domingo, 24 de outubro de 2021

Tão simples como isto: Obrigado, genial Morante!

Miguel Alvarenga - A fina flor da afición portuguesa encheu ontem a incómoda praça da Chamusca (disso falarei mais adiante...) numa tarde de enorme ambiente e de grandes explosões de arte no que ao toureio a pé diz respeito. Um festival de Figuras em homenagem póstuma a um Figurão da nossa Festa, o sempre lembrado Ricardo Chibanga - que merecia este tributo e muito mais.

Obrigado, Morante de la Puebla. Obrigado, Pedro Marques. E obrigado, Nuno Castelão, ilustre provedor da Santa Casa da Misericórdia da Chamusca - pela homenagem que em boa hora fizeram ao eterno Chibanga. Pelo cartel monstro de primeiras Figuras que ontem trouxeram à centenária praça da Chamusca. Digno de qualquer primeira praça de toiros do mundo.

O público correspondeu, dando a prova de que aos grandes elencos os aficionados vão. Ao "mais do mesmo" já começam a não ir. E mais: o público aficionado deste país é, ainda e sempre, o melhor do mundo. Sujeita-se a estar três horas, como ontem todos estiveram, incomodamente acomodados numas bancadas centenárias dos tempos dos Flinstones, sem as mínimas condições de comodidade, atabalhoados uns em cima dos outros, quando em pleno século XXI se impõe que uma sala de espectáculos nos proporcione outro bem estar. A tauromaquia precisa urgentemente de se renovar, de se modernizar. Parou nos tempos. Ficou cem anos atrás...

Se calhar, há cem anos, as pessoas eram mais pequenas, acomodavam-se melhor naquelas incómodas bancadas de pedra. Hoje é verdadeiramente impossível aguentar. Estive três horas numa terceira fila com o saco das máquinas fotográficas ao colo (não havia lugar onde coubesse), com os joelhos em cima das costas do senhor da frente e com uma simpática espectadora atrás, que de quando em vez chegava as pernas para o lado e me dizia educadamente que se quisesse me podia encostar à pedra para poder trabalhar (fotografar) em melhores condições. Nunca fiz numa praça de toiros uma reportagem em condições tão adversas. Senti-me mais ou menos um repórter de guerra...

Não se ofendam, mas se me permitem uma boa sugestão: deitem esta praça abaixo e façam uma nova. Assim é que não... credo, cruzes, canhoto! Nestas condições, nunca mais lá me apanham!

Há muito tempo que não estava na centenária praça da Chamusca com a lotação praticamente esgotada, como ontem se verificou. Ainda bem que isso aconteceu, para bem da Festa e das causas que ontem ali se homenageavam e defendiam (a causa Chibanga e a causa Santa Casa, a favor da qual revertia a receita do espectáculo). Mas, ainda mal para todos nós... já com saudades das regras da pandemia em que não era permitido utilizar mais que metade da lotação e estávamos todos mais à vontade sentadinhos... Adiante.

A tarde valeu pelos matadores e pela sublime arte do bom toureio a pé que os quatro tão bem interpretaram. Tarde de magia perfeita. Que valeu mesmo a pena. E depois do que vi fazerem os matadores, quase nem dei - e já esqueci - pelas condições assustadoras e arreliantemente pré-históricas daquele incómodo tauródromo...

No que ao toureio a cavalo diz respeito e uma vez que estamos (ainda estaremos?) na chamada Pátria do Toureio Equestre, tinha sido importante que se tivesse cuidado melhor dessa tão importante vertente da nossa tauromaquia, trazendo, pelo menos, uns novilhos mais apresentáveis, com um bocadinho mais de presença e trapio, que transmitissem ao menos alguma coisa e dessem maior importância ao labor dos três cavaleiros.

João Ribeiro Telles, um dos primeiros desta temporada, lidou com a classe e a ousadia do costume um novilho-toiro de Passanha de boa qualidade, mas sem presença, sobretudo (como aconteceu com os outros dois lidados a cavalo) se tivermos em conta que logo a seguir saíu para Morante um novilho-toiro corpulento, muito bem apresentado, superior a qualquer um dos outros, do ganadeiro Manuel Veiga - que fez a diferença e acabou por impor seriedade e verdade às faenas dos matadores e apagar o brilho do labor dos cavaleiros.

Tristão Ribeiro Telles Guedes de Queiroz é a nova estrela da ilustríssima dinastia Ribeiro Telles. Vai progredindo e apontando rumo triunfal de tarde em tarde. Ontem voltou a estar aguerrido, artista e à procura do triunfo. Lidou outro novilho de escassa apresentação da ganadaria Rosa Rodrigues, mas que tinha qualidade e investia com clareza.

