sexta-feira, 31 de maio de 2024

Miguel Alvarenga analisa os 4 cartéis do Campo Pequeno

Miguel Alvarenga - É cada vez mais difícil e mais complicado, sobretudo num meio tão estranho como este da tauromaquia, agradar a gregos e a troianos. Todavia, quando se anunciam só quatro corridas para o Campo Pequeno, impunha-se que fossem quatro grandes acontecimentos para esgotar a Catedral. E a verdade é que, não sendo maus, antes pelo contrário, os quatro elencos assumem-se como vulgares para aquilo que se esperava. Mas o mal não é dos empresários que os montaram, o mal é do sistema, é do estado a que isto chegou. Qualquer coisa que se faça, é sempre vulgar, porque as nossas touradas são sempre mais do mesmo. Há pouca volta a dar...

Os quatro cartéis do Campo Pequeno, que esta terça-feira foram oficializados pela parceria Ovação e Palmas/Toiros com Arte, e que eram já sobejamente conhecidos de todos os aficionados, provocaram uma verdadeira algazarra de protestos e considerações menos agradáveis - que nos últimos dias tem criado alguma agitação nas redes sociais.

Nenhum outro tipo de espectáculo, nem mesmo o futebol, tem tantos "treinadores de bancada" e tantos entendidos nos bastidores... como a tourada.

As redes sociais, para quem desconheça, são uma coisa parecida com aquilo para que serviam as paredes antigamente: um espaço em que se pode escrever tudo e mais alguma coisa, todas as barbaridades mesmo, um espaço onde todos se sentem importantes porque opinam, um espaço onde todos fazem de conta que são jornalistas ou comentadores. Enfim, coisas dos tempos modernos...

É normal que em apenas quatro corridas de toiros não seja possível anunciar todos os toureiros, muito menos todos os grupos de forcados (que são mais que as mães... e todos se sentem no direito de pegar no Campo Pequeno, o que é legítimo, apesar de impossível).

O que acontece depois é que nem todos concordam com o critério que justificou a escolha dos empresários. Toureia este e não toureia aquele, porquê? Pegam estes forcados e não pegam aqueles, porquê? Vão estes toiros e não vão aqueles outros, porquê?

É muito mais difícil montar uma temporada de apenas quatro corridas, do que outra com dez ou vinte. Pergunta-se agora: foi bem montada esta (pequena) temporada que terça-feira apresentaram os empresários Luis Miguel Pombeiro, Samuel Silva e Jorge Dias, o trio da parceria que gere "quase todas as praças do país"? É o que vamos aqui analisar.

Primeiro ponto (importantíssimo) - os homens dos toiros não têm qualquer legitimidade para criticar e lamentar que o Campo Pequeno tenha chegado ao estado a que chegou, passando de primeira praça do país para uma praça onde se realizam sobretudo concertos musicais e apenas quatro touradas por ano.

Quando o Campo Pequeno foi a leilão (concurso), ninguém do mundo tauromáquico - ninguém mesmo - teve a preocupação de concorrer à adjudicação da praça. Ninguém se chegou à frente. Ficaram antes à sombra da bananeira, se calhar a beber uns copos e a fumar uns charutos, a ver a banda passarE há no mundo tauromáquico personalidades com poder económico para se chegarem à frente. Não fizeram. Agora não se podem queixar. Nem vale a pena chover no molhado. Já não há nada a fazer.

A única coisa que os (ditos) taurinos fizeram foi aplaudir uma volta à arena de toureiros com uma faixa enorme onde se lia "Esta é a Nossa Casa!". Mas depois não fizeram mais nada. Cruzaram os braços. E deixaram que esta passasse a ser a casa do Senhor Covões.

O Senhor Covões, apenas e só o maior e mais cotado empresário do mundo do espectáculo em Portugal, comprou a adjudicação do Campo Pequeno para dar concertos - como no Coliseu

O Senhor Covões tem toda a legitimidade - e ninguém o pode criticar por isso - para disponibilizar apenas quatro datas aos empresários taurinos para realizarem quatro touradas anuais. 

Se não permitisse a realização de nenhuma tourada, aí sim, deveria ser criticado por todos. Mas como permite que se façam quatro, ninguém do mundo tauromáquico tem a menor legitimidade para o criticar. 

Podiam ter evitado que isto chegasse onde chegou. Apregoaram que o Campo Pequeno é (era) "a Nossa Casa", mas não fizeram nada para evitar que o Campo Pequeno passasse a ser a casa do Senhor Covões. Agora não se queixem.

Segundo ponto (importantíssimo também) - os (ditos) aficionados protestam nas redes sociais pelo facto de serem só quatro as touradas do Campo Pequeno. Mas depois não vão vê-las, não esgotam a praça - como era importante que acontecesse, para mostrar ao Senhor Covões que vale a pena haver mais touradas; para não legitimar, um dia, a sua decisão de deixar de disponibilizar datas para a realização de espectáculos (touradas) a que ninguém vai.

