segunda-feira, 18 de maio de 2020

Histórias (secretas) que vivi com Fernando Camacho

Fernando Camacho e Miguel Alvarenga em 1986 na barreira da
Monumental do México
Anos 80: João Moura, Fernando Camacho e Miguel Alvarenga
Anos 80 na Monumental de Santarém com Amâncio
Grilo, quando apoderava João Moura
18 de Outubro de 1980 em Sevilha, depois de um festival em que
toureou o retirado matador mexicano "El Calesero", connosco na
foto. Da esquerda para a direita: Miguel Alvarenga, Dr. Fernando
Teixeira, Fernando Camacho (atrás), o toureiro azteca, João Queiroz
e Manuel Andrade Guerra
Anos 60 em Sevilha com o matador de toiros português Júlio Gomes
e o espanhol José Fuentes


14 anos depois da sua morte, recordo algumas das muitas vivências que partilhei com o apoderado dos apoderados, Fernando Camacho

Miguel Alvarenga - Muitos desconhecem a história, mas eu conhecia Fernando Camacho desde os meus tempos de criança. A Gina, sua mulher, foi uma das maiores amigas da minha mãe e desde sempre me lembro dela e do Tio Fernando, como sempre o tratava. Chegámos, inclusivamente, a passar férias de Verão juntos numa casa alugada na Costa da Caparica. Vinha desses tempos, quase de criança ainda, a minha grande amizade e admiração por ele.
E a seu lado vivi episódios e histórias que jamais esqueci. Para não me alongar vou contar apenas três ou quatro, começando pela da casaca do João Moura - uma das mais engraçadas.
Estávamos nos inícios da década de 80 e Manuel Gonçalves, regressado de França onde vivera alguns anos depois de ter abandonado Moçambique por obra e (des)graça da “descolonização exemplar”, era ao tempo o empresário da praça de toiros do Campo Pequeno. Camacho apoderava o número-um dos cavaleiros, João Moura.
Manuel Gonçalves era um empresário sério, demasiado sério para o tempo, mas super agarrado ao dinheiro. Discutia tostões até levar o seu barco a bom porto, mas depois não falhava nunca na altura de pagar aquilo que combinara. Combinar é que era o pior… 
E nessa altura andavam os dois, ele e Camacho, há algumas semanas, em guerra aberta pelo cachet de João Moura. Havia, se bem me lembro, uma diferença de 500 contos (2.500 euros) entre o que Camacho exigia e o que Gonçalves oferecia.

"Vista-a o senhor 
e toureie você!"

Uma manhã, telefonou-me o Tio Fernando. Tinha por norma acordar as pessoas às oito da manhã:
- Meu filho, pode vir comigo ao Campo Pequeno, que tenho uma reunião com o Manuel Gonçalves e gostava que estivesse presente?
E eu fui. Encontrámo-nos na Pastelaria “Londres” e Camacho trazia um embrulho enorme atado com cordéis. Perguntei-lhe o que era. “Já vai ver”. E subimos ao primeiro andar, ao escritório de Manuel Gonçalves na praça de toiros.
- O que é isso que aí traz? - indagou Gonçalves, admirado.
E Camacho abriu o embrulho. Era uma casaca azul bordada a ouro, de João Moura. E atirou:
- Uma vez que não quer pagar ao João Moura o dinheiro que ele quer e como são os dois mais ou menos da mesma estatura, vista o senhor esta casaca e toureie você, que o Moura não vem ao Campo Pequeno!
Manuel Gonçalves começou a bufar por todos os poros, andou de um lado para o outro a gesticular e a barafustar: “Você é tramado!”. E depois chegou a acordo. E Moura foi tourear a Lisboa. Precisamente com aquela casaca. E com os 500 contos a mais que Gonçalves não lhe queria pagar.

A zanga e o gravador

Uns anos depois, muitos, Camacho e Gonçalves zangaram-se e nunca mais fizeram as pazes. Mas num momento em que Camacho voltara a apoderar o matador Pedrito de Portugal, Gonçalves queria contratá-lo, mas jurara a pés juntos que não chegaria à fala com o “inimigo de estimação”.
Houve vários intermediários para tentar fechar o negócio, mas as conversações foram sempre infrutíferas. Até que um dia Camacho me “nomeou” para intermediar a contratação de Pedrito. E andei nisso três semanas. Com um gravador - que às tantas já fervia e nem sei mesmo como nunca explodiu…
Ia a casa de Manuel Gonçalves e gravava o seu discurso para Camacho e depois ia a casa de Fernando Camacho e gravava a sua resposta a Gonçalves e por aí adiante. Ligava o gravador e cada um ouvia o que o outro dissera. E respondia. Andei nisto, de um lado para o outro e eles "falavam" um com o outro através do meu gravador. Por fim chegaram a acordo e Gonçalves contratou Pedrito - sem nunca ter falado ao vivo com Camacho, apenas através do meu gravador. 
Depois, jamais fizeram as pazes e Camacho morreu, há 14 anos, sem ter voltado a falar com Manuel Gonçalves. Fui eu quem lhe deu a notícia. E lembro-me, como se fosse hoje, das palavras de Manuel Gonçalves: “Era um tipo tramado, mas foi um grande taurino e não vai haver outro como ele”.

