sábado, 3 de agosto de 2024

Paio Pires: parecia a Batalha de Alcácer-Quibir!...

A impressionante voltareta (efeito ventoinha) do cabo António
Pena Monteiro (Montemor) no primeiro toiro (de Pereda); e, em
baixo, o toiro "assassino" de Dolores Aguirre investindo para 
o capote de magia de Duarte Alegrete

Miguel Alvarenga - Não desapareceu El-Rei D. Sebastião, mas os (toiros) espanhóis - e também os portugueses! - deram ontem água pela barba aos valentes forcados dos grandes e consagrados grupos de Montemor e Lisboa e também em nada facilitaram a vida aos três cavaleiros - Gilberto Filipe, Miguel Moura e Tristão Telles Queiroz - na duríssima corrida (Concurso de Ganadarias) realizada na bonita e muito bem cuidada (e muitíssimo bem gerida) praça da Aldeia de Paio Pires, aqui mesmo ao lado de Lisboa, no concelho do Seixal. Uma noite "à antiga", daquelas que fazem falta para devolver a emoção e o risco à Festa.

Uma bonita praça onde não ia há muitos anos, nunca lá voltei desde que foi recuperada depois de vinte anos encerrada - e constatei ontem que é uma praça já de referência, graças ao brilhante trabalho que ali tem sido feito pela dupla Nelson Lopes/António José Casaca, antigos forcados do Grupo de Lisboa, membros do Departamento Taurino do Paio Pires Futebol Clube, sendo aqui o único caso (louvável!) em que um clube de futebol é proprietário e responsável pela gestão de uma praça de toiros.

Esta primeira sexta-feira de Agosto é, desde a reabertura da praça, a data tradicional da sua corrida - sempre cheia, como ontem aconteceu, numa praça diferente das outras, nesse aspecto parecida com a de Moura, onde não faltam bares em cima e onde muito público assiste à corrida desde essa zona exterior ao tauródromo. A praça é escavada, entra-se por cima. Como a de Moura. Como a de México.

Desde o ano passado, o cavaleiro Rui Fernandes tem também organizado uma primeira corrida (um mês antes) em parceria com os gestores da denominada Paio Pires Arena. E, a meu ver (é uma questão de experimentarem), a praça, com o ambiente que já conquistou, era muito bem capaz de aguentar mais duas corridas, pelo menos, em cada temporada.

Ontem, as bancadas estavam cheias e entre o público viam-se muitos aficionados e, sobretudo, seguidores e antigos elementos dos dois grupos de forcados. A dirigir a corrida, com a usual competência, esteve Tiago Tavares, assessorado pelo reputado médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

Não são precisas muitas considerações técnicas para descrever aquela que foi uma das mais duras corridas desta temporada - onde só por sorte não houve nenhuma desgraça. Já vi toiros mais dóceis causarem gravíssimas lesões a forcados. 

Ontem, graças a Deus, os únicos momentos de maios ansiedade aconteceram quando o valente José Maria Vacas de Carvalho (Montemor) ficou desmaiado na arena depois de ter tentado pegar o terceiro toiro (da ganadaria Prudêncio) e foi retirado de maca; e no último toiro, um manso assassino da ganadaria espanhola Dolores Aguirre, que deslocou um ombro a Daniel Batalha, dos Amadores de Lisboa (que fez duas tentativas para pegar o toiro, recolhendo à enfermaria), e rasgou o queixo a Duarte Mira (que fez outras duas tentativas e depois acabou por pegar de cernelha, com o rabejador Renato Avelar).

Ao final da corrida, Daniel Batalha permanecia ainda no interior da ambulância do INEM (foto de cima) à porta da praça, com os médicos a tentarem colocar-lhe o ombro no lugar, mas acabou por ser levado para o Hospital de Setúbal, onde tudo correu bem, tendo alta por volta das quatro da manhã e estando já em casa a recuperar. Duarte Mira foi cosido (queixo) na enfermaria da praça depois das tentativas que fez (duas) para dobrar Daniel Batalha, acabando por pegar o toiro de Aguirre de cernelha.