Os cartéis são os cartéis possíveis. Está tudo inventado, não há nada a inventar. E os toureiros são sempre os mesmos em todas as praças. Sem haver um que tenha a força de bilheteira e a força de levar gente às praças como teve, por exemplo, João Moura no seu tempo de ouro.

Os quatro cartéis são bons, ninguém diz o contrário. Mas são cartéis vulgares, iguais a muitos que já vimos este ano noutras praças e que até final do ano haveremos de voltar a ver em muitas mais.

E são vulgares porque hoje em dia em Portugal todos os cartéis são vulgares, dêm as voltas que derem. Misturam-se e baralham-se os nomes, voltam a dar-se as cartas e fica sempre tudo igual. É mais do mesmo hoje e mais do mesmo amanhã.

A Luis Miguel Pombeiro vamos ter que agradecer sempre - e nunca esquecer, por mais queijo que se coma... - o gesto que teve, no tempo da pandemia, de não deixar acabar as corridas de toiros. Contra ventos e marés, em prejuízo da sua própria estabilidade (financeira, sobretudo), ele arriscou, chegou-se à frente quando todos andaram para trás - e se hoje ainda temos touradas, a ele o devemos.

Este ano juntou-se a um novo grupo empresarial, Toiros com Arte, de Jorge Dias e Samuel Silva, grupo esse aparentemente sólido e com poderio para fazer coisas diferentes - mas a verdade é que em Portugal não há muitas coisas diferentes a fazer. No ano passado trouxeram "El Juli" a Coruche. E foi o que foi. Perderam dinheiro, o público não aderiu como se esperava.

O que é que este ano Pombeiro e os seus parceiros poderiam ter feito no Campo Pequeno e não fizeram? Que elencos fantásticos poderiam ter m montado e não montaram?

Posso enunciar alguns. Por exemplo, um mano-a-mano Diego Ventura/João Moura Júnior; a despedida de Portugal de Enrique Ponce a ombrear, por exemplo, com um ou dois matadores nacionais (já lá vamos à também muito criticada ausência de toureio a pé na temporada lisboeta); a comemoração dos trinta anos de alternativa de Pedrito de Portugal; já não digo tanto, mas seria do outro mundo conseguirem montar um mano-a-mano Pablo Hermoso/Diego Ventura. Com dinheiro tudo se consegue...

Lembro o saudoso Manuel Gonçalves e os cartéis super-ousados que conseguiu montar em Lisboa no seu tempo. Começou logo pelo mano-a-mano Domecq/Moura a marcar o fim da "Guerra das Esporas", que era a corrida que todas as empresas de Espanha queriam montar e ele conseguiu fazê-lo no Campo Pequeno. Lembro o mano-a-mano Moura/Paco Ojeda. Lembro tantos outros cartéis. Mas os tempos eram diferentes. Havia aficionados. E a Tauromaquia tinha importância e tinha um esplendor que já não tem.

O toureio a pé. Todos criticam a ausência de matadores nesta temporada do Campo Pequeno. Pombeiro alegou, na apresentação dos cartéis, que perdeu sempre dinheiro nas "corridas a pé" que deu nos últimos quatro anos na capital. E lembrou, sobretudo, que apesar de ter contratado importantes figuras de Espanha (algumas não vieram em cima da hora e tiveram que ser substituídas), o público não acorreu à praça.

Quanto a mim, está mais que justificada a ausência de matadores no Campo Pequeno. Doa a quem doer, os tempos de hoje não têm nada, nada mesmo, a ver com os tempos de antigamente. Matadores para quê, se depois o público não os vem ver?

Esse auto-proclamado públicozinho apoiante do toureio a pé gosta de se mostrar, com casaquinhos verdes e chapeuzinhos com penas de pato, em Olivença, mas depois, em Portugal, fica em casa nos dias das corridas mistas...

A principal corrida da temporada lisboeta nos anos 70 e ainda nos 80, era a Corrida da Imprensa, sempre em Lisboa na primeira quinta-feira de Agosto, mista e com oito toiros, dois cavaleiros e dois matadores, normalmente duas grandes figuras de Espanha. Nos últimos anos em que se organizou, as estrelas foram Paco Ojeda, "Niño de la Capea", Ruiz Miguel.

Mesmo que estivessem de férias no reino dos Algarves, os aficionados vinham a Lisboa na primeira quinta-feira de Agosto e regressavam nessa mesma a noite ou na manhã seguinte às suas férias a sul. Havia aficionados nesse tempo. Hoje, a primeira quinta-feira de Agosto é referenciada como "a pior data do Campo Pequeno". Porque está tudo ao sol nas praias. E todo o mundo se está nas tintas para as touradas... É triste. Mas é a realidade. Escondê-la é tapar o sol com uma peneira.

Nesta contexto actual e com todo este figurino, que dizer, afinal, dos quatro cartéis do Campo Pequeno?

