O gesto senhorial e fidalgo (quem tem berço...) de Francisco Palha ao apear-se do cavalo para dedicar a sua segunda lide a Mestre António Telles, seu primo |
A maestria imparável de António Telles e um toiro magnífico de Veiga Teixeira, a consagração definitiva de Francisco Palha como Figura do Toureio, Andrés Romero sem opções para mostrar o que vale e uma tarde grande dos forcados de Santarém e Coruche numa corrida de enorme ambiente e praça cheia marcaram ontem mais um triunfo do empresário Rafael Vilhais em Salvaterra de Magos no Concurso de Ganadarias onde só destoou mesmo a vergonha de um “bezerro” de Miura…
Miguel Alvarenga - Aconteceu há dois anos em Vila Franca e voltou a acontecer ontem em Salvaterra. Porque raio sempre que se anunciam por cá toiros da mítica ganadaria Miura somos defraudados com “bezerritos” que envergonham a divisa e deixam mal no retrato os empresários que insistem em trazê-los? Ao lado das outras “bizarmas” que concorriam ao concurso, o toirito de Miura, se bem que no tipo tradicional da divisa, mas exageradamente esquelético e com carinha de bezerro, fez a (completa) diferença, pela negativa. Como foi possível que o director de corrida e o veterinário o deixassem vir à praça?
Esta foi a nota negra de uma tarde de grande ambiente e praça cheia ontem em Salvaterra de Magos, onde António Ribeiro Telles voltou a evidenciar, completamente imparável, a sua inigualável maestria, onde Francisco Palha deu mais um passo importantíssimo na consagração, agora indiscutível, como Figura do Toureio e onde Andrés Romero não teve opções para nos mostrar o que vale. E não venham agora os puritanos do costume dizer que não presta. Está a pontuar de tarde em tarde, não terá sido por mero acaso que foi aclamado triunfador de Sevilha e que ainda na véspera cortou uma orelha de valor em Madrid.
Vamos por partes.
António, o Mestre
António Ribeiro Telles, mais de trinta anos de alternativa, a maestria de sempre, imparável, inalcançável, duas lides magistrais em que pôs a carne no assador, em que entrou pelos toiros dentro com uma verdade do tamanho do mundo e uma honestidade toureira de pasmar, como se ainda tivesse ele que provar alguma coisa a alguém.
Era algo reservado o toiro de Conde de la Maza que abriu praça, mas António andou do princípio ao fim “por cima dele”, honrando os pergaminhos de cátedra que fazem dele o Mestre dos Mestres, desenhando, como qualquer pintor consagrado, uma lide com princípio, meio e fim, em que pontificou a grande brega e as entradas destemidas a vencer o pito esquerdo, para deixar os ferros cravados de alto a baixo, tal qual os livros antigos ensinam. Assim se toureia!
O quarto toiro da ordem foi um magnífico toiro de Veiga Teixeira, que cresceu ao longo da lide e se impôs, pedindo contas, mal sabia ele que tinha pela frente um Toureiro dos de cima, a quem os toiros bravos e bons nunca assustaram. António deu uma lição magistral de como se toureia a cavalo, aproveitando as fantásticas qualidades de bravo do toiro de Veiga Teixeira e enaltecendo-as mesmo, deixando-as sobressair. Foi uma lide de uma emoção desmedida, com toureio puro e de verdade, com António a deitar cartas e a dizer: “Ainda aqui estou e estarei!”. Não é fácil ver tourear tão bem.
Palhinha rumo ao topo
Francisco Palha, a quem chamo Palhinha, pelo carinho e enorme admiração que tenho por ele desde que o vi tourear pela vez primeira, foi um toureiro em que sempre acreditei, que teve altos e baixos, mas que agora encarrilou de vez e ontem em Salvaterra deu o definitivo grito do Ipiranga e da consagração como Figura do Toureio - por seu mérito próprio e exclusivo, talvez não tão exclusivo quanto isso, uma vez que ele próprio louva sempre e nunca esquece (chama-se a isto humildade e reconhecimento, mas acima de tudo, educação) os ensinamentos e o grande apoio, decisivos, que recebeu em Sevilha de Diego Ventura e de seu pai, João Ventura.
Ontem, com um toiro mansote e desinteressado de Canas Vigouroux, Francisco Palha protagonizou uma actuação de luta e muito querer, arriscando ao máximo, conseguindo ferros de um mérito imenso, a pisar a linha de fogo, que é coisa que hoje poucos fazem, como há pouco dizia Paco Ojeda numa entrevista que deu brado.
O seu segundo toiro era uma estampa de Dolores Aguirre com quase 700 quilos (peso em demasia), mas entrou visivelmente congestionado e recolheu aos currais, saindo depois um sobrero de Veiga Teixeira que, sem ter as qualidades do exemplar que ganhou os prémios de bravura e apresentação, era um toiro de respeito e que impôs emoção, pedindo contas.
Francisco Palha voltou a dizer de sua justiça, entrando em terrenos de grande compromisso e deixando todos os ferros, sem excepção, em sortes de grande verdade, emotivas e que levantaram o público das bancadas.
Palhinha já não se está a afirmar. Já se afirmou. Passou à fase seguinte: está a consagrar-se de tarde em tarde como um dos grandes cavaleiros do momento. Com imensa atitude, muita dignidade, um querer tremendo e uma solidez que fazem dele, sempre que se anuncia, uma garantia e uma certeza de que vamos ver tourear a sério.
De senhorial fidalguia (quem tem berço marca a diferença) o gesto de se apear do cavalo para o brinde que fez a seu primo António Telles. Não por ser primo, mas por ser um Figurão do Toureio por quem se tem que ter todo o respeito. Bonito.
