sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Lisboa: a magia de Morante, a entrega de Bastinhas e a cátedra de Palha numa noite para não esquecer mais

Miguel Alvarenga - Na temporada dos 25 anos de alternativa, das 100 corridas e depois de dois anos de pandemia em que marcou a diferença e elevou ao mais alto nível a Tauromaquia como manifestação cultural ibérica de relevante importância, Morante de la Puebla veio ontem ao Campo Pequeno demonstrar por que é, na realidade, o maior génio do toureio a pé actual.

A praça engalanou-se de gente bonita e de muitas figuras públicas e do mundo cultural naquela que era a terceira corrida de uma temporada meio atípica e estranha, só com quatro festejos (que muitos interpretam como uma real ameaça à continuidade da Festa na capital - e pode sê-lo). Corrida da Cultura e corrida comemorativa do 130º aniversário da inauguração da Catedral. Corrida histórica, portanto. E os toureiros assim a fizeram. Foi mesmo uma noite histórica.

O público recebeu Morante com carinho e reconhecimento pela sua inigualável figura. Sorriso simples, simpático, o toureiro andaluz correspondeu e encantou Lisboa na noite de ontem com duas faenas de sonho onde a arte, o temple, o mando e o poderio com que transforma o difícil em fácil foram as tónicas dominantes.

Enfrentou dois toiros diferentes da ganadaria espanhola Nuñez del Cuvillo, que apesar de afeitados (a lei portuguesa assim o obriga) e sem sorte de varas, tinham apresentação e presença irrepreensíveis.

Ao primeiro, rapidamente ensinou a investir no seu capote mágico, brilhando em artísticas verónicas e cingidas chicuelinas - que foram desde logo o mote para o que a seguir viria a acontecer com a muleta.

Morante encantou tudo e todos com uma faena de técnica brilhante - brindada ao empresário Luis Miguel Pombeiro -, tudo parecia fácil, postura de Maestro, pés parados, séries pelos dois lados que mais pareciam pinturas de cartaz. Uma faena de sonho que encheu as medidas a todos. 

O sexto e último toiro da noite, outro Nuñez de Cuvillo de bonita presença, foi um toiro reservado, de investidas tardas, que não se fixou no capote, foi bem bandarilhado pela quadrilha do Maestro e com o qual Morante reafirmou o seu profissionalismo exemplar e o seu muito respeito pelo público. O toiro jamais se entregou, mas entregou-se Morantearrimando-se que nem um leão, sacando os passes que o oponente não tinha, "inventando" uma faena que provavelmente muitos toureiros teriam rapidamente abreviado. 

Morante esteve lá, não deu tréguas ao manso de Cuvillo, obrigou-o e ensinou-o a investir na muleta, acabou desenhando uma faena memorável, como se o toiro fosse bom. Chama-se a isso experiência, saber, técnica, pundonor. E, acima de tudo, chama-se a isso elevado profissionalismo e muito respeito pelo público. Estão aqui para me ver, vão-me ver. Um toureiro que não chegou ao trono por acaso. Ontem, Morante deixou bem claro por que é, na realidade, o génio maior do toureio a pé na actualidade. E um dos maiores de sempre!

A cavalo lidaram-se toiros de Canas Vigouroux com 600 quilos, muito bem apresentados, exigentes, a pedir contas. Melhores os dois que tocaram a Francisco Palha, mais complicados os dois de Marcos Bastinhas. E bastará dizer que os forcados de Santarém, que são os forcados de Santarém, apenas e só um dos nossos melhores grupos, não pegaram nenhum deles à primeira.

Marcos Bastinhas não foi, de facto, bafejado pela sorte com o seu lote. As suas duas actuações foram pautadas pela muita entrega, pisando terrenos de risco, fazendo das tripas coração para alcançar o triunfo. Vinha disposto a isso, como vem sempre.

