segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Nuno Santana: a última entrevista do Grande Forcado antes do adeus às arenas

Histórico forcado dos Amadores de Alcochete há vinte e três anos, cabo há oito, Nuno Santana despede-se das arenas no próximo domingo, dia 11 de Agosto, com 36 anos, na tradicional corrida Concurso de Ganadarias da Feira do Toiro-Toiro em Alcochete. É o quinto cabo do grupo, depois de João Mimo (o fundador, que o comandou desde 1971 até 1984), de António Manuel Cardoso “Nené” (de 1984 a 1995), de João Pedro Bolota (de 1995 a 2007) e de Vasco Pinto, seu primo (de 2007 a 2016), tendo assumido a chefia em 2016.

Em miúdo, queria ser toureiro a pé, chegou a frequentar uma escola para futuros matadores que existia no Montijo, mas a realidade é que o destino lhe havia de traçar a carreira de forcado, a que dedicou 23 dos seus 36 anos. 


Em casa e em família não se falava de outra coisa. O pai foi forcado do Montijo. E Nuno é sobrinho de Francisco Marques “Chalana” (histórico elemento do Grupo de Alcochete), filho de uma irmã. A outra irmã de “Chalana” (ex-Mulher do também emblemático forcado António José Pinto) é a mãe de Vasco Pinto, ex-cabo a que o Nuno sucedeu e de quem é primo direito. 


Havia forcados por todos os lados na família. O futuro estava por isso traçado e bem traçado. Pegou o primeiro toiro com apenas 13 anos de idade na praça de Vila Franca, um toiro de José Lupi com maios de 500 quilos, numa corrida formal. Nesse primeiro ano como forcado, pegou oito toiros.


Nuno Santana não foi um forcado qualquer. Foi - é -, apenas e só, um dos maiores forcados dos últimos vinte anos. Pegou, recorda, “à volta de 120 toiros” em Portugal continental e nos Açores, em França, México, Canadá e Espanha.


Passou “não sei quantas vezes” pelas salas de operações. “Fui operado aos joelhos, ao nariz, a uma perna, parti costelas, tive uma luxação no ombro, uma fissura na bacia e no externo, fracturou o tornozelo há um ano, sofri vários traumatismos cranianos… acho que já chega!” - diz-nos.


Diz que a conjuntura actual, a própria sociedade, está diferente dos tempos em que sue iniciou como forcado. Se há grupos a mais, não sabe, lembra que “se calhar, há vinte anos também já havia grupos a mais”, mas lamenta que grupos mal preparados vão pegar toiros em corridas de prestígio e grupos como o de Alcochete cheguem a esta altura da temporada com apenas cinco corridas, quando antigamente faziam trinta por ano. Qualquer coisa não bate certa e Nuno Santana não entende como foi possível ter-se chegado a esta situação. Defende que é preciso meditarmos todos e mudarmos a tauromaquia.


No próximo domingo, fará a última pega e entrega o grupo a António José Cardoso, filho do saudoso cabo “Nené”. Vira-se uma página na história do Grupo de Amadores de Alcochete e fecha-se um capítulo da vida do Nuno - um capítulo de glória que todos aplaudimos, respeitamos e aclamamos como fantástico. 

A última entrevista - Adeus, Forcado!


Entrevista de Miguel Alvarenga


- Forcado porquê, Nuno, por ter nascido em Alcochete e em Alcochete todos os miúdos que nascem são forcados?…

- (Risos) Não… até posso dizer que o meu sonho, o que eu queria, desde miúdo, era ser toureiro a pé, até andei naquela escola que fundaram no Montijo e esse era o meu sonho, não era ser forcado. Mas na verdade não me lembro da minha vida sem os forcados, sem aquele convívio dos treinos, das corridas, de irmos ver os toiros ao campo. Com o meu tio “Chalana”, com os meus primos Vasco Pinto e Valter, que já integravam o Grupo de Alcochete, já pegavam. O Vasco foi o cabo a que sucedi, o Valter é filho do meu tio “Chalana” e também foi forcado do grupo, mas menos tempo. Eles foram os meus alicerces de princípios e valores referentes ao grupo. Pegava vacas no final dos treinos, quando tinha os meus oito anos. E a partir dos 13 anos comecei a fardar-me e a pegar…


- Com 13 anos?

- Sim, peguei o primeiro toiro com 13 anos na praça de Vila Franca. 


- Numa novilhada?

