ao 4º ano comercial.


Com 18 anos, como não havia grupo de forcados amadores em Alcochete - só profissionais -, comecei a pegar nas largadas quando os toiros ainda eram “embolados”. Estes eram os meus treinos, só que de ano a ano.


Em 1960, por iniciativa de alguns aficionados locais, efectuavam-se garraiadas para a juventude e assim se formavam grupos de forcados sob a orientação de Gaspar Penetra (filho). Entretanto, vim a saber que o Eng. José Lupi - muito em segredo - treinava todas as semanas no “tentadero” da Barroca d’Alva - Alcochete. Assim, comecei a convidar os amigos com carro - conhecidos do Eng. - a ir até lá, e, não sendo forcados, sempre me ajudavam a sair da cara das vacas.


Fardei-me pela primeira vez a 7 de Maio de 1961 em Alcochete, cujo cartel era constituído por: José Samuel Lupi e José Barahona Núncio a cavalo (amadores); os novilheiros Litri II, António Galindo, Júlio Gomes e António do Carmo a pé; 4 toiros da Sociedade Agrícola de Rio Frio e 4 de José Joaquim da Silva Henriques, sendo os Forcados com o nome de Forcados Amadores de Alcochete, capitaneados por Gaspar Penetra (filho) que ia buscar alguns profissionais à Moita, Lisboa e V. F. Xira


Em 1962, ainda fiz uma corrida pelo Grupo de Forcados do Alentejo, do qual também faziam parte mais dois alcochetanos. É neste ano, nos costumados treinos no Eng. Lupi, que, ao tentar pegar uma vaca, sofro uma “bolada” violenta que me parte duas costelas e me causa um pneumotórax no pulmão esquerdo, que me vai inutilizar até 1966. Infelizmente, em 1973, tive um acidente de viação do qual resultou outro pneumotórax no mesmo pulmão; fractura de quatro costelas, clavícula, omoplata, traumatismo craniano e oito dias em estado de coma. 


Nada disto me impediu de voltar aos toiros em 1974. É nesse período - 1962 a 1966 - que tomo contacto quase que diário com dois homens que muito estimei e com quem muito aprendi; Manuel Alemão, peão de confiança de José Rosa Rodrigues e Artur Garrett, um dos maiores Forcados de sempre.


José Barrinha em sua casa, no seu recanto taurino


Devo dizer que na época de 1962 me fardei pelo Grupo de Forcados Amadores do Alentejo (com António Luís Penetra); em 1967 e 68 no Grupo Forcados da Tertúlia do Montijo; em 1969 e 1970 no Grupo Forcados do Aposento Barrete Verde de Alcochete, e em 1971 fui um dos fundadores dos Amadores de Alcochete, no qual me mantive até 1981.


É com Artur Garrett (nascido a 22 de Fevereiro de 1905 e falecido a 7 de Março de 1983), tanto nas mesas de café de Alcochete e Badajoz, como nas nossas viagens para o Campo Pequeno, ou ainda no Aposento do Barrete Verde de Alcochete, que começo a ficar atento a tudo que ele falava com os amigos, e o que me contava a sós.


Encantavam-me os seus conhecimentos e as "estórias" que contava. Elas deambulavam pelos seus cavaleiros preferidos, toureiros, toiros e antigos companheiros de tantos anos de forcado: António Mariano de Carvalho, Cabeça Ramos, Manuel Esteves, Manuel Matias “Leiteiro”, António Abreu, João Soeiro, Edmundo de Oliveira, Ricardo Rhodes Sérgio, Manuel Burrico, Fortunato Simões, José Luís Valentim, “Sequeirinha” e esse fabuloso cernelheiro – dizia-me - de nome António Rodrigues “Calmeirão”


As peripécias por Casablanca (Marrocos), Santander, Funchal, Madrid, Nazaré e outras; as complicações com as viagens atribuladas; o conseguir agrupar oito homens de diversas localidades; os problemas com os empresários; os toiros “corridos” e com idade; o dinheiro a distribuir …eu sei lá!


Muitas vezes me lembro deste homem de excepcional valor, valentia e pundonor! Quando me deslocava com ele até ao Campo Pequeno - era uma coisa que me espantava -…retirado dos toiros há 16 anos, não havia ninguém que não o cumprimentasse. Sentados na velha Praça de San Juan, em Badajoz, nos anos sessenta, a saudação dos aficionados que passavam eram contínuas, deixando-me orgulhoso de estar sentado na mesa deste alcochetano de tanto valor e ainda reconhecido em qualquer lugar que estivesse! Sabia muito de toiros, quer a cavalo quer a pé! Todos os anos - enquanto fisicamente pôde – lá ia ele para as Feiras de Badajoz, Sevilha e Madrid!


Tinha para ele, como melhor cavaleiro do seu tempo, António Luís Lopes e admirava José Mestre Baptista. Contava-me que António Luís Lopes gostava de enfrentar toiros grandes - o que outros não faziam. Durante os anos que toureou, todo o seu toureio era de verdade; “cara a cara”, “poder a poder”, dando vantagens, aguentando, partindo para a “cara” dos toiros; não os temia, fossem grandes ou pequenos; entusiasmava; as bancadas deliravam com um toureio frontal, rectilíneo; não havia preciosismo e conservadorismo… era outra forma de tourear! Os cavaleiros têm que correr perigo, enfrentar, dar vantagens e não ter medo, porque sem isso, não há verdade. A corrida torna-se monótona e sem sabor… dizia-me.


José Barrinha da Cruz/2019