Miguel Alvarenga - Lembro-me muito bem de Maria Manuel Cid, de quem fui e sou grande admirador, lembro-me da tarde em que a entrevistei em Lisboa para "O Diabo" (é desse momento uma das mais célebres fotos da Tia Mimela que normalmente aparecem publicadas), lembro-me de a ver sempre nas praças na companhia do seu amigo (e meu) inseparável Manuel Tecedeiro, admiro a sua sensibilidade poética, os muitos fados que escreveu, o patriotismo que deles irradiava e a coragem com que defendeu, nos anos difíceis, "este país dado às feras, carrossel de medíocres" em fados como o "Nunca mais darei um cravo" e "Mestre Núncio", o "profeta que o mundo crucificou".
Foi por isso, foi pela Tia Mimela, mas também pelo atractivo cartel de seis bons cavaleiros e três grandes grupos de forcado, e pela expectativa das prometidas emoções que sempre proporcionam os sérios toiros de Prudêncio, que ontem à noite estive na Chamusca. Gostava de ter estado em Évora, de ter estado no Cartaxo, de ter ido apoiar a juventude e os Forcados a Alcochete. Mas ainda não consegui ter o dom de estar em muitos sítios ao mesmo tempo... e os senhores empresários continuam, desvairados, a montar corridas no mesmo dia e à mesma hora...
Foi bonita e foi emotiva a homenagem que a empresa (José Luis Gomes) e o público prestaram ontem à memória de Maria Manuel Cid. Ao início e antes das cortesias, desceram à arena seus filhos Vasco e Ana e também seu neto Bernardo (em representação de sua Mãe, Maria do Amparo, já falecida), que receberam as homenagens e as lembranças do empresário, do presidente da Câmara, Paulo Queimado, da Santa Casa da Misericórdia (que também era ontem homenageada pelo seu 400º aniversário) e dos cabos dos três grupos de forcados actuastes.
Ao longo da corrida, o Fado marcou presença com guitarradas (alternadas de toiro em toiro com a Banda Filarmónica da Carregueira) pelos músicos João Vaz e João Chora, a acompanhar as lides dos cavaleiros. E ao intervalo, João Chora e Marisa Ferreira cantaram - e cantaram muitíssimo bem! - poemas da Tia Mimela. Foi bonito e há que louvar a iniciativa do empresário por esta (eterna) associação do Fado aos Toiros.
Artisticamente, assistimos (os que preenchiam ontem cerca de metade da lotação da centenária praça ribatejana) a uma grande corrida de toiros. De toiros, digo. Seriedade, emoção, risco e verdade foi o que marcou ontem a corrida, com toiros exigentes e que pediam contas - da ganadaria Prudêncio. À excepção do quarto, que coube em azar a Salgueiro da Costa e foi um andarilho, solto, que nunca parou, parecia o coelho das pilhas Duracell, os toiros deram bom jogo, dois foram bravos (terceiro e sexto) e o ganadeiro João Santos Andrade foi premiado com justíssimas e aclamadas voltas à arena em ambos - e os restantes tiveram qualidade e impuseram respeito, dando água pela barba, sobretudo, aos valentes forcados dos grupos de Lisboa e dos dois da Chamusca, Amadores e Aposento. Rijas pegas, como já aqui ficou referido anteriormente em pormenor.
Podia ter dado à crónica outro título. Joaquim Brito Paes não foi o único triunfador da noite. Mas é um jovem em ebulição, está a menos de um mês da alternativa (21 de Julho na primeira corrida do Campo Pequeno) e merece este destaque - pelo valor que tem, pelo caso em que se está a transformar, pelas atenções que está a chamar, a histórica dinastia Brito Paes tem evoluído em grande de geração em geração, mas sobretudo pelos três ferros de parar o trânsito, com o magnífico cavalo "Lume", com que deixou tudo e todos em verdadeiro alvoroço!
O jovem Joaquim esteve simplesmente enorme! Frente a um toiro codicioso e de excelente nota, sério, a "meter mudanças" e a pedir contas, o novo Brito Paes reafirmou as suas muitas qualidades de toureiro e de bom lidador. Parabéns, Toureiro!
A corrida começou com uma lide extraordinária, de classe, de maestria, de bom gosto, do Maestro António Ribeiro Telles, frente a um toiro sério de Prudêncio, bem apresentado como todos os outros, naquela que foi a sua terceira actuação depois de ter estado quase um ano parado em virtude da grave colhida que sofreu em Agosto em Reguengos. Totalmente recuperado e outra vez esplendoroso, o Mestre dos Mestres continua a marcar eternamente a diferença. Como o fez ontem na Chamusca. Olé, Grande António! Assim se toureia!