A prisão em Madrid e a estocada 
de Pedrito na Moita

Em 1990 Fernando Camacho foi preso em Madrid, acusado de pertencer a uma rede colombiana de narcotraficantes. Esteve cerca de um mês detido em Carabanchel e acabou por ser libertado depois de colaborar com a Justiça e denunciar muitos dos membros da rede, entre os quais um matador de toiros espanhol - que foram presos. 
Diz-se, aliás, que a sua morte, há 14 anos, terá sido um ajuste de contas precisamente dos traficantes que ele denunciara às autoridades. Que o mataram ou que o obrigaram a matar-se, tal a pressão que lhe vinham fazendo.
Ao tempo, viajei para Madrid e investiguei o caso da prisão de Camacho. Cheguei a falar na Audiência Nacional com o célebre juiz Baltazar Garzón e falei também com membros da Polícia que estiveram envolvidos no processo da investigação e da prisão de Camacho numa auto-estrada próxima da capital espanhol, quando transportava milhares de pesetas alegadamente provenientes do narcotráfico. A operação foi conjunta entre a Polícia espanhola e a Judiciária portuguesa.
A história foi publicada no semanário “O Título”, que eu dirigia na altura. Camacho esteve dez anos sem me falar e chegou mesmo a instaurar-me um processo cujo julgamento demorou mais de um ano no antigo Tribunal da Boa-Hora. Fui defendido pelo Dr. João (Zina) Torre do Valle, ilustre guitarrista falecido no ano passado e que era o advogado do jornal. E as provas e as testemunhas que apresentei foram mais que suficientes para que fosse absolvido. 
Quase dez anos depois, em Junho de 2001, um amigo comum perguntou-me se eu aceitaria que Camacho me telefonasse, que ele queria falar comigo. Disse que sim, obviamente. E ele ligou-me, como se nada se tivesse passado, como se ontem tivéssemos falado - e já tinham passado dez anos - e até ao fim nunca na vida falámos do caso de Madrid. Camacho era astuto - e era estranho, às vezes. Foi assunto tabú desde que recomeçámos a nossa amizade, como se nunca tivesse acontecido.
Telefonou-me e disse que precisava de jantar comigo. Marcámos para a noite seguinte. Foi-me buscar a casa, entrei no carro, deu-me um beijo (foi sempre assim que nos falámos) e rumámos a um luxuoso restaurante do Parque Eduardo VII, não me lembro o nome, nem sei se ainda existe. O assunto era este:
- Meu filho, o Pedrito tem que relançar a sua carreira e em Setembro vai deitar um toiro abaixo na Moita…
- Matar um toiro?
- Sim. E preciso que o menino me apoie. Se me disser já que é contra e que vai armar merda depois, desistimos já da ideia. Mas peço-lhe que nos apoie.
E eu disse que apoiava. O jantar foi cordial, divertido, igual a tantos outros que tínhamos tido durante a vida. E Camacho nunca falou da nossa zanga, dos dez anos em que não nos falámos, do processo que me moveu e perdeu em tribunal, muito menos do caso de Madrid.
Em Setembro fui para a Moita com o Emílio. No caminho contei-lhe o que ia acontecer. Nem o empresário da praça, que era ao tempo o Engº Inácio Ramos, sonhava. E penso que muito pouca gente sabia, à excepção do saudoso Balé, a quem Camacho também contara e em cuja casa Pedrito se vestiu nessa noite.
Pedrito matou o último toiro da corrida, o sobrero da ganadaria de Conde Cabral. Mas na véspera tinha ocorrido o atentado às Torres Gémeas em Nova Iorque, as televisões e os jornais não falavam de outra coisa e apesar da noite de euforia que se viveu na praça de toiros da Moita, a programada estocada de Pedrito não teve o impacto que se desejava. Foi apagada por Bin Laden...

O último telefonema

No dia 16 de Maio de 2006 o Campo Pequeno foi reinaugurado, após seis anos de obras, com um grande espectáculo de Filipe La Féria e Camacho lá estava entre os convidados da empresa, como eu.
No dia seguinte telefonou-me. 24 horas depois, no dia 18, era a primeira corrida de toiros do novo Campo Pequeno.
- O Campo Pequeno está lindíssimo, não achou? Que grande obra. Houve quem se chocasse, mas eu adorei. Está mesmo fantástico.
E foi a última vez que lhe ouvi a voz.
No dia 18, cumprem-se hoje 14 anos, fui de manhã a Vila Franca fazer uma entrevista ao cavaleiro Paulo Jorge Santos. No regresso a Lisboa, o telemóvel vinha a tocar no meu bolso. Parei a Vespa já na zona da Expo. Era o Armando Jorge Teixeira que me estava a ligar para me dar a notícia:
- O Camacho matou-se esta manhã!

Fotos Saltillense, Henrique de Carvalho Dias e D.R.