Quanto ao montemorense José Maria Vacas de Carvalho, recuperou os sentidos na enfermaria e regressou à trincheira, não tendo sofrido, felizmente, nenhuma lesão.

Mal tratado de Paio Pires saíu também ontem o grande cabo dos Amadores de Montemor, António Cortes Pena Monteiro, que sofreu uma voltarem impressionante (foto de cima) quando dava ajudas a Miguel Casadinho na primeira pega da corrida, no toiro de José Luis Pereda - que ganhou o prémio de bravura (com alguns protestos sonoros do público, havendo quem o imaginasse atribuído ao toiro de Fernandes de Castro), enquanto que o prémio de apresentação foi outorgado, muito justamente e com o aplauso geral do público, ao toiro de Prudêncio, uma estampa e um toiro muito sério e exigente (terceiro da ordem).

O júri do Concurso de Pegas esteve constituído pelo Dr. Vasco Lucas, pelo Dr. Tiago Gomes (médicos veterinários) e pelo antigo forcado José Augusto Baptista. O público aplaudiu a atribuição do prémio de apresentação ao potente toiro de Prudêncio (que também fez a vida negra ao cavaleiro Tristão e aos forcados de Montemor, não foram só os toiros espanhóis...), mas no que respeita à atribuição do prémio de bravura ao toiro espanhol de Pereda houve forte divisão de opiniões nas bancadas.

A noite foi muito dura para os dois valentes grupos de forcados - já a seguir, não percam a reportagem com as sequências das seis grandes pegas - tendo sido protagonistas pelo Grupo de Montemor os valorosos Miguel Casadinho (à terceira), José Maria Cortes Pena Monteiro (um forcadão e pêras, à segunda, terceira efectiva, a dobrar José Maria Vacas de Carvalho) e Joel Santos (à segunda), havendo ainda que destacar as excelentes intervenções de todo o grupo nas três pegas, uma primeira ajuda "brutal" do cabo António Cortes Pena Monteiro no quinto toiro e ainda a genialidade e a raça do rabejador Francisco Godinho, um forcado de se lhe tirar o chapéu!

Pelos Amadores de Lisboa pegaram Nuno Fitas (à primeira), Martim Marques (à terceira) e no último toiro, o assassino de Dolores Aguirre, foi duas vezes à cara o experiente Daniel Batalha (saíu com um ombro deslocado) e houve mais duas duríssimas tentativas de Duarte Mira, que depois acabou por salvar a honra do convento pegando de cernelha com o rabejador Renato Avelar.

Os dois grupos de forcados foram calorosamente aplaudidos quando no final atravessaram o campo de batalha, entenda-se, a arena.

Moral da história: a tauromaquia é isto mesmo, um espectáculo de risco onde a glória se pode confundir com a tragédia, onde o público tem que sentir o perigo e o drama, onde as coisas não podem ser faceizinhas, como são quando se lidam aqueles toirinhos bonzões a que Salgueiro chamou os "nhoc-nhoc"

Tem que haver emoção, transmissão e perigo - como ontem aconteceu em Paio Pires. Esta é a verdadeira essência da Festa, a essência de pureza que lhe é algumas vezes retirada com a lide de toirinhos amestrados. Precisamos de noites como a de ontem em Paio Pires - só assim iremos longe. Só assim o público continuará a ir às praças.

O Concurso de Ganadarias era o sexto desde a reabertura da praça. E desta vez era ibérico, com três toiros portugueses e três espanhóis.

Abriu praça o toiro de José Luis Pereda, desenvolto, de francas investidas, que proporcionou uma excelente actuação ao cavaleiro Gilberto Filipe, em grande momento de forma na celebração dos seus vinte anos de alternativa. O toiro ganhou o prémio de bravura, como já referi. Com protestos. 

Para Miguel Moura, que protagonizou uma grande lide, saiu em segundo lugar o toiro de Prieto de la Cal, bonito, bem apresentado, jabonero, mas com pouca força.

