Meu Querido João Cortesão,
É para ti, nem podia deixar de o ser, a crónica - ou reportagem, mas não crítica tauromáquica, que isso sabias tu fazer e eu não sei... - da grande corrida com que o nosso Pombeirinho encerrou ontem a temporada do Campo Pequeno.
Esta era a tua corrida - a corrida dos teus meninos. A corrida por que tanto esperaste. E por que tanto lutaste nos últimos anos. Foste um Homem de justiça, amigo do seu amigo. Podiam apontar-te muitos defeitos, tinhas tão poucos, mas nunca ninguém poderá dizer que não foste um amigo sincero e verdadeiro dos teus amigos - por quem davas a cara, por quem lutavas, por quem ias até ao fim do mundo.
Lutaste até ao fim para que fosse feita justiça ao teu grupo de forcados, ao grupo onde te iniciaste e que depois foi capitaneado pelos teu dois filhos António e Jaime. Fez-se justiça - mas quase já nem deste por isso. Lutaste para que o teu grupo, o dos Académicos de Coimbra, o das capas negras e das jaquetas azuis, se apresentasse um dia no Campo Pequeno. Moeste a cabeça ao Pombeiro. E depois já cá não estiveste para os ver e aplaudir.
E olha que tinhas gostado, João, os teus rapazes foram, no campo da forcadagem, os grandes triunfadores da noite. Dois pegões à primeira a cargo de Francisco Gonçalves e João Tavares, tendo este último ganho o prémio que estava ontem em disputa para a melhor pega. E o grupo esteve fantástico a ajudar. Foi mesmo uma noite de triunfo grande. Eles lembraram-se de ti, tenho a certeza. E o Jaime lá estava, fardado, como noutros tempos. A honrar a tua memória.
Lembrei-me imenso de ti durante a noite toda. Sabes, aprendi imenso sobre toureio a cavalo assistindo a corridas a teu lado. Sabias da arte a potes.
Ontem tinhas gostado, porque tu gostavas do bom toureio a cavalo, das duas grandes actuações do fantástico Luis Rouxinol. Nunca perde, nem a feijões. E ontem elevou bem alto a bandeira da sua arte e da sua comprovada maestria, assim como quem diz "está cá o Pablo, mas eu também estou!". E olha que esteve!
O público, que quase enchia a lotação (não permitida) do Campo Pequeno - quero dizer, os lugares possíveis estavam todos ocupados, mas dava a impressão de que a praça estava cheia a sério! - levantou-se a aplaudir as duas lides triunfais de Rouxinol. Brilhante no primeiro toiro, cravou na recta final da sua actuação um ferro de palmo fabuloso. No segundo toiro, deu um show com o cavalo-craque. O Luis esteve acima da média. Já não precisa de provar nada a ninguém - mas prova todos os dias o valor tremendo desse seu coração toureiro. É um campeão, sempre um campeão. Toureiro grande!
Não eras propriamente um grande admirador do Pablo Hermoso, isso eu sei (às vezes eras irritantemente embirrento). Mas eu sou. E ontem esteve memorável. Foram duas sinfonias de arte, de temple, de bom toureio - e com toiros de verdade. Os Charruas foram suaves, nobres, tiveram mobilidade, transmitiram e quase todos cresceram ao castigo, não dando tréguas. Não foram fáceis para os forcados, foram exigentes e pediram contas. Toiros que deram espectáculo, permitiram espectáculo e, dentro da linha actual da ganadaria, sem serem demasiado duros, mas também não demasiado "murubes", proporcionaram lides extraordinárias aos três cavaleiros.
O público aplaudiu de pé. O maioral da ganadaria veio à praça logo no segundo toiro e no sexto deu volta à arena com o João Moura Caetano e o forcado-triunfador João Tavares (dos teus Académicos de Coimbra), o Diogo Charrua, neto do saudoso António Coelho Charrua e sobrinho do Gustavo, a nova geração de tão afamada ganadaria. Quando o público gosta e aplaude, quando uma praça se levanta em peso a ovacionar toureiros e forcados, está tudo dito e não venham agora os entendidos cá do burgo dizer que os toiros não prestavam... O público é quem mais ordena, não é, João?
Voltando a Pablo Hermoso. O seu primeiro toiro levou dois ferros, parecia extraordinário, mas denotou algumas deficiências de locomoção e o público protestou logo. O director e o médico veterinário optaram por mandá-lo de volta aos currais. Decisão discutível. Mas quem manda, pode.
Pablo lidou então aquele que seria o seu segundo toiro, com mobilidade, alguma agressividade e muita nobreza. O toiro que foi recolhido já tinha levado dois ferros, legalmente estava "lidado", não havia obrigação alguma de o substituir, azar, paciência. Mas o empresário fez questão de que isso acontecesse, numa atitude de respeito pelo público e depois de ter tido o acordo dos dois cavaleiros que alternavam com Hermoso.
Lide fantástica, onde, como de costume, até pareceu que tudo o que fez é fácil. Pablo Hermoso tem, desde há muitos anos, pelo seu tremendo valor, mas também pela sua imensa classe, o público português a seu lado. Pode mesmo dizer-se que é um ídolo da nossa aficion. Às vezes não concordavas com isso, eras embirrento e teimoso, João - mas ontem tinhas-te rendido, tinhas mesmo (penso eu...).
