Meu caro Paulo Caetano,
Ontem foi tudo muito "a
quente". Hoje, mais a frio, apeteceu-me deixar-te aqui algumas palavras.
Não sei se te lembras, ou talvez tenhas
querido esquecer, como eu, os "nossos primeiros tempos". Fui duro, se
calhar injusto, naquele tempo em que apareceste nas arenas com aquela força
toda, triunfos aqui e acolá em Espanha, orelhas e rabos, um sem fim de êxitos.
Diziam os puritanos da época (houve-os em todas as épocas), recordo-o hoje com
a frieza e a frontalidade necessárias, que estavam a chegar aos toiros "os
filhos dos pedreiros", numa alusão clara ao facto de seres filho de um
Senhor - um Senhor, escrevi de propósito com maiúscula - ligado à construção
civil, sem "nome taurino".
Critiquei o "projecto". Um dia
avisaram-me para não ir a uma corrida no Montijo, numa sexta-feira à noite,
porque "corria perigo". Na véspera, no Campo Pequeno, um teu antigo
moço de estoques tinha andado à procura do "puto do jornal O Diabo" e
ameaçava esperar-me agora no Montijo. O meu qurerido (nosso) saudoso amigo Dr.
Fernando Teixeira telefonou-me, aflito, para o jornal. "Não se arme em
herói, Miguel, não vá esta noite ao Montijo". E eu fui. Eram os anos 70,
os anos loucos da revolução e eu andava no lado oposto da barricada. Rumei ao
Montijo e levei comigo um punhado de "bons malandros". Foi uma
"tourada" das antigas...
Uns tempos depois, o Raul Nascimento foi
ao jornal falar com a Maria Armanda (Vera Lagoa), com a simpatia e o
"savoir faire" que o caracterizavam. Uns dias mais tarde, estava eu a
caminho de Monforte, onde já vivias, com o Raul, mal te conhecia, mas tinha
curiosidade em falar-te. Explicaste-me que não tinhas nada a ver com a atitude
do tal moço de espadas (entretanto falecido e que, por isso mesmo, aqui vou
omitir o nome - mais tarde, ficámos amigos!), descobri nas tuas palavras, na
tua forma de estar, um homem diferente, muito diferente, daquele que eu
imaginava.
O "incidente" do Montijo
acabou por nos aproximar. Os anos passaram, Paulo, e nós conseguimos cimentar
uma sólida e profunda amizade. Acima de tudo, um respeito mútuo.
Eu fui crescendo como jornalista (nunca
gostei que me "chamassem" crítico tauromáquico) e tu foste afirmando
nas arenas a tua personalidade como grande Toureiro. Passaram dois, quatro,
dez, trinta anos.
Anteontem, aplaudi no Campo Pequeno mais
uma magistral lição de toureio, sem saber que era a tua última. Quando
anunciaram a tua decisão de terminar ali a tua carreira, senti arrepios. Andei
para trás no "filme". Lembrei-me de pessoas adoráveis que estiveram a
teu lado - o Raul, o Laurentino, sei lá, tantos, os teus Avós - e de actuações memoráveis que
fizeram a tua história, de cavalos célebres, de tantos momentos que acabámos
depois por repartir, quando ainda não havia o João, quando depois chegou o
João.
Acompanhei-te ao longo de três décadas.
Acompanhei o "nascer" do João e confirmo agora, eu e milhares de
aficionados, a sua consagração como Figura. É bonito, Paulo, pôr termo a uma
carreira e a tudo o que foi uma vida profissional, com a certeza de que se
deixou escola e de que se deixou, sobretudo, um seguidor.
A tua história, Paulo, não acabou ontem.
Antes pelo contrário. Começou de novo. Recomeçou com o apoteótico triunfo do
João, teu filho. Escolheste o momento ideal e a hora certa. Era a de ontem.
Também já sinto hoje alguma nostalgia
quando olho para o passado e recordo, estilo fita de cinema, tantos êxitos,
tantos momentos compartilhados, sem bajulices bacocas, antes com verdade e,
acima de tudo, com amizade.
A história vai continuar, Paulo. E,
mesmo sem casaca nem tricórnio, um dos protagonistas continuarás a ser tu.
Foste e és uma grande Figura do toureio. Ao contrário do que muitos e eu
próprio, vaticinavam. Impuseste, pela força da tua razão, a verdade do teu
toureio, a sinceridade do teu saber estar, a paixão que cimentaste pela arte a
que dedicaste toda uma vida. Não foste mais um. Foste e ainda na quinta-feira o
mostraste, um Toureiro que marcou. E as Figuras, por mais que vão, ficam
sempre. Porque o lugar delas é aqui, nas nossas memórias, no nosso passado que,
sendo antigo, será sempre presente.
Olé, Paulo Caetano!
Miguel Alvarenga
Foto Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com