segunda-feira, 2 de maio de 2022

Corrida fora do normal no Cartaxo: apoteótica reaparição de João Salgueiro e triunfo de afirmação de Duarte Fernandes


Miguel AlvarengaA corrida de hoje no Cartaxo, com três quartos fortes da lotação da praça preenchidos, foi uma tarde absolutamente fora do normal, diferente, sem ser "mais do mesmo" e daquelas que fazem aficionados. 

Afinal, há coisas diferentes que se podem fazer (haja imaginação e ousadia para as pôr em prática) para mexer com a Festa e não deixar que isto morra por obra e (des)graça do marasmo em que vive, com os cartéis sempre iguais, com uma falta de imaginação gritante dos empresários-que-temos. Depois admiram-se que o público não vá, que as casas fiquem às moscas...

Esta nova empresa da praça do Cartaxo, a Associação "Praça para Todos", composta por forcados, ex-forcados e aficionados da terra, à semelhança do que se passa em Santarém e também em Coruche, apostou na diferença. E ganhou. Montou um cartel distinto do habitual, desafiou o génio João Salgueiro a reaparecer, juntou duas dinastias das mais fortes e o resultado esteve à vista: praça quase cheia. E um espectáculo deslumbrante, que não cometo nenhum erro se disser que, até ao momento, foi a grande e mais marcante corrida da temporada.

Eu explico: fui há dias ver o filme "Salgueiro Maia - O Implicado" e gostei imenso. Mas seria doido se agora todos os fins-de-semana fosse ver o mesmo filme outra vez. E os nossos aficionados, que continuam a ser os melhores e os mais pacientes do mundo, ainda têm pachorra para todas as semanas ir ver os mesmos toureiros nos mesmos cartéis. Irra!

O cartel desta tarde no Cartaxo era outro. Distinto. Inovador. Atractivo. E até tinha dois toiros para lidar a duo, uma fórmula que caiu em desuso e que os puritanos (ou antes, os Velhos do Restelo) criticam e não toleram. Pois eu, gosto. Quando uma lide a duo tem ritmo, compasso e emoção como tinham as dos irmãos Ribeiro Telles e, noutros tempos mais ido, as dos irmãos Peralta, e hoje tiveram as dos Salgueiros e dos Fernandes, o público diverte-se, desfruta de um grande espectáculo e sai satisfeito da praça. Vê, pelo menos, coisas diferentes do normal.

Podem-se fazer coisas diferentes, repito, para tentar renovar a Festa e sacá-la do marasmo, do sempre igual em que hoje vive. Este grupo de aficionados do Cartaxo fê-lo. Parabéns pela obra! Estamos todos fartos de ver sempre os mesmos cartéis. Ontem foi tudo diferente.

Lidaram-se seis toiros da ganadaria Passanha. Menos apresentáveis os dois primeiros, mais toiros os quatro seguintes. Exceptuando o reservado segundo toiro, andarilho, incómodo, de investidas estranhas, os outros cinco tiveram nota alta.

A reaparição de João Salgueiro (não toureava na praça do Cartaxo há onze anos) foi um verdadeiro monumento à arte de bem tourear a cavalo. Recebeu o primeiro toiro dobrando-se com ele no centro da arena, dando-lhe capotazos com o cavalo até o parar e o colocar para cravar um grande ferro comprido. Depois abriu o livro e deixou o público em alvoroço com uma lide monumental, à antiga, a fazer lembrar o génio de outros tempos - e de sempre. Um triunfo histórico e um regresso verdadeiramente apoteótico. Quem sabe, nunca esquece. E Salgueiro está outra vez pronto para a guerra, como se estivesse a tourear todos os dias. Um espanto!

A Rui Fernandes coube, em segundo lugar, a fava do curro de Passanha, um toiro andarilho, que se parava no momento do ferro, que incomodava, que não foi certo nas investidas. Com maestria e saber, Rui deu-lhe rapidamente a volta e chegou ao público com uma lide temerária, de muita entrega e muito profissionalismo, com ferros emotivos e remates ousados, brega perfeita e domínio total.

