segunda-feira, 7 de maio de 2018

Emoção e praça cheia em Vila Franca: uma tarde para a História!

Com dois Soraias "brutos", António Ribeiro Telles fez ontem na "Palha Blanco"
jus à sua imensa maestria e deu duas enormes lições de toureio a cavalo
Momentos das duas brilhantes lides do veterano Luis Rouxinol, um cavaleiro
que não sabe nunca estar mal...
David Gomes protagonizou ontem em Vila Franca uma digníssima prova de
alternativa e no final foi homenageado pelas Tertúlias do Concelho de Vila
Franca (foto de baixo)


Miguel Alvarenga - Não é preciso “descobrir a pólvora” para que a Festa de Toiros volte a ter o carisma, o glamour e, acima de tudo, a importância de outros tempos. Basta, como ontem se viu em Vila Franca de Xira, trazer à praça um curro de toiros “em condições”, que faça vibrar o público, que exija e peça contas a toureiros e forcados. Que prove e consagre o risco que é e foi sempre a verdadeira essência deste espectáculo - onde as facilidades não têm, nem podem ter, lugar. O público tem que ter medo nas bancadas. E ontem teve. Tem que se assustar com as intervenções dos toureiros e dos forcados. E ontem assustou-se -  e de que maneira, Deus meu!
E depois, montar um cartel com garantias suficientes para que o espectáculo resulte num êxito. Quero eu dizer: com toureiros da primeira linha e forcados “à antiga”.
O empresário Ricardo Levesinho fez isso tudo e marcou o seu regresso à praça “Palha Blanco” com o público todo a seu lado. Para trás ficaram as polémicas que por aí rodaram em surdina, havia até quem garantisse que a corrida não se daria e que a praça lhe ia ser retirada. Mas como quem dá e volta a tirar ao Inferno vai parar, nada disso se passou. Levesinho é o empresário de Vila Franca por direito próprio - e por seu mérito -, a Santa Casa cumpriu escrupulosamente o que ficara decretado no início do ano e o público, isso é que importa, acorreu em peso à praça “Palha Blanco” - para manifestar o seu apoio ao regresso do empresário, que esperou como quem espera um D. Sebastião, desejado e aclamado. Para ver os toiros de Vale Sorraia. Para apoiar a alternativa de David Gomes e para desfrutar do toureio, sempre de garantido triunfo, sejam bons ou maus os toiros, dos veteranos António Ribeiro Telles e Luis Rouxinol. Para viver emoções com os valentes (e que valentes eles estiveram ontem!) Forcados de Vila Franca e de Coruche.
Resultado: uma moldura humana a dar um enorme ambiente à corrida. Sem esgotar, a praça registou, mesmo que em termos de bilheteira não tenha sido um resultado famoso, uma enchente de quase três quartos. Para isso contribuiu tudo o que antes referi, mas também o espectacular dia de sol e calor que se fez sentir. É assim que o público gosta de ir aos toiros. E só assim a Festa tem aquele sabor único e especial - que nada tem a ver com dias de chuva e quase ninguém nas bancadas, como na semana anterior ocorrera nas tristes touradas de Beja e de Estremoz

Digno David em tarde há muito esperada

David Gomes, antigo campeão nacional e internacional de Equitação de Trabalho, não é propriamente um novato. Atravessou um percurso sempre digno e cheio de valor como cavaleiro amador e depois praticante, chegou a ter a alternativa anunciada em mais que uma ocasião, mas só ontem chegou por fim à tarde há muito esperada.
Chamava-se “Urze”, tinha o número 76 e pesou 490 quilos o toiro de Vale Sorraia com que tomou a alternativa, brindando a lide a seus pais.
Toiro muito bem apresentado, aliás como todos os seis, este a demonstrar qualidade, impondo-se no início, mas vindo depois a menos no final da lide. Um facto estranho: sangrou demais à medida que foi levando as bandarilhas…
David Gomes não acusou o peso da alternativa, da praça cheia, do Sorraia e da tarde de competição com dois maestros. Procurou fazer tudo bem feito, esteve acertado nos compridos e cravou os curtos em sortes emotivas e a bater o pito contrário. O facto de ser um excelente equitador é logo, à partida, meio caminho andado para fazer boa figura. Como fez.
O seu segundo toiro, último da tarde, acusou mansidão e procurou o refúgio nas tábuas. David deu-lhe a volta com desenvoltura, demonstrando ter argumentos para ultrapassar barreiras complicadas. A lide não teve o brilhantismo da primeira, mas mesmo sem ser redonda, foi aceitável e há que destacar um curto fantástico, em terrenos de aperto, mesmo junto ao sector 2.
Sem espalhafatos “pró pagode” e sem recorrer a artifícios popularuchos, procurando antes um caminho de verdade e com atitude, David Gomes teve uma alternativa com aprumo e dignidade e é, a partir de agora, mais um cavaleiro que pode - e deve - ombrear com os eleitos em qualquer cartel.