Rui Salvador vive uma temporada de máxima consagração, e está como o Vinho do Porto, quanto mais velho, melhor! Enfrentou em terceiro lugar outro Prudêncio duro, este mais complicado e maior (620 quilos), templando as investidas, recriando-se em momentos de extraordinária brega, cravando a ferragem com a verdade e a emoção que sempre o caracterizaram. Lide de Maestro!
Duarte Pinto protagonizou ontem, no terceiro toiro, bravo, excelente, a que ele próprio bateu palmas, parado no centro da arena, no final da lide, num gesto de grandeza e humildade, uma actuação completa, rematada, perfeita - e verdadeiramente empolgante. Poderá mesmo dizer-se que foi, no contexto geral, o grande triunfador da noite.
Duarte aproveitou com inteligência e saber as excelentes qualidades e as francas e carregadas investidas do belíssimo Prudêncio, que se arrancava de todos os terrenos, para realizar uma lide em que tudo foi perfeito, tudo foi bem feito e em que houve, acima de tudo, toureio de verdade, toureiro de risco, toureio de emoção e de muita inspiração. Uma actuação para recordar e que a todos encheu as medidas. O ganadeiro João Santos Andrade foi, muito merecidamente, honrado pelo director de corrida Marco Gomes a acompanhar Duarte Pinto e o forcado numa aplaudida volta à arena.
João Salgueiro da Costa, que vinha de um triunfo importante na véspera em Coruche, teve ontem o azar (acontece aos melhores!) de lhe calhar a fava da corrida. Atravessa um grande momento, deu há três temporadas, finalmente, o salto para a ribalta que andava há anos a prometer e ontem esteve na Chamusca com as ganas de sempre, arriscando ao máximo, pisando a linha de fogo. Mas...
O toiro era um verdadeiro andarilho, como referi, parecia o coelho das pilhas Duracell, solto, nunca se fixou, nunca parou e também nunca se cansou. Incrível! Salgueirinho fez os possíveis e os impossíveis, teve dois ferros curtos de grande emoção, mas com aquele toiro não era possível fazer muito mais. No final, não deu volta à arena.
Em último lugar e depois da lide triunfal de Brito Paes no quinto toiro da corrida, chegou António Ribeiro Telles (filho) para enfrentar outro "toirão" com 590 quilos, bravo, a não facilitar nada, daqueles que exigem o bilhete de identidade aos toureiros e que põem tudo "no seu sítio". Mas António já tem o seu próprio sítio marcado, é um toureiro de muita classe e já com enorme maturidade, sabe o que faz, sabe o que quer e para onde vai. E vai longe, digo-o há algum tempo. Lide esforçada, empenhada, a reafirmar todo o potencial deste novo Ribeiro Telles - que o vai levar bem longe e depressa. António está um "toureirão", com raça, com casta, com saber e com aquele toque de classe que é apanágio dos seus. Lide importante, triunfo sonante. E no final, de novo em praça ganadeiro João Santos Andrade para dar mais uma merecida volta à arena com António e João Saraiva, o forcado triunfador da noite.
E foi assim que vi e vivi a grande corrida de ontem na Chamusca. Valeu a pena ter ido. Um aplauso especial para todos os bandarilheiros intervenientes, para os forcados - que já aqui distingui e enalteci como se impunha -, para os fadistas, para o ganadeiro e também para a excelente a aficionada direcção de corrida protagonizada pelo rigoroso Marco Gomes, que ontem esteve assessorado pelo competente médico veterinário José Luis da Cruz, tendo os toques sido da responsabilidade de José Henriques, o rei dos nossos cornetins.
Ao início da corridas foi guardado um respeitoso minuto de silêncio em memória de Maria Manuel Cid e também de Evaristo Cutileiro, forcado da fundação dos Amadores de Évora, que nos deixou na madrugada de ontem.
Aplausos também para o empresário José Luis Gomes, pela sensibilidade e ousadia que teve de montar uma corrida "fora de data", como agora se costuma dizer - como se fosse preciso haver datas para realizar grandes acontecimentos... Júlio Iglésias enche os palcos onde actua e alguma vez houve uma data tradicional para que ele viesse cantar entre nós?... -, homenageando a grande poetisa Maria Manuel Cid. Lembrança merecida.
Foto M. Alvarenga
Já a seguir, não perca os melhores momentos das lides dos seis cavaleiros.