Miguel Alvarenga - Com o profissionalismo e a eficácia que o caracterizam e ao longo dos anos têm demonstrado que, afinal de contas, não é preciso mais que isso para marcar a diferença e fugir à aflitiva mediocridade que é a tónica dominante da actual classe (pseudo)empresarial taurina lusitana, Rui Bento conseguiu uma vez mais encher até às bandeiras a carismática praça de toiros da Nazaré na noite de sábado, proporcionando aos aficionados uma noite fantástica de aficion e bom toureio, de glamour e entusiasmo, mas sobretudo de emoção.
Uma onda de emoção ao mesmo nível da onda gigante que pôs a Nazaré nas bocas do mundo. Rui Bento foi mais longe e já conseguiu colocar a praça da Nazaré no topo das praças de toiros nacionais.
Duas lotações replectas, dois cartéis fora do normal, bem imaginados, bem rematados, diferentes, a fugir ao "mais do mesmo" de quase todas as praças, candidatam a emblemática e tão distinta praça da Nazaré, nesta marcante temporada de 2024, ao primeiro lugar dos palcos taurinos deste país.
E são várias as conclusões e as ilacções que podemos - e devemos - retirar do fenómeno vivido este sábado na Nazaré.
Primeiro, o toureio a pé enche praças, ao contrário do que defendem alguns profetas da desgraça. Encheu praças em anos anteriores com a presença de Morante de la Puebla (que em Setembro volta à Moita). Encheu Santarém com Roca Rey, que é o maior "enche-praças" da actualidade. Encheu a Nazaré anteontem, com a nova figura do toureio do momento, o sevilhano Borja Jiménez, triunfador máximo da Feira de Santo Isidro em Madrid; e com a maior promessa do nosso toureio a pé, o novilheiro da moda Tomás Bastos.
É preciso que se entenda: o toureio a pé só não enche praças, antes pelo contrário, quando os cartéis - e os diestros anunciados - não têm o interesse que têm neste momento Roca Rey, Borja Jiménez ou o jovem Tomás Bastos, para citar apenas estes três protagonistas das mais recentes enchentes em corridas com matadores.
Por isso, não mintam, senhores empresários. Não queiram tapar o sol com uma peneira para justificar os vossos fracassos com corridas mistas que não encheram porque não tiverem motivos para encher. Estas que acima referi, Santarém e Nazaré, tinham motivos de sobra para chamar público às bancadas. E por isso encheram. O resto, são conversas... Da treta.
Outra ilacção importante que podemos - e devemos - retirar do sucesso deste sábado na Nazaré - dar corridas só por dar, apenas para cumprir data ou assumir compromissos a que se está aprisionado, não tem nada a ver com organizar corridas com profissionalismo, com saber e com arrojada ousadia, como faz Rui Bento - marcando a diferença. E como fazem poucos mais empresários lusitanos.
Uma corrida de toiros - ou qualquer outro tipo de espectáculo - é um sucesso garantido quando os protagonistas têm predicados que atraem público - sábado, na Nazaré, todos os tinham, desde os cavaleiros Ribeiro Telles, ao matador Borja Jiménez, ao novilheiro Tomás Bastos, ao grupo de forcados de Vila Franca, aos toiros que estavam anunciados, de Condessa de Sobral para as lides equestres, de Manuel Veiga para as faenas dos matadores. E sobretudo quando o empresário se empenha na cuidada e atraente promoção do evento - como Rui Bento tem feito em todas as corridas desta praça e das outras onde esteve e onde está.
Quando todos estes factores se juntam e se conjugam, as corridas fazem História, marcam as temporadas, enchem de esplendor e de glamour a tauromaquia. E foi isso que aconteceu no sábado na Nazaré.
Artisticamente, posso afirmar, sem dúvida alguma, que foi uma das melhores, se não a melhor, corridas desta temporada, pelo menos até ao momento.
Os toiros da ganadaria Condessa de Sobral, hoje propriedade do ganadeio espanhol Manolo Vásquez (estava na Nazaré, entre a assistência, o seu antigo proprietário, Joaquim Passanha), muito bem apresentados, com aplaudido trapio, foram exigentes, pediram contas, não foram fáceis. Eram toiros de verdade, com teclas e com transmissão.
António Ribeiro Telles, Mestre dos Mestres nesta arte, esteve algo distante de si próprio na lide do primeiro toiro, um exemplar daqueles que incomodam e põe os toureiros em sentido. António não deu nenhum petardo, mas esteve uns pontos abaixo do seu melhor.
António Filho é um jovem cavaleiro em ebulição e já deixou escrito que o futuro do toureio a cavalo passa por si - e pela sua muita arte. Também não era uma pêra doce, bem pelo contrário, o Condessa que lhe tocou como segundo toiro da noite. António desenhou uma lide perfeita, de risco, de raça. Brilhante.
O último toiro foi lidado a duo por pai e filho. Outro toiro duríssimo, que fez o Mestre passar um mau bocado num forte aperto contra as tábuas que só por sorte não acabou em queda, mas que acabou por ser uma lide emotiva, de entusiasmo, com o pai a superar-se e o filho a afirmar-se.
Outra ilaçcão: o público não é contra as lides a duo, antes pelo contrário. O que nem sempre acontece é elas terem tanto sucesso como sempre tiveram, na História, as que foram protagonizadas por cavaleiros da Família Ribeiro Telles. António & António terminaram em beleza, com o público de pé a aclamá-los.
