Começou assim a noite memorável de Francisco Palha. Com o gesto senhorial de se apear do cavalo para brindar a João Moura, o Maestro dos Maestros |
Faltava um toureiro como este para devolver a emoção à Festa. Francisco Palha é o Salgueiro do século XXI. Só aparece um de vinte em vinte anos |
Podem todos ser muitos bons. E são. Mas nenhum é tão bom como Francisco Palha, a grande Figura do momento e o indiscutível triunfador da temporada. Devolveu a emoção à Festa e está a pôr tudo isto na ordem. Chegou o Salgueiro do século XXI! Aparece um de vinte em vinte anos. A história da corrida que ontem encheu a praça da Moita é a história do memorável triunfo de Palhinha. Que marcou a diferença. E de que maneira o fez, meu Deus!
Miguel Alvarenga - Assim que ele entra em praça, o público, mas sobretudo o público aficionado, fica à espera que entre também o cavalo “Roncalito” e que Francisco Palha pise a linha de fogo com aqueles ferros que se tornaram tão seus e que, aos poucos, vieram devolver à Festa a emoção, a verdade e o risco que tão arredados andavam, mercê das facilidades com que hoje se toureia por aí.
Com esses ferros, com essa maneira diferente de assustar, criar palpitações, acelerar o ritmo cardíaco de quem está na bancada, Palhinha pôs a tauromaquia na ordem. Podem todos ser muito bons e alguns até tourear melhor que ele, mas nenhum é hoje tão bom como ele. Francisco Palha deixou de ser apenas e só um toureiro. É um emblema. É uma causa. Simboliza e encarna a Figura por que todos esperávamos. E com isso marca a diferença.
Ontem na Moita ele era o “acrescento” ao sexteto de pais e filhos com que o empresário Rafael Vilhais já este ano enchera até às bandeiras a praça das Caldas. Era, digamos, o sétimo cavaleiro. Mas foi o primeiro.
Os toiros de Passanha impuseram seriedade, não foram um compêndio de bravura propriamente dita, mas eram verdadeiras estampas, tinham apresentação notável, tiveram comportamentos distintos, não facilitaram - e por cá, nos últimos anos, viram-se muitos toiros a facilitar demais e a tornar as coisas demasiado sonsas, retirando à Festa a mais pura das suas essências, que é o risco, que é o perigo e que é a emoção.
Nada disso se passou com os Passanhas. Sairam a pedir contas, a impor respeito, a espalhar seriedade. É uma ganadaria de postín, são toiros criados e eleitos por um ganadeiro que sente a Festa e a respira no dia a dia por todos os poros, ou não tivesse o Diogo sido também um ousado e destemido cavaleiro - que pode não ter feito grande história, mas foi valente e andou cá com a dignidade dos Senhores. Essas coisas marcam sempre a diferença. E por isso também os seus toiros a marcam. E marcaram ontem.
Tinham acabado de tourear os três veteranos do cartel. João Moura, homenageado ao intervalo pelos seus quarenta anos de glória - e também de diferença… e que diferença! - estivera com a usual maestria e sapiência toureira frente ao primeiro toiro da noite. Não fora uma lide com o esplendor das que nos brindou na última semana, mas tinha sido uma actuação notável e “à Moura”. Os anos correm, a arte fica sempre.
António Ribeiro Telles deixara na arena moitense o perfume do seu toureio à antiga, de um classicismo que é, acima de tudo, classe e verdade, raça também - e bom gosto, acima de tudo. Uma lide empolgante e que levantou o público das bancadas. António eternamente em alta por muito que também os anos passem. Melhor e mais maduro, estilo vinho do Porto!
E Luis Rouxinol exibira, como sempre, a maturidade e a exuberância de um profissionalão que se não cansa de dar a cara, de justificar os porquês de ter chegado, contra ventos e marés, no seu tempo, ao lugar de cima onde hoje permanece. Tiro-lhe o chapéu todos os dias.
E chegou então Francisco Palha!
Chegou sereno, tranquilo, do cavalo se apeou com os senhoriais modos com que está na vida, para dedicar esta lide ao Maestro Moura e voltou a montar e ali ficou, à espera que o toiro saísse, fosse ele que toiro fosse, viesse ele ao que viesse. Palhinha estava ali para lhe dar contas, para mostrar que o momento é seu e que por mais voltas que se dê, não há hoje quem aos calcanhares lhe chegue.
E assim foi. Dois compridos de poder a poder, enormes, cravados a rigor “en su sítio”, remates vistosos, a arte feita calmaria, senhor de si e dominador. Sereno, muito sereno.
Ao primeiro ferro curto, outro assombro a pisar terrenos impossíveis, entrou a banda em acção. Fez-lhe justiça o director de corrida Tiago Tavares. E Francisco embalou. Mais um ferro com o selo da verdade e do risco e veio por fim o inigualável “Roncalito”.
O público explodiu em loucura. Ferros de poder a poder, a entrar pelo toiro dentro, a provocar-lhe a investida, a cravar num palmo de terreno de onde parece não haver saída, dá a ideia de que aquilo vai chocar tudo - e depois, a mesma serenidade, o sorriso traquinas, a glória no rosto, a aclamação do dever cumprido, a simplicidade no gesto, sem espaventos, sem folclores, é assim, meus senhores, que se toureia. É assim que se devolve a este espectáculo a sua verdade, esse risco e esses momentos de suprema emoção que tão arredados andavam. Francisco Palha, o “acrescento” do sexteto de pais e filhos, o sétimo toureiro do cartel, foi ontem o primeiro. A léguas do pelotão. A Palha o trono! Sem discussão. E a lei.