O terceiro Passanha coube a João Salgueiro da Costa, que esteve decidido e bem a lidá-lo, deixando de início um segundo comprido muito traseiro, mas depressa se emendando e se superando, entusiasmando o público com uma lide desenvolta e de rigor técnico. É um toureiro que despertou finalmente nas duas últimas temporadas e chegou por fim a uma posição há muito prometida. Está agora na linha da frente.

Duarte Fernandes obteve no quarto toiro um triunfo marcante - e deveras importante nesta fase inicial da sua promissora carreira. O toiro foi bom, teve mobilidade, transmitiu e o jovem Duarte virou a praça de pernas ao ar com uma actuação galvanizante, cheia de ritmo e de pormenores de bom toureio. É ousado, pisa a linha de fogo, emociona e rapidamente chega ao público pela verdade e emoção que impõe nas sortes. Um triunfo importante e uma grande chamada de atenção aos empresários e ao público. Toureiros como ele mexem com a Festa e fazem falta à necessária e urgente renovação dos cartéis. Duarte, não tarda, será um ídolo dos aficionados - não tenho a mínima das dúvidas.

As lides a duo de João Salgueiro e seu filho e de Rui Fernandes e seu sobrinho foram dois grandes espectáculos pela sintonia em que os cavaleiros estiveram, levando o público ao rubro em actuações cheias de ritmo, de alegria, de movimento e, sobretudo, de bom toureiro. Os duetos fecharam com chave de outro uma tarde que fica na história desta temporada e que se impõe ser repetida. Renovo os meus aplausos à nova comissão gestora da centenária praça ribatejana por ter conseguido marcar a diferença.

Aplausos também para os bandarilheiros das quadrilhas dos quatro cavaleiros, que não abusaram de capotazos nas lides e estiveram empenhados - e com valor - na colocação dos toiros para os forcados, tendo ontem tido trabalho de sobra. Olés para Cláudio Miguel, Miguel Batista, Diogo Vicente, Hugo Silva, João Santos "Serranito", Pedro Paulino "China", Tiago Santos, Miguel Maltinha e Diogo Damas.

Os toiros foram recolhidos a cavalo, à maneira antiga, pelos briosos campinos João Inácio "Janica" e Manuel Gordo.

Não foram fáceis as pegas. Os Passanhas deram que fazer aos três grupos de forcados - Coruche, Cascais e Cartaxo. Mal sentiam o forcado na cara, despejavam-no com violência, estilo "ventoinha". Houve uma única pega ao primeiro intento, a pega da tarde, feita por João Galamba dos Amadores de Cascais. Mais logo, ao longo do dia, analisarei aqui em pormenor as pegas e vou mostrar-vos as sequências fotográficas das seis.

A corrida, muito bem dirigida por Manuel Gama, que esteve assessorado pelo médico veterinário Luis da Cruz, iniciou-se com um minuto de silêncio em memória dos forcados Miguel Afonso (do grupo do Cartaxo), João Costa Pereira (ex-cabo dos Amadores de Coruche) e Vitor Santos (do grupo de Cascais), falecidos recentemente.

A atestar o grande êxito da corrida, a mesma acabou com os quatro cavaleiros na arena, dando volta e recebendo do público calorosos aplausos (foto de cima). Houve enorme ambiente, muitas caras conhecidas nas bancadas e um grande entusiasmo em torno de um cartel diferente, de quatro cavaleiros que proporcionaram uma tarde fora do normal. A melhor da temporada, até aqui. 

Fotos M. Alvarenga

João Salgueiro: o génio voltou em grande!
Rui Fernandes: a marcar a diferença, como em Setembro na Moita
João Salgueiro da Costa: de frente e em frente!

Triunfo marcante e memorável de Duarte Fernandes
Salgueiros e Fernandes (em baixo) galvanizaram o público
nas lides a duo que fecharam com chave de outro aquela que
foi, até agora, a grande corrida da temporada!