Ao primeiro cravou dois compridos de muito boa nota, a deixar-se ver, a dar a prioridade ao oponente, de praça a praça, com a verdade e a emoção que são apanágios do seu toureio e da forma alegre, vibrante e comunicativa com que interpreta a arte, com a garra que lhe vai na alma e que herdou daquele que foi uma das maiores e mais marcantes figuras do toureio equestre.

Nos curtos, houve emoção, houve verdade e houve muito querer por parte do cavaleiro de Elvas. O público entregou-se a Marcos. E Marcos entregou-se ao público, como sempre. Terminou com um arrojado par de bandarilhas, o salto habitual para a arena e a praça de pé.

O quarto toiro não lhe deu as melhores opções e se a actuação resultou emotiva, mas sem o brilhantismo que ele queria (pela escassa qualidade do oponente), isso só foi possível pela muita entrega e pela grande disposição com que Bastinhas veio ontem a Lisboa honrar, uma vez mais, o nome histórico que acarreta aos ombros.

Francisco Palha armou ontem no Campo Pequeno um autêntico alvoroço. Tudo o que fez foi bem feito - e fica na memória dos que ontem ali estiveram, enchendo três quartos fortes da lotação da Catedral.

Os Canas Vigouroux não eram para brincadeiras. Não permitiam deslizes. Palhinha foi-se a eles com a raça e a garra dos eleitos. Recebeu os seus dois toiros com duas espectaculares e muito bem concebidas sortes de gaiola, de alto risco, ficando desde logo com o público do seu lado.

Depois, em qualquer das duas lides, lidou, toureou e cravou espectacularmente, pisando a linha de risco, arriscando ao milímetro, citando de largo, entrando pelos toiros dentro, reunindo e cravando num palmo de terreno, onde a glória se pode confundir com a tragédia, empolgando, galvanizando.

Foram duas verdadeiras lições de cátedra, a confirmar o momento grande que vive e que faz dele um dos mais interessantes e mais triunfadores cavaleiros do momento. Esteve ontem verdadeiramente imponente, colossal. Assim se toureia, Palhinha!

Os forcados de Santarém e do Aposento da Chamusca não tiveram na noite de ontem a vida minimamente facilitada pelos toiros de Canas Vigouroux, sérios, a meter mudanças, duros de roer.

Por Santarém, foram caras dois valentes e experientes forcados, primeiro Salvador Ribeiro de Almeida e depois Francisco Graciosa, consumando ambos à terceira tentativa, sofrendo nas anteriores violentos derrotes. Não foi fácil. Graças a Deus, nenhum se lesionou.

Pelo Aposento da Chamusca foi à cara do segundo toiro o cabo Pedro Coelho dos Reis (Pipas), que este ano se despede das arenas e ontem pisava pela derradeira vez a arena do Campo Pequeno. Pega duríssima, à quarta tentativa, pega quase impossível. Muito valor e muita valentia.

O último toiro foi pegado pelo valoroso João Saraiva à primeira, uma pega dura e rija, muito emotiva, com uma primeira ajuda monumental do cabo, que não dera volta à arena na sua pega e a deu depois por exigência do público, com Palha e o forcado da cara. 

Bem as quadrilhas, sem capotazos em demasia, frente a toiros que não foram fáceis.

Em suma, uma grande corrida, uma vitória do empresário Luis Miguel Pombeiro, mas sobretudo uma vitória da Festa e da Cultura. Numa data que todos vaticinavam arriscada, mas que acabou por trazer muito público ao Campo Pequeno

Ricardo Dias dirigiu com acerto e competência esta Corrida da Cultura, assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

Foi uma noite grande. Daquelas que não se esquecem mais!

Fotos M. Alvarenga



Morante: para lembrar, as suas duas grandes faenas ontem
em Lisboa!


Entrega e raça de Bastinhas venceram dureza do seu lote

Noite magistral de Francisco Palha! Aqui, dando a volta no
quinto toiro com o forcado João Saraiva (pega da noite) e o
cabo Pedro Coelho dos Reis, pela sua primeira ajuda
A última pega de um grande forcado na arena do Campo 
Pequeno: Pedro Coelho dos Reis despede-se este ano