Tristão Telles Queiroz lidou em terceiro lugar o toiro de Prudêncio, duro, sério, a pedir contas, vencedor (com toda a justiça) do prémio de apresentação, um toiro com muita transmissão, daqueles que põem tudo e todos em sentido. Pesou 585 quilos. Tristão esteve valente, alternando momento altos com momentos menos felizes. Mas, no geral, agradou. Público aplaudiu-o no final, mas não deu volta à arena. O forcado José Maria Pena Monteiro (que dobrara José M. Vacas de Carvalho) não quis dar volta (autorizada) e Tristão também não a deu, limitando-se a agradecer no centro da arena.

O quarto toiro era o de Vinhas, que serviu, sem ser um toiro de nota altíssima. Bem apresentado, foi muito bem lidado por Gilberto Filipe, com rasgos de maestria, terminando com o cavalo sem cabeçada, um número que entusiasma sempre o público e serve como a cereja no topo do bolo para rematar as lides brilhantes deste valoroso cavaleiro.

Miguel Moura voltou a estar em alto nível, com grandes ferros e bonitos pormenores de excelente brega, no quinto toiro da noite, que, como reza o ditado, não foi mau, antes pelo contrário. Era o exemplar da ganadaria Fernandes de Castro. Investidas francas, a arrancar-se com alegria. Pensou-se que poderia ser este o vencedor do prémio de bravura, mas...

O último toiro era o já referido da ganadaria espanhola Dolores Aguirre, de apresentação irrepreensível, mas perigosamente manso, um verdadeiro assassino, cheio de sentido, daqueles que descompõem tudo e todos (e foi mesmo o que aconteceu). "Há muito tempo que não via um toiro assim", comentou hoje comigo Pedro Maria Gomes, cabo do GFA de Lisboa, quando o contactei para saber do estado de saúde dos seus forcados lesionados.

Tristão Telles Queiroz (anunciado só como Tristão Ribeiro Telles...) esteve valente como as armas frente a este perigoso toiro espanhol. Mas lidou-o em contra-mão, isto é, ao contrário. Era um toiro para se tourear em curto e Tristão citou-o sempre de largo, da praça a praça, não o entendeu, como não o entendeu mais ninguém do staff do valoroso cavaleiro (o que é, no mínimo, estranho).

Tristão tem muito tempo pela frente para evoluir e passar a entender melhor os toiros. A lide não foi brilhante, mas foi uma lide de valor e de emoção. E o público esteve com ele. Uma virtude ninguém lha pode negar: Tristão é um valente, é um toureiro que arrisca, que põe a carne no assador - e ontem pô-la.

Nota muito alta para os seis grandes bandarilheiros que coadjuvaram as lides e tiveram sobretudo muito trabalho (com valorosa eficiência) na colocação dos toiros para os forcados: Ricardo Alves e Nuno Oliveira; João Bretes e Jorge Alegrias; Duarte Alegrete e Nuno Silva.

Houve brindes vários, nomeadamente os dos dois grupos de forcados à dupla Nelson Lopes/António José Casaca (gestores da praça); à presidente da Junta de União de Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires, Maria João Costa, que presidiu à corrida; a Gilberto Filipe pelos seus vinte anos de alternativa; de Gilberto Filipe aos dois grupos de forcados, também a comemorarem os seus aniversários; do Grupo de Montemor ao seu antigo elemento José Fernando Potier, ex-presidente da Associação de Forcados; de Tristão ao empresário George Martins, antigo cabo dos forcados de Turlock (da Califórnia), que hoje pegam em Abiúl; e outros.

Ao início da corrida, os dirigentes do Paio Pires Futebol Clube homenagearam e entregaram lembranças ao cavaleiro Gilberto Filipe pelos seus 20 anos de alternativa; e aos cabos dos grupos de forcados de Montemor e Lisboa, respectivamente António Cortes Pena Monteiro e Pedro Maria Gomes, pelas respectivas comemorações dos 85 anos e 80 anos das suas fundações (foto de baixo).

Em suma, uma corrida muito dura, muito emotiva e muito "à antiga". De que se podem tirar muitas ilações e diversas conclusões, a primeira das quais é esta: se os toiros fossem sempre assim, era um instante enquanto os grupos de forcados voltavam a ser poucos, como eram antigamente, desapareciam num instante imensos dos que por aí andam...

Fotos M. Alvarenga