Menos inspirado andou ontem Miguel Moura, outro toureiro que está a marcar esta temporada. Mandou sair os bandarilheiros, esperou com atitude o toiro no meio da arena, fez-lhe frente com uma emotiva sorte de gaiola, mas o ferro ficou demasiado descaído e isso acabou por ser o mote para uma noite menos regular. O jovem Moura alternou o bom com o menos bom e até com o mau, falhou um ferro, deixou outros demasiado “pescados” e só mesmo na recta final, com os palmitos, conseguiu sobressair e dar um ar da sua verdadeira graça. Demasiado condescendente e apesar de não lhe ter concedido música, o director de corrida permitiu-lhe a volta à arena. E Miguel deu-a. Não devia ter dado.
Rouxinol Júnior: um caso muito sério!
Veio depois Luis Rouxinol Júnior, o filho de peixe que sabe nadar tão bem. Este toureiro é um caso. Um caso muito sério. E ontem, numa lide brindada ao cavaleiro Emídio Pinto (bonito gesto do jovem cavaleiro), demonstrou uma vez mais toda a raça, todo o valor e o enorme brilho que lhe vai na alma, alma de toureiro bom, que sente e sabe o que faz e o que faz com verdade, com emoção e com brio. Não perde nem a feijões. Se Palha marcara a diferença, ele impôs também a sua. Rouxinol Jr. está um toureiro feito, tem uma noção perfeita de lide, dos terrenos, de onde tem que ir para ser diferente dos outros. E foi. Foi aos domínios do toiro, aos terrenos da verdade, deixar ferros que empolgaram e que o consagraram, mais uma noite, como toureiro em busca de afirmação. Triunfo gordo e importante, noite brilhante do novo Rouxinol - que até no par de bandarilhas galvanizou, tal como seu pai. Quem sai aos seus…
E quem aos seus sai é também o novo Telles, já dizia o meu querido e saudoso amigo Bacatum que ainda havia lá por casa tantos para fazer história.
Nunca tinha visto tourear o filho de António, que tem o mesmo nome que o pai - e as mesmas maneiras também. Surpreendeu na lide de um novilho de Passanha de séria apresentação e melhor comportamento. Já vi toiros anunciados como toiros sem aquele trapio, mas isso não assustou António.
Tem o corte clássico do seu mestre, chega ao público e tem a classe dos Ribeiro Telles. Não vai ser mais um qualquer, já mostra que é um novo Ribeiro Telles. E isso é importante. Benvindo, António! E parabéns pelo teu triunfo de ontem. Deslumbraste, foste a novidade, és a certeza de que a saga não tem fim e a prova de que a Torrinha é mesmo um viveiro de bons toureiros. Bem haja, Mestre David!
À terceira foi de vez - a praça da Moita encheu, preenchendo o público mais de três quartos das bancadas, depois dos dois primeiros espectáculos terem tido casas às moscas. Até me assusta tirar conclusões, mas contra factos não há argumentos e a verdade é que na tão apregoada aficion moitense há muito que o toureio a pé foi à sua vida… Os tempos mudaram, as vontades também, o grande Camões é que tinha razão. E, doa lá a quem doer, já cá não estão os aficionados de solera que enchiam a Moita para ver os matadores…
Aposento da Moita de novo na ribalta
À terceira foi de vez - e o Grupo de Forcados Amadores do Aposento da Moita reencontrou-se depois dos episódios menos felizes que viveu no início da temporada em Estremoz e mais recentemente em Lisboa. Não eram, nem podiam ser, duas corridas menos brilhantes que haveriam de colocar agora em causa, sem mais nem quê, o brilho e a estrela luminosa de um grupo com tão grande e valoroso historial.
Ontem, a rapaziada reencontrou-se e o grupo teve uma actuação a todos os títulos brilhante, reconhecida com calorosas ovações e voltas à arena pega após pega e muito em especial no fim, quando todos atravessaram a arena debaixo de uma autêntica chuva de aclamações.
Já aqui a todos referi em pormenor, mas repito: o cabo José Maria Bettencourt, Marcos Prata, João Ventura, Leonardo Mathias, Bernardo Cardoso e o primeiro ajuda José Maria Ferreira, Martim Afonso de Carvalho, João Gomes e o veterano Luis Fera, a rabejar, foram os grandes heróis de uma noite em que não estiveram sós. Honra a todos os elementos do grupo, honra à noite grande de pegas que nos proporcionaram neste grande e esperado regresso à ribalta. O Aposento da Moita de volta aos seus tempos de glória. Em força.
Uma palavra de elogio a todos os bandarilheiros que ontem intervieram, integrados nas quadrilhas dos sete cavaleiros. Não houve capotazos em demasia. Até no que a essa anomalia diz respeito, as coisas estão também a entrar nos eixos.
Tiago Tavares dirigiu a corrida com acerto e bom senso, exceptuando a condescendência com que autorizou a volta a Miguel Moura (há dias menos felizes e por morrer uma andorinha nunca a Primavera acabou, força, Miguel!). Esteve assessorado pelo médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva e pelo cornetim José Henriques, que como sempre nos brindou com a sua arte nos toques.
Corrida de muito ambiente e imenso público nas bancadas, aficionados, entendidos, profissionais do toureio, mais um triunfo do empresário Rafael Vilhais (que mesmo assim não compensou os desaires dos dois espectáculos anteriores…) e a consagração plena de Francisco Palha como a grande e proclamada Figura do momento. Cuidado com ele!
Fotos Emílio de Jesus