O amador Vasco Veiga, que no último festival realizado na Chamusca ombreou com Figuras toureando a pé (e bem), deu ontem excelente nota da sua nova faceta como cavaleiro. Tem noção de lide, procura fazer o toureio de verdade, monta bem, esteve desenvolto e disse que pode andar. Pena que tivesse trazido um novilhote da casa tão insignificantemente pequenito, que retirou todo o brilho à lide e até o fez falhar um ferro (pouca carne onde acertar...). Podia e devia ter marcado esta sua estreia entre os seus com um bocado mais de verdade e seriedade, quer isto dizer, com um novilho mais apresentável. Estávamos num festival de grande categoria, não estávamos numa garraiada de liceu...

Dos forcados, Amadores e Aposento da Chamusca, já aqui falei detalhadamente esta madrugada. Três pegas sem dificuldades de maior frente a novilhos que não assustavam ninguém.

Em suma, o toureio a cavalo - à portuguesa - não teve ontem a importância que lhe deviam ter dado e que se impunha que tivesse tido num festejo de tão alto caibre e com a presença de três grandes Figuras do toureio mundial. A importância, ontem, foi apenas e só do toureio a pé. Ganhou Espanha por 4 a 0, embora um dos matadores fosse lusitano. 

Morante de la Puebla deu um verdadeiro recital de magia e arte frente a um bom novilho-toiro (mais toiro que novilho) de Manuel Veiga, que recebeu com cingidas e pausadas "verónicas" ao ralenti e a que desenhou depois bonitas e arrimadas "chicuelinas" com a arte e a maestria com que preenche sempre os tércios de capote. Maravilha!

Brindou a sua actuação de muleta a Anete Chibanga e seu filho Ricardo e a seguir abriu o livro. Deixou na arena - embelezada com areia (albero) da Maestranza de Sevilha (já que não se modernizam as bancadas, modernizou-se o ruedo, valha-nos isso!) - autênticas pinturas de toureio genial numa faena de bom gosto e tremenda maestria, levando o novilho embebido na magia da sua muleta, do seu talento e da sua alma.

Rei da temporada em Espanha, em ano de máxima consagração, Morante não só se empenhou a fundo na organização deste festival e nesta homenagem ao matador moçambicano que tanto admirava, como ainda nos brindou a todos com uma tarde empolgante, uma obra magistral e um toureio que só conseguem desenhar os eleitos. Génio!

De Granada veio o poderoso David Fandilla "El Fandi" para enfrentar um novilho nobre da ganadaria da Casa Matilla (García Jiménez) que foi o que durou mais tempo e permitiu ao valoroso matador espanhol realizar uma diversificada e bem bonita faena de muleta, com arte, domínio e temple - que brindou ao ilustre ganadeiro Manuel Tavares Veiga. Antes, recebera o novilho com clássicas "verónicas", bonitas "chicuelinas" e artísticas "tafalleras", galvanizando depois o público com o seu reconhecido e sempre aplaudido poderio com as bandarilhas, tércio de que é um dos maiores intérpretes dos últimos tempos.

Se calhar nem todos entenderam o valor, a maestria e a sabedoria que o grande José Maria Manzanares impôs na lide do mais complicado dos novilhos de ontem, também de García Jiménez, que procurava a figura, metia-se barbaramente pela direita e pela esquerda soltava demasiado a cara e era curto de investidas.

Manzanares apercebeu-se das dificuldades que tinha por diante desde o primeiro momento. Ficou-se por um empenhado quite de capote por "verónicas" e depois, com a muleta, obrigou e ensinou o toiro a investir, evidenciando as suas tremendas qualidades de grande lidador e demonstrando toda a maestria da sua arte, todo o ofício e sabedoria que dele fizeram um digno continuador dessa História de Glória escrita por seu Pai e o tornaram uma das maiores e mais consistentes Figuras do toureio mundial dos últimos anos. A disposição e a entrega de Manzanares, corrigindo e tapando todos os defeitos do novilho, constituiram um verdadeiro hino à arte e ao valor do bom toureio a pé. Figurão!