António e a genialidade de ser diferente

A “Palha Blanco” é, há muitos anos, a “praça de António Telles” e como bem dizia o saudoso Bacatum, ele está para Vila Franca como Curro Romero estava para Sevilha. Mas António é Toureiro de todas as praças. E ontem voltou a ditar cátedra em duas lides que foram de luta frente a Sorraias “brutos” e complicados, que pediam contas, exigiam e não perdoavam um deslize.
A sua primeira actuação foi uma lide de emoções. Com grandes ferros, brega exímia e a eterna e primordial classe de um cavaleiro que nunca alinhou na chamada maneira “moderna” de lidar os toiros, mantendo uma traça - e uma raça - que lembra sempre os tempos antigos da arte de Marialva. E que por isso mesmo marca sempre toda a diferença. Pode haver quem diga que há quem toureie melhor que o António, mas a verdade é que ninguém toureia como o António.
No quarto toiro da tarde, um Sorraia dos antigos, mauzinho e matreiro que nem um Diabo, António Ribeiro Telles deu uma magistral e inesquecível lição de bom toureio. E cresceu, encastando-se e deixando ver toda a sua raça, depois de ter levado um fortíssimo “estaladão” que o ia atirando ao chão. Junto aos sectores de sombra, virou-se para o público e disse: “A culpa foi minha, que o toiro é bruto!”. E depois… depois, abriu o livro, deu a volta ao “bruto” e, com a maestria e o saber que todos lhe reconhecemos, seguiram-se atrás uns dos outros ferros de uma emoção tremenda e uma verdade toureira que ultrapassa todos os limites e todas as barreiras. Assim se toureia e assim toureou António, Maestro de outras músicas…

Luis Rouxinol, Coração de Leão!

Luis Rouxinol é e será para sempre um verdadeiro Campeão das arenas. Não me cansarei de o aplaudir, de o respeitar e de lhe louvar eternamente o valor tão grande com que subiu a pulso a corda, com que se impôs, com que vingou e triunfou quando todos o quiseram travar. Lembro-me bem dos seus inícios, já lá vão trinta anos, da mão e do apoio decisivo que lhe deram Manuel Gonçalves, Alfredo Ovelha e depois Mário Freire, que foram dos poucos que acreditaram que ali estava um Toureiro com futuro.
Hoje, o grande Luis já não precisa de provar nada a ninguém, é uma primeira Figura, louvada e consagrada - mas, lá está o valor tremendo que o acompanha desde a primeira hora, jamais se acomodou, jamais virou a cara, jamais defraudou quem paga um bilhete e se senta na bancada e não gosta de ser enganado.
Se os toiros não investem, investe ele - como um dia me disse, numa entrevista, o célebre Manuel Benítez, que todo o mundo aclamou como “El Cordobés” e que teve o condão de ser melhor que os outros todos, mesmo que não toureasse tão bem e com tanta profundidade como os demais.
Ontem, Luis Rouxinol protagonizou uma lide brilhante com o terceiro Sorraia da tarde, que foi dos melhores do lote e que ele aproveitou ao máximo, tirando-lhe todo o partido numa actuação que resultou em cheio e veio, uma vez mais, confirmar a atitude de um Toureiro que nunca sabe estar mal…
O seu segundo toiro era mansote e perigoso, de investidas inesperadas e sem dar quietude ao toureiro. Rouxinol brindou a lide ao seu antigo bandarilheiro David Antunes e pôs a carne no assador, arriscou, entregou-se, deu-lhe a volta e voltou a levar, como ele tão bem sabe, o barco a bom porto. Lide de valor, de risco, de ousadia, daquelas com que sempre galvaniza as bancadas. Coração de Leão, a arte de um vencedor!

Honra aos Forcados de um Portugal diferente

Eles são os últimos românticos da Festa - mas também os últimos gladiadores, conquistadores, o que lhes quiserem chamar, representativos da raça, da alma e do coração de um Portugal diferente. Quero dizer: já não há Homens assim neste país!
João Prates, dos Amadores de Coruche e Márcio Francisco, dos Amadores de Vila Franca (quarta e quinta pegas, respectivamente) ergueram ontem bem alto, tão alto que alguns nem viram, a bandeira única e tão nobre, mas sobretudo tão portuguesa, da arte de pegar toiros.
As pegas que fizeram, Prates à segunda, depois de uma primeira tentativa que foi um autêntico monumento ao brio solitário de um forcado da cara; e Márcio Francisco à terceira, a aguentar um derrote “do outro mundo” que ninguém percebeu como o não atirou fora, com braços de ferro e alma de herói - foram dois monumentos mais altos que o do Marquês de Pombal, parecendo que era fácil o que parecia ser impossível, inacreditável mesmo! Dois pegões que oxalá tenham sido filmados e fiquem para todo o sempre congelados como exemplos na memória dos que assistiram e sirvam de lição aos que vierem depois.
As outras pegas foram também exemplos do valor destes forcados de dois grupos consagrados: por Vila Franca, foram executadas pelo futuro cabo Vasco Pereira (à primeira) e por Francisco Faria (à segunda). Por Coruche, estiveram ainda na frente Miguel Raposo (à primeira) e António Tomás (à primeira). Ajudas extraordinárias de todos os elementos dos dois grupos nas seis pegas - em tarde de destacado triunfo para os heróis das jaquetas de ramagens.
Havia um prémio para a melhor pega, com júri formado por Carlos Alberto Casquinha, Miguel Palha e o Engº Jorge de Carvalho. Foi atribuído, sem protestos do público, a João Prates. Mas, a meu ver, não teria vindo mal algum ao mundo se tivesse contemplado também Márcio Francisco. Numa corrida, a melhor pega podem ser duas. E ontem foram mesmo.
Olé para as intervenções das quadrilhas: João Ribeiro “Curro” e António Telles Bastos, Manuel dos Santos “Becas” e João Prates, Jorge Alegria, Ricardo Alves e João Martins.
Os dois cabeças de cartaz, bem como os dois grupos de forcados, dedicaram sortes ao novo cavaleiro de alternativa.
Foi director de corrida, com seriedade e aficion, João Cantinho, que esteve assessorado pelo médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva.
Uma corrida como a de ontem fez lembrar o fulgor e a emoção dos tempos de outrora. Quando assim acontece, não há razões para temer que a Festa um dia acabe. O que é mau é dar por aí touradas com mais do mesmo, com toiros que não são toiros e toureiros que nos dão sono. Ontem na “Palha Blanco” ninguém dormiu…

Fotos Maria Mil-Homens