- 1ª corrida, 4 de Julho - Moura Júnior e Bastinhas são duas das mais destacadas figuras do momento. Não têm, nem de perto, nem de longe, o impacto, a força e o carisma que tinham, no seu tempo, os seus pais. Mas é o que temos. São dois cavaleiros que dá sempre gosto ver. Quando chegarmos a 4 de Julho, já toda a gente os viu não sei quantas vezes em todas as praças, mas... em Lisboa ainda não se mostraram...

O terceiro cavaleiro é António Telles Filho. Uma lufada de ar puro, um jovem em ebulição e que tomou a alternativa também na corrida de abertura da temporada no ano passado. Falta, talvez, uma justificação plausível para explicar a sua inclusão num cartel desta importância, mas ele se encarregará certamente de nos mostrar que merece estar ali.

Os toiros são da emblemática ganadaria Murteira Grave - a expectativa é sempre imensa. E nas pegas vamos ter os eternos rivais, Santarém e Montemor - o que é, desde logo, um chamariz para levar público às bancadas do Campo Pequeno, mais a mais em noite de homenagem a dois dos maiores Forcados de sempre, Nuno Megre (Santarém) e João Cortes (Montemor).

Prognóstico: praça cheia, sem esgotar. Se esgotar, será fantástico.

- 2ª corrida, 8 de Agosto - Seis cavaleiros (todos bons, nada a apontar) e três grupos de forcados (uma escolha muito discutível) a disputar um concurso de pegas. E uma ganadaria que dá garantias: Vinhas.

Não vou dizer que os três grupos de forcados (os dois de Coimbra e o de Monsaraz) não deviam estar nesta corrida. De maneira nenhuma o diria. O sol, quando nasce, é para todos - e todos têm o direito a vir pegar ao Campo Pequeno.

Direi, antes, que não entendo a razão de virem os dois grupos da Cidade dos Doutores (não bastava um?...) e que não entendo porque não estão nesta temporada, e provavelmente nesta corrida, grupos consagrados que este ano faltam à temporada lisboeta.

E numa temporada de oito ou dez corridas, jusitficava-se, ou antes, aceitava-se, um elenco de seis cavaleiros, "estilo Azambuja". Numa temporada de só quatro corridas, é menos fácil tolerar uma corrida como esta. Lisboa merecia mais. Com todo o respeito pela praça e pelo público de Azambuja, as situações não se podem comparar e muito menos igualar. Lisboa é Lisboa, meus senhores!

É transmitida pelo canal espanhol OneToro - mas não acredito que isso seja muito relevante.

Prognóstico: meia casa. Talvez três quartos, se as pessoas pensarem que vão aparecer na televisão...

- 3ª corrida, 22 de Agosto - O cartel já estava bom com o regresso a Lisboa, após quatro anos de ausência, de Rui Fernandes, com Francisco Palha e o triunfador da temporada passada na capital, Miguel Moura. Ficou ainda melhor com a entrada de Rui Salvador, para fazer a despedida do público lisboeta na praça onde recebeu há quarenta anos a sua alternativa. Seria uma injustiça tremenda o Rui ficar de fora. Esteve quase a ficar, mas a empresa emendou a mão em cima da hora. Mais vale tarde que nunca.

Os - oito - toiros são de uma ganadaria dura, Dr. António Silva. E nas pegas vão estar dois bons grupos de forcados, Évora e Coruche.

Prognóstico: três quartos fortes.

- 4ª corrida, 6 de Setembro (a única que será numa sexta-feira) - É a despedida de Pablo Hermoso de Mendoza do público português. Merecia praça esgotada. Assim seria noutros tempos. Agora, vamos ver...

Pablo diz adeus com uma ganadaria mais cómoda que as das outras três corridas, a de Charrua, ao lado de dois veteranos nacionais, António Telles e Luis Rouxinol. Outro atractivo: a comemoração do 80º aniversário do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa, que pega os seis toiros em solitário.

Prognóstico: casa cheia, talvez mesmo a única, das quatro, com fortes probabilidades de esgotar (pelo impacto que a figura de Pablo Hermoso ainda tem entre nós).

Os ausentes - são muitos e alguns têm essa ausência marcada por alguma polémica. O desacordo com João Telles nunca devia ter acontecido. Ventura continua a não vir ao Campo Pequeno. E ainda não é desta que vamos ver a apresentação do valoroso cavaleiro praticante Duarte Fernandes na capital. Faltam muitos mais. E todos, ou quase todos, têm direito a estar em Lisboa. Mas em só quatro corridas isso é impossível. 

Tinha-se falado de uma homenagem aos rejoneadores e ganaderos espanhóis Fermín Bohórquez (ao pai a título póstumo, e ao filho), mas ficou adiada para o ano que vem.

Resumindo e concluindo - os quatro cartéis são bons. Podiam ser melhores. Podia ter havido mais imaginação, mais ousadia, maior afirmação empresarial para montar quatro grandes acontecimentos que à partida garantissem quatro lotações esgotadas, quatro corridões daqueles que as pessoas olham para o cartaz e afirmam: "Isto não vou perder!".

São boas as quatro corridas de Lisboa. Mas se alguém perder alguma delas não vai ficar o resto da vida a chorar...

Foto M. Alvarenga