- Não, não, numa corrida normalíssima, com toiros de José Lupi. Até me lembro que quando cheguei à praça comecei a pensar que me tinham fardado por graça, só por fardar, nunca para pegar… o toiro mais pequeno pesava 540 quilos, nunca mais me esqueci. Mas acabei por pegar e correu-me bem. Nessa primeira temporada peguei oito toiros, foi bastante gratificante. Foi uma honra ter entrado para o Grupo de Alcochete e ter pegado logo oito toiros na primeira temporada. O meu sonho, ao tempo, era só vestir a jaqueta. Não só a vesti como fiz oito pegas com apenas 13 anos de idade!


- O seu pai também foi forcado, não foi?

- Sim, mas foi forcado no Grupo do Montijo. Brindei-lhe o meu segundo toiro, a minha segunda pega. O meu pai era uma pessoa muito reservada e pacata e lembro-me de lhe estar a brindar e ele a dizer-me: “Não te despaches, não…”. E dizia-me sempre: “Quando levares a primeira a sério, vens-te logo embora…”


Com o tio "Chalana" e o primo Vasco numa corrida de aniversário
do Grupo de Alcochete


- E levou várias a sério, não foi?...
- Várias! Muitas a sério! Estou todo marcado… Mas nunca fui embora. Foram 23, 24 anos de forcado e de dedicação ao Grupo de Alcochete, quinze como forcado e oito como cabo. É uma grande prova de amor, de servir e de aprender a servir uma causa. Para mim, o Grupo de Forcados Amadores de Alcochete é uma Família e eu estive e estou aqui estes anos todos somente para servir o grupo com a maior descrição e dedicação possível.


- O Nuno aprendeu com os antigos e depois aprendeu a formar os novos…

- Não é fácil, a conjuntura cada vez é mais difícil, porque a sociedade em si está diferente. Antigamente vivia-se a vida de forcado com uma intensidade muito forte e hoje não é igual, porque há muitas outras coisas, outras diversões, outros hobbies, outra maneira de ver a vida. O que nos compete a nós, antigos forcados, ex-cabos, é fazer prevalecer os nossos valores, ensinar a respeitá-los. O Grupo de Alcochete é um grupo especial, um grupo que enfrenta duas mortes na arena (a de Helder Antono e a de Fernando Quintella) e que segue em frente, com os mesmos valores, com os mesmos pergaminhos, com os mesmos princípios, tem que ser especial. Não desejo isso a ninguém, são momentos muito difíceis e, infelizmente, passei por isso. O Fernando Quintella morreu no meu primeiro ano como cabo.


Há oito anos, quando assumiu o comando, com os ex-cabos "Nené", João Pedro Bolota e Vasco Pinto


- Apesar de tudo isso, ao fim deste anos todos, valeu a pena ser forcado, Nuno?

- É uma pergunta que eu faço a mim próprio, agora no fim da minha carreira. Valeu, sim. Mas não posso dizer isto sem afirmar que trocaria toda a minha glória, que não é minha só, é de todo o grupo, pela infelicidade que tivemos (a morte do Fernando Quintella) e que eu vivi tão de perto e tão intensivamente, porque era o cabo e era o meu primeiro ano como cabo. Faz-me muita confusão que existam forcados, aprendizes de forcados e forcados entre aspas que respeitam pouco e não dignificam a figura do forcado, quando depois pensamos no que aconteceu, quando acontecem casos como estes. Foi muito difícil, são coisas que espero que não batam à porta de ninguém como bateram à nossa.


- Noutros tempos, havia seis ou sete grandes grupos de forcados e hoje há muitos grupos. Acha que há grupos a mais, que há grupos sem razão de existirem?…

- Os grupos bons continuam a existir, acho que há bons forcados em todos os grupos, mas a estrutura e a conjuntura dos grupos nem toda é boa. E há grupos antigos que não têm hoje um grupo de forcados consistente, têm 12 ou 13 forcados. E há outros que têm 40 ou 50 e por isso pegam mais. É difícil afirmar se há grupos que estão a mais ou a menos, porque ninguém é mais que ninguém, mas para a conjuntura actual da tauromaquia, são grupos a mais. Mas se calhar também já havia grupos a mais há vinte anos... Não é mau que existam, tudo é bom para promover a tauromaquia, mas depois, a qualidade do espectáculo não é tão boa…


- Justifica-se que grupos como o seu, e outros, tenham pegado três ou quatro corridas até aos dias de hoje, num momento em que já passámos para lá da metade da temporada?…

- Não consigo explicar. Afecta-me a mim e ao grupo pensar como é possível que só tenhamos cinco corridas e estamos em Agosto, quando estávamos habituados a pegar trinta corridas por temporada e hoje em dia pegamos quinze ou dezoito… ou dezasseis. Não sei o que se pode fazer ou trabalhar para pegar mais. Hoje em dia, um cabo é quase um relações públicas do grupo e se noutras vertentes da sociedade isso tem um valor, e até mesmo no nosso meio era respeitado antigamente, hoje em dia aqui na tauromaquia é tudo diferente. Para usar uma expressão popular, não temos que andar a “lamber as botas” aos promotores de corridas, nunca foi assim. E disse promotores porque alguns não são sequer empresários, são só promotores. Não se percebe como é que certos grupos mal preparados vão pegar determinadas corridas e corridas de prestígio, mas a verdade é essa… o Grupo de Alcochete, por exemplo, não pega no Campo Pequeno desde a pandemia…