Por fim toureou o nosso "Juanito", o jovem matador que está a levar a aficion lusa a entregar-se outra vez ao toureio a pé. Depois dos triunfos e dos importantes passos em frente que deu este ano nas praças de Lisboa, da Moita e de Vila Franca (onde se encerrou com seis toiros), mas também e muito em especial nas grandes tardes que protagonizou em cartéis de Figuras no país vizinho, "Juanito" não acusou ontem minimamente - não é Homem, nem Toureiro para se intimidar com nada! - o peso e a responsabilidade de estar a actuar ao lado de três gigantes do toureio mundial. Pelo contrário.

Esteve variado e artista com o capote frente ao novilho de Manuel Calejo Pires, nobre, com cara e apresentação, mas de investidas curtas e que o colheu por duas vezes de forma aparatosa na faena de muleta. "Juanito" jamais virou a cara, esteve decidido e valente, com rasgos de tremendismo que entusiasmaram o público e demonstraram todo o seu querer e toda a sua ânsia de triunfar. 

Meteu-se entre os pitons do novilho, obrigando-o a investir, sacou passes de muito sentimento e arte, desenhou uma faena variada e poderosa, reafirmando a consistência e o momento alto que está a viver. Brindou a faena ao ganadero espanhol Álvaro Nuñez Benjumea, proprietário da afamada ganadaria Nuñez del Cuvillo. Fechou a sua temporada de consagração em grande e a deixar as maiores e mais justificadas expectativas para a próxima. Temos em Portugal um ídolo novo!

Uns melhor, outros pior, os bandarilheiros de Morante, de Manzanares e de "Juanito" cumpriram com acerto os tércios de bandarilhas.

Ao início do festival - ainda com muito público na rua, fruto das infindáveis filas que se registaram para levantar os ingressos nas duas bilheteiras da centenária praça... - foi guardado um respeitoso minuto de silêncio em memória dos ganadeiros José Luis Dias e José Infante da Câmara (falecido inesperadamente ontem de manhã, vítima de ataque cardíaco) e também de João Pedro Oliveira, antigo e recordado forcado, ex-cabo dos Amadores de Évora.

Manuel Gama dirigiu com o costumeiro acerto o festival, só não se percebendo as razões por que, alegando as (já alteradas) normas da DGS, não permitiu aos toureiros que dessem voltas à arena. O público protestou com uma vaia monumental. Que eu saiba (posso estar enganado), isso já foi tudo alterado. As praças já podem estar a 100%. Já se podem fazer as cortesias, já podem estar (como ontem estavam alguns) muitos curiosos entre tábuas, que não estão ali a fazer nadinha. E já se podem também dar voltas à arena - o que, aliás, já aconteceu em corridas anteriores. Talvez a IGAC ainda não tivesse informado Manuel Gama disso...

O diligente director de corrida esteve ontem assessorado pelo reputado médico veterinário José Luis Cruz e o cornetim foi o nosso sempre admirado e aplaudido José Henriques.

Marcou presença na corrida o aficionado presidente da Câmara da Chamusca, Paulo Queimado. E assistiu ao festejo, acompanhado por sua Mulher, incógnito na bancada, o líder do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos. O único dirigente partidário, repito, que tem dado a cara pela arte tauromáquica sem qualquer complexos e que este ano tem marcado presença em várias corridas de toiros. Louvável. Saibamos agradecer-lhe.

E é tudo de uma tarde que marcou - marcou mesmo! - esta temporada, sobretudo no que diz respeito ao toureio a pé. 

Resumindo e concluindo, tão simples como isto: Obrigado, genial Morante, pelo empenho, pelo carinho e pelo esforço com que deitaste mãos à obra e fizeste o que os nossos não tinham ainda feito - honrar e homenagear a memória de um Toureiro único e que marcou a nossa História. Olé, Maestro Chibanga!

Fotos M. Alvarenga

Tarde grande, praça à cunha! Público extraordinário e selecto.
Aguentou três horas de incomodidade, atabalhoado numas
bancadas centenárias do tempo dos Flinstones...

Anete Chibanga: a felicidade de ver tão bem honrada a memória
de seu querido e saudoso Pai
"Monstros" do toureio mundial ontem na Chamusca
O bem apresentado e bom novilho de Manuel Veiga que saíu
em quarto lugar para Morante fez a diferença em relação aos
três pequenos novilhos lidados pelos cavaleiros e acabou por
retirar importância ao labor e à entrega dos três ginetes
A arte sublime do genial Morante numa faena de magia
O valor e o poderio do enorme "El Fandi"
Maestria, sabedoria e técnica na faena magistral de José 
Maria Manzanares
Valorosa e diversificada faena de "Juanito", que fechou ontem
com chave de ouro a sua temporada de consagração