O segundo toiro de Pablo era um dos quatro sobreros com que ontem o nosso Pombeiro assegurou o espectáculo, não fosse o diabo tecê-las - e teceu-as mesmo. O primeiro toiro de Pablo foi devolvido aos currais e o segundo de Rouxinol também, este por ter entrado na arena completamente descontrolado...
Também tinha qualidade este segundo toiro do rejoneador navarro E Hermoso voltou a pintar na arena quadros de uma grande maestria. Brega templada, ferros de emoção, recortes de bom gosto e "ladeios" perfeitos, num palmo de distância do toiro, em terrenos de compromisso. Lide magistral, Pablo Hermoso a reafirmar o trono.
Ontem, João, tinhas adorado ver o teu querido João Moura Caetano. Sei quanta estima e amizade tinhas por ele, pelo Paulo e por toda a família. E o João esteve enorme nos dois toiros. Foi, e por isso sei o que terias gostado de estar ali, acho eu, a melhor de todas as grandes noites que o João já nos proporcionou no Campo Pequeno. E houve tantas mais.
Está um Toureiro de se lhe tirar o chapéu. Lembras-te que te brindou em Maio na Azambuja, naquela que foi a tua última corrida? Pois tenho a certeza de que ontem ele se lembrou de ti. Talvez mesmo te tenha brindado, em pensamento, este inolvidável triunfo de cátedra que viveu no Campo Pequeno.
Brindou a primeira lide ao nosso Pombeiro e a segunda à irmã, à Maria, em nome da sua importante e triunfal participação nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Logo nos compridos, nos dois toiros, o segundo foi esperá-lo à porta da gaiola, o João mostrou que estava ali para sair em triunfo numa noite de "aperto" ao lado de dois figurões consagrados do toureio a cavalo. Depois, com os magníficos cavalos da sua quadra, com o "Campo Pequeno" bordou o toureio, deu dois recitais de bem tourear, com aquela calma, aquela tranquilidade, aquele temple e aquela suavidade ontem também o difícil perece a coisa mais fácil deste mundo.
O público levantou-se, não regateou aplausos ao João. E no final, como acontecera com Rouxinol e com Pablo, deu uma volta à arena, das antigas, daquelas que entretanto foram eliminadas pelas regras da pandemia, mas que ontem se justificaram em pleno e às quais não se opôs, com aficion e justiça, o director de corrida Fábio Costa.
Feitas as contas, João, foi uma grande corrida de toiros. Só tu ali fizeste falta. E lembrei-me tanto de ti, meu Querido João!
As cinco corridas anteriores da temporada do Campo Pequeno foram todas, no plano artístico, muito boas, até a dos matadores. Mas, exceptuando a primeira e a dos Mouras, as outras tiveram muito pouco público, parecia que qualquer coisa não batia certo entre o público e a primeira praça do país. Nesta última, o pessoal reconciliou-se com o Campo Pequeno, encheu a praça, sairam todos satisfeitos com tanta arte e tanta emoção. Há toiros para isto e toiros para aquilo - e isso tu sabias bem. Os de ontem serviram para o grandioso espectáculo que nos proporcionaram Rouxinol, Hermoso e Caetano, Toureiros de outra galáxia. Foi bom. E quando o público sai de uma praça satisfeito, foi porque o espectáculo foi bom - e foi grande. O de ontem foi mesmo, João.
Os teus meninos triunfaram. Foi deles a noite no campo da forcadagem. Mas não posso deixar de enaltecer também as actuações dos grupos de Arronches e de Monforte - de que já aqui disse tudo na madrugada de hoje. Menos bafejados pela sorte, mas com a dignidade e o valor que sempre os caracterizou.
A primeira pega dos forcados de Arronches, por Luis Marques, foi também uma pega enorme. A segunda, por Rodrigo Abreu, à quinta, foi uma pega menos brilhante, mas em que há que louvar o estoicismo e a valentia do forcado - que nunca virou a cara. Os Amadores de Monforte fizeram uma pega à terceira (João Falcão) e outra à segunda (pelo consagrado Vitor Carreiras, que brindou ao João Moura Júnior) - mas a realidade é que os três grupos marcaram com imensa dignidade as suas presenças nesta última corrida do ano em Lisboa.
Bem estiveram também os bandarilheiros dos três cavaleiros: o Manuel dos Santos "Becas" e o João Bretes, o José Grenho e o Ricardo Raimundo, o Pedro Paulino "China" e o João "Belmonte". Nem sempre compreendidos pelo público, mas sem exageros nas intervenções durante as lides e com eficácia nas colocações para as pegas.
Acabou em beleza a temporada do Campo Pequeno. Ainda não sei, João, vou pensar muito neste Inverno, se terá acabado ontem também (eu quero, mas...) a minha andança de mais de quarenta anos por este mundo dos toiros, de que estou saturado. Logo vejo. Depois digo-te. Vou abraçar outros projectos.
Deixo-te um abraço, meu Querido João. Ontem não quis chorar - mas olha que me apeteceu. De alegria, pelo triunfo dos teus meninos. Que foi também um grande triunfo teu.
A seguir, não perca, os Momentos de Glória dos três cavaleiros triunfadores da noite de ontem no Campo Pequeno.
Foto D.R.