Nas pegas, os Amadores de Vila Franca estiveram à altura do seu elevado estatuto. André Câncio pegou o primeiro toiro na sua primeira intervenção, a dobrar Rafael Plácido, que saíu de maca depois de uma primeira tentativa em que foi fortemente derrotado. Felizmente, não sofreu nada de grave, apenas costelas fracturadas, segundo nos informaram no final elementos do grupo.
Pega dura e rija foi a segunda, consumada com brilhantismo por Vasco Carvalho, com uma ajuda superior de Rodrigo Dotti, chamado também para dar a volta à arena.
A terceira e última pega esteve a cargo de Lucas Gonçalves, que a executou com muita técnica e decisão ao primeiro intento, depois de brindar a todos os antigos forcados do grupo que no sábado o estiveram a apoiar na bancada.
Nas lides a pé, também houve afirmação e diferença: melhor dizendo, sairam à arena nazarena quatro toiros de Manuel Veiga que eram verdadeiramente toiros - e não novilhecos como os que, regra geral, acabam por retirar toda a importância e todo o possível brilho às presenças de alguns outros matadores espanhóis nas duas vindas às nossas praças - uma "boca" que não se aplica, haja justiça e fique esclarecido, a Morante e a Ferrera, que sempre têm enfrentado toiros-toiros quando por cá actuam. Mas o mesmo já não se pode dizer de outros... cala-te boca!
Borja Jiménez, valente e artístico toureiro de Espartinas, Sevilha, a terra de "Espartaco" (a que tanto se assemelha como toureiro e não só), é o toureiro do momento. Está toureadíssimo, num momento importante - e pode com todos os toiros.
Frente aos dois Veigas, de boa nota, com exigência e a pedirem contas ao matador, Borja Jiménez explicou bem por que razões é hoje um dos toureiros de maior interesse no panorama mundial.
Um aplauso especial para a sua humildade, para o facto de não ter, apesar de o ser, ares de vedeta eleita. Não só aceitou vir à Nazaré repartir cartel com um novilheiro, como ainda o apoiou e o empurrou, com ele repartindo quites de capote, respondendo um ao outro com os méritos de cada um, marcando esses tércios por alguma rivalidade de pureza e emoção.
Com a muleta, pelos dois lados, Borja Jiménez esteve enorme, empolgando, dando dois verdadeiros recitais de bom e emotivo toureiro. Assim se provoca o nascimento de novos aficionados.
Borja Jiménez foi saudado pelo público da Nazaré, antes de iniciar a sua primeira actuação, com uma calorosa ovação. Deu volta à arena no seu primeiro toiro e duas no segundo e no final saíu em ombros com Tomás Bastos e o cavaleiro António Telles Filho. Ficou a vontade de o revermos em arenas nacionais. Se fosse noutros tempos, era um instante enquanto estava no Campo Pequeno e se tornava ídolo da aficion portuguesa. Mas hoje tudo é diferente...
A actuar ao lado de um consagrado, acrescido, para mais, do peso de ser a figura mundial do momento, o jovem Tomás Bastos não se sentiu minimamente diminuído, muito menos amedrontado. Pelo contrário, agigantou-se, reafirmou e consolidou a imagem e o estatuto de que já desfruta entre o público do seu país - que continua a acreditar no seu futuro como um sucesso de eleição e relançamento da força e do esplendor que já teve entre nós o toureio a pé.
Tomás Bastos tem cara de menino e coração - e maneiras - de toureiro adulto. Afirmou isso e muito mais, outra vez., nesta noite de glória na Nazaré. Variado e artista com o capote, a responder à letra aos quites de Borja Jiménez, esteve depois valente e poderoso nos tércios de bandarilhas e mandão com a muleta.
Melhor o seu primeiro toiro, mais complicado o segundo, a que deu a volta, denotando já alguma maturidade e experiência, mas sobretudo uma enorme - e rara - intuição.
Voltámos todos a constatar que Tomás Bastos não é mais uma figurinha para morrer na praia, como outros que por aí prometeram muito e depois pifaram. Este tem fibra, tem raça e tem arte. Mais: tem coração e tem valor de sobra para chegar longe.
Borja Jiménez brindou a primera faena ao púbico e a segunda a Rui Bento, fazendo questão de o abraçar e lhe dedicar simpáticas palavras em plena arena; e Tomás Bastos brindou a primeira faena ao aficionadíssimo Padre Vitor Melícias e a segunda ao matador espanhol.
Uma nota final para aplaudir os bandarilheiros das quadrilhas dos dois Ribeiro Telles: João Ribeiro "Curro", António Telles Bastos, Miguel Maltinho e Fernando Fetal. Na quadrilha de Borja Jiménez esteve o eficiente João Martins, que lidou e bandarilhou com grande destaque, havendo também que enaltecer os bandarilheiros espanhóis do matador, José Luis Barrero e Vicente Varela; e na quadrilha de Tomás Bastos reapareceu em arenas nacionais o consagrado João Prates "Belmonte", que ultimamente tem baseado a sua carreira além-fronteiras integrado na quadrilha da rejoneadora francesa Lea Vicens.
A triunfal corrida da Nazaré foi bem dirigida pela competente e aficionada Ana Pimenta, assessorada pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva. Ao início da corrida, guardou-se um minuto de silêncio em memória do Maestro Paco Camino.
E dia 17 volta a haver corrida na Nazaré - desta vez para homenagear Rui Salvador, ao lado de Luis Rouxinol e de João Moura Júnior. Outra casa cheia!
Fotos M. Alvarenga