O cartel era diversificado e com estilos para todos os gostos. Houve muitos do género durante o reinado de Rui Bento, mas a realidade é que as circunstâncias eram outras. Numa temporada como esta, Pombeiro não podia ter arriscado uma noite como a de ontem, com menos clientela nas bancadas. Todos os cavaleiros têm o seu valor, mas a verdade é que se tratava de um elenco pouco rematado e sobretudo pouco atraente para Lisboa. Quem foi ontem ao Campo Pequeno, foi lá mais pelos toiros e pelos forcados. Depois dos três primeiros cartéis de figuras, com a bitola bem alta, a corrida de ontem foi a que menos público levou às bancadas da Catedral. O empresário, sem dúvida o empresário do ano e o grande responsável pelo arranque das corridas num ano que se pensava que ia ficar em branco, não se pode dar ao luxo de ter uma praça tão mal composta de público como a de ontem. Não havia necessidade...
Miguel Alvarenga - O Campo Pequeno foi sempre a balança da temporada e num ano como este, em que o público tem acorrido com entusiasmo às praças e até esgotado muitas vezes as lotações possíveis nestes tempos de nova diferença, a noite de ontem tem que servir para o empresário Luis Miguel Pombeiro reflectir, tirar ilações e repor o comboio na linha depois deste "descarrilamento" - falo da fraca presença de público nas bancadas, nota negativa e menos agradável numa temporada de enorme empenho por parte dele e que estava a decorrer em ritmo crescente na primeira praça do país.
Os seis cavaleiros de ontem não mereciam estar no Campo Pequeno? Mereciam, claro. Mas talvez noutro contexto, isto é, divididos noutros cartéis. Assim, o elenco estava pouco chamativo e a prova de que tenho razão deu-a o público, não comparecendo como compareceu nas corridas anteriores. Por morrer uma andorinha nunca acabou a Primavera. Mas num ano tão delicado como este que estamos a viver, Pombeiro não podia deixar morrer andorinha nenhuma.
É da História, em mais de cem anos, que o Campo Pequeno sempre deu oportunidades a todos os toureiros que as merecem. O cartel de ontem podia não ser inteiramente um cartel de Lisboa e sobretudo um cartel de primeiras figuras (embora lá estivessem algumas), mas a realidade é que a corrida resultou agradável e ninguém dali saíu enfadado. Todos acabaram por ganhar. Os toureiros, que triunfaram e se mostraram merecedores de pisar a primeira arena do país. Os forcados, que foram heróis da noite. Os (poucos) aficionados, porque assistiram a uma agradável e nada chata corrida. Só perdeu mesmo o empresário.
O triunfo maior foi para os valentes Forcados Amadores de Alcochete com dois pegões colossais de Manuel Pinto e João Belmonte, que deixaram o público em delírio, marcando de forma importante a noite e aquela que foi uma das mais triunfais presenças do grupo em Lisboa. E foi também para Duarte Pinto, que cravou os dois grandes ferros da noite e se reafirmou com um dos toureiros importantes desta temporada.
Os Amadores de Montemor enfrentaram com a raça e o poderio habituais toiros que não facilitaram, sem contudo repetir a noite magistral de Agosto nesta praça, mas com uma actuação que em nada beliscou o seu bom nome e o carisma de um dos grandes grupos de sempre.
Os toiros de Veiga Teixeira, bem apresentados e de comportamentos distintos, justificaram a expectativa que rodeava o regresso da ganadaria à capital. Foram de boa nota os três primeiros, sem complicar, deixando-se tourear sem apresentar dificuldades de maior. Mais complicado o quarto, manso o quinto, colaborante o último. No geral, toiros sérios e a pedir contas - como é apanágio da ganadaria.
Rui Salvador tem finalmente cavalos à altura do seu estatuto e ontem regressou aos seus melhores tempos numa lide de profunda maestria, muita emoção e a entrega e o valor de sempre. Brega perfeita, ferros de enorme fulgor e muito saber e inteligência para aproveitar as excelentes qualidades do primeiro toiro da noite. Veterania, chama-se ao que vimos. E a eterna ambição de um grande Toureiro.