Andrés Romero: triunfo adiado
Andrés Romero, venham dizer o que disserem, não é um coitadinho qualquer. Foi aclamado pelos maestrantes como triunfador de Sevilha e 24 horas antes desta corrida cortou uma orelha de peso em Madrid. Em Salvaterra, deixou adiado o triunfo que se esperava. Mas não por sua culpa.
Primeiro, lidou o inconcebível e inapresentável toirito de Miura, frente ao qual demonstrou o seu profissionalismo e o seu valor, quer a bregar, quer a cravar, mas sem o esplendor desejado e sem a importância que se exigia, dada a ridícula e constantemente protestada falta de apresentação do “bezerro” - que retirou toda e qualquer importância à sua lide. Vão-me dizer que toiro tinha idade, que isto e que aquilo. Mas destoou dos outros toiros, parecia um garraio, esquelético e impróprio, até, para uma garraiada de estudantes. Uma vergonha.
O toiro de António Silva, segundo do lote de Romero, com o peso exagerado de 680 quilos, saíu também diminuído e foi para dentro. O empresário teve o gesto louvável de proporcionar ao toureiro a lide de um segundo sobrero, que o Regulamento não obriga sequer a existir na praça, mas que Rafael Vilhais fez questão de ter “na manga”, por forma a não prejudicar nem defraudar o público (que enchia a praça), caso houvesse um segundo percalço, como houve.
Saíu então o segundo sobrero, também da ganadaria Silva e que, segundo me confirmaram, andara já de “suplente” pelos currais de várias praças, inclusivamente estivera no Campo Pequeno na corrida de abertura da temporada. E além do mais, foi manso. De arrancadas perigosas e a cortar terreno. Mas sério e a pedir contas.
Adiantou-se, complicou a vida a Andrés Romero e o rejoneador, ainda pouco acoplado à dureza e ao andamento do toiro português, teve algumas dificuldades em se entender com ele. O toiro mandou na lide e Romero falhou vários ferros, além de sofrer muitos encontrões. Por morrer uma andorinha nunca acabou a Primavera. E a Primavera de Andrés Romero está ainda agora a despontar. Não será preciso dar-lhe o benefício da dúvida, porque ninguém tem dúvidas do que ele vale. Vamos aguardar serenamente pelas suas próximas e já anunciadas vindas a Portugal.
Teve azar com os toiros e, ainda para mais, não era assim tão fácil impor-se numa tarde de tanta glória para os seus dois alternantes portugueses.
Grandes pegas de grandes grupos
Como vem acontecendo nas últimas corridas a que tenho assistido, nomeadamente na primeira do Campo Pequeno e na do domingo anterior em Vila Franca, os Forcados voltaram ontem a brilhar “à grande”.
Pelos Amadores de Santarém, duas pegas históricas de António Goes e de Ruben Giovety, as duas à primeira, ambos a citar muito bem, a recuar com toreria, mandando na investida e a fecharem-se com braços de ferro, com o grupo a ajudar sempre bem. Fernando Montoya pegou à segunda o terceiro toiro da tarde, em sorte brindada ao ganadeiro João Ramalho.
Pelos Amadores de Coruche, um grupo em alta neste início de temporada e que esta quinta-feira estará no Campo Pequeno, também dos pegões enormes de João Ferreira e de António Tomás (a pega da tarde, com uma segunda ajuda incrível de José João Cavaco, que recolheu à enfermaria, sendo depois o primeiro ajuda Fernando Ferreira que o acompanhou na volta à arena), também as duas à primeira; e outra de Pedro Coelho à segunda, por ter escorregado na cara do toiro na primeira tentativa, mas não menos brilhante.
(Já a seguir, veja aqui todas as pegas uma a uma).
E a menina dos pesos…
Um merecido louvor à intervenção de todos os bandarilheiros, sem excesso de capotazos: João Ribeiro “Curro” e António Telles Bastos da quadrilha de António; Diogo Malafaia e Jorge Alegria da quadrilha de Palha; e o português Claúdio Miguel, mais o seu companheiro espanhol, da quadrilha de Romero.
No final, como já referi, foram entregues os prémios de bravura e de apresentação (era mesmo inevitável e ninguém tinha dúvidas) ao quarto toiro do concurso, de Veiga Teixeira, sendo de referir que apenas quatro toiros entraram na disputa dos troféus, já que os últimos dois se inutilizaram e os sobreros, nestes casos, não entram na avaliação.
O cavaleiro D. Francisco Mascarenhas, o empresário e antigo forcado José Luis Gomes e o médico veterinário e comentador taurino da RTP, Dr. Vasco Lucas, constituiam o idóneo júri que decidiu - e que decidiu muito bem, sem um único protesto do público.
Àparte os êxitos artísticos de cavaleiros e forcados, a confirmação de Rafael Vilhais como homem certo no lugar certo à frente da gestão da praça de Salvaterra e o grande ambiente de praça cheia que ontem se viveu nesta grande corrida, houve ainda outro caso: a inovação de substituir o apresentador do peso dos toiros por uma guapíssima jovem que sempre que entrou na arena deixou o público em alvoroço pela sua escultural figura…
As tradições nem sempre são precisas manter para a vida inteira e esta inovação - que esperamos se repita - deu um ar de muita graça, digam os contras do costume o que disserem.
Vanmos viver eternamente agarrados ao passado cinzentão em que quase tudo acontece nas nossas praças? Venha alegria, venha ar ouro, venham beldades como esta!
Fotos Maria Mil-Homens