- Entrega a António José Cardoso, filho do saudoso cabo “Nené”, um bom grupo, em grande forma…
- Sem dúvida. Há elementos muito válidos, todos eles na ascensão da carreira, não estão no fim das suas carreiras, têm poucos anos de forcados. Há só uma coisa que pode sempre dificultar, que é constatarmos que os da geração anterior foram, de facto, muito bons, muito bons mesmo. Por isso, todos têm que trabalhar muito para chegar ao nível, tanto do grupo, como ao nível dos grandes forcados da geração anterior. Mas isso também é bom, dá-lhes a ambição e o querer de serem tão bons como os outros foram. Houve muitos forcados que passaram pelo nosso grupo e que marcaram não só a sua história, como a própria história da tauromaquia. E isso é sempre uma vertente muito boa para dar ânimo aos novos.


- Vai ser a primeira vez que um cabo do grupo se despede na tradicional corrida Concurso de Ganadarias, uma corrida muito especial para os Amadores de Alcochete… algum motivo especial para que isso aconteça, Nuno?

- É, de facto, a primeira vez que um cabo do nosso grupo se despede no Concurso de Ganadarias. É uma corrida especial para o grupo e por isso decidi fazer a minha despedida nessa corrida, até porque foi a corrida em que peguei mais vezes, uma das corridas que mais me diz e que tem um significado muito especial para mim. Normalmente o Grupo de Alcochete fazia uma corrida especial para a despedida do cabo, eu decidi que me despedia no Concurso, por tudo o que disse antes.

 

- Vão-se fardar forcados antigos?

- Os forcados antigos estão sempre preparados para tudo. Basta lembrarmos que forcados como o “Nené”, o meu tio António José Pinto e outros, pegaram sempre nas corridas de aniversário do grupo, em que se lidaram toiros duros. No Concurso de Ganadarias também se lidam sempre toiros duros, não quero dizer que os antigos elementos não estivessem preparados para isso, mas não, não se vão fardar, vai ser uma corrida normal, como são sempre as encerronas do grupo no Concurso de Ganadarias com o grupo actual, sem forcados antigos. Como forcado, o dia mais especial do ano para mim foi sempre esta corrida Concurso de Ganadarias. E vai voltar a sê-lo no dia 11.


- A quem vai brindar a última pega?

- Boa pergunta! Tenho a minha ideia, não a vou a dizer, mas será certamente às pessoas que já nos deixaram e uma pessoa muito especial, que acompanhou sempre a minha carreira e que é, provavelmente, a pessoa mais importante para mim no Grupo de Alcochete.


- Acabou de ser pai há três semanas, Nuno. De um filho. Gostava que ele também fosse forcado?

- Gostava, se a conjuntura fosse igual à que existia quando eu me iniciei. Se houvesse o purismo e os valores que se praticavam nessa altura e que hoje em dia são difíceis de introduzir no dia a dia. Mas o que mais desejo é que tenha saúde e seja feliz e que seja aquilo que quiser, mas que seja qualquer coisa que o faça feliz e que eu esteja cá para o acompanhar.


Na Monumental do México, à frente do Grupo de Alcochete

- Nuno, uma palavra de despedida na hora do adeus às arenas…

- Eu pensava que podia ser um momento de nostalgia, um momento muito pensativo, já faltam poucos dias e, para trás, ficam vinte e três anos, quinze como forcado e oito como cabo. Tenho 36 anos, foi uma vida inteira dedicada aos forcados e ao Grupo de Alcochete. Sinto que não estou muito nostálgico, mas o que desejo é que se encontre um mundo melhor para a tauromaquia evoluir. Não sei se isso tem que partir dos promotores dos espectáculos, se dos agentes da tauromaquia, toureiros, forcados, ganadeiros, de todos nós, mas a realidade é que todos deveríamos olhar o futuro e fazer um conjunto de acções, uma bola de neve, para que se renove a nossa Festa. Não pode ser, como tem sido nos últimos anos, cada um a puxar para o seu lado, cada um a puxar só pela sua praça, a olhar para o seu umbigo… Acho que o futuro não será fácil se não pararmos um pouco e meditarmos e procurarmos fazer melhor.


Fotos M. Alvarenga, Emílio de Jesus/Arquivo e D.R.