Gilberto Filipe é um cavaleiro a quem, parece-me, nunca foi dado o lugar que merece, como nunca teve por parte das grandes empresas o reconhecimento que lhe é inteiramente devido. Não é só um grande equitador - e ontem voltou a demonstrar que é, também e sobretudo, um excelente toureiro. Com um toiro de francas investidas, mas a procurar refúgio nas tábuas, o cavaleiro não lhe deu tréguas e desenhou uma lide em crescendo e com ferros notáveis. Toureia pouco - e é pena - mas evidencia sempre que entra numa arena que nunca foi só mais um no pelotão. É um toureiro importante. Preparado, com atitude e a saber o que faz - e faz sempre bem.
Manuel Ribeiro Telles Bastos está a marcar esta temporada como a da sua plena e definitiva consagração na linha da frente. E começa francamente a ser "um toureiro de Lisboa". A sua classe, o seu conceito de toureio clássico e a altíssima moral que o acompanha, como fonte de segurança e tranquilidade, marcaram ontem, outra vez, a sua segunda e triunfal passagem pela Catedral com um codicioso toiro de Veiga Teixeira com o qual evidenciou o seu bom gosto, a sua arte e o ritmo crescente em que está a decorrer a sua temporada.
Foram de Duarte Pinto os dois grandes ferros da noite, o terceiro e quinto curtos, de poder a poder, em que deu toda a prioridade e deixou arrancar primeiro o toiro, um toiro sério, exigente e complicado, dos que pedem contas. Ferros imponentes, cravados no centro da arena, a vencer o piton contrário entrando pelo toiro dentro, a lembrar aqueles com que Mestre Batista punha as praças em alvoroço, rematando na perfeição. Toureiro poderoso e também a marcar esta temporada. Uma lide perfeita e com momentos de grande apoteose.
O quinto toiro era manso, mas não complicou nas reuniões, deixou-se tourear, como se diz na gíria. Ana Rita é uma cavaleira desembaraçada, tem argumentos, tem valor e tem "gancho" com o público. Actuação com altos e baixos, bonitos recortes e o sempre apreciado ferro em sorte de violino com que costuma rematar as suas animadas lides. Ninguém adormece enquanto ela está numa arena. E essa é a vibração maior dos seus triunfos. Conquista sempre o público - e ontem voltou a ser assim.
Parreirita Cigano deixou-se dormir na fila depois de um promissor arranque da sua carreira - que chegou a ter grande fulgor nesta praça. Procura aos poucos reconquistar o lugar por que estava a lutar e Pombeiro fez bem em lhe dar esta oportunidade de voltar a Lisboa. O toiro não complicou, apesar de manso. Parreirita abusou da velocidade nos três compridos (começou com atitude, com uma sorte de gaiola que não resultou em pleno) e nos curtos, o que retirou brilho à lide. Já no final, foi buscar o cavalo dos quiebros e fez explodir o público com o primeiro, em terrenos de compromisso. O segundo já não foi igual, mas ficou a vontade e o querer de um jovem em que continuo a acreditar.
Bem, na generalidade, todos os bandarilheiros que integraram ontem as quadrilhas dos cavaleiros. Sem capotazos excessivos, só mesmo os suficientes, com empenho, saber e valor.
Lara Gregório de Oliveira dirigiu com muito acerto e a exigência que se tem que ter numa praça de primeira como a de Lisboa. Nota alta para a jovem directora.
Com o calor e o entusiasmo que foram sempre apanágios da sua desmedida aficion, Maurício do Vale tem sido o locutor de serviço na Catedral. Entendo e aplaudo esse seu contagiante entusiasmo, sempre a puxar pela Festa e pelo esplendor que lhe devemos dar. Mas não convém exagerar - para não parecer que, às tantas, estamos no Poço da Morte da saudosa Feira Popular. E também convém esperar que os toureiros e forcados atravessem no final a arena e recebam - em condições - as ovações do público, não sobrepondo a esse momento solene o anúncio das próximas corridas.
Mais nada. E gostaram da minha máscara? Temos que sorrir, mesmo em tempos de incerteza e angústia como os que vivemos desde Março.
